Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 24/11/2015
Olá a todos!!!
No dia 13 de novembro de 2015, a Presidência da República editou o Decreto nº 8.572, que, em seu artigo 1°, alterando inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, permite a movimentação da conta do trabalhador vinculada ao FGTS em razão do “desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais”. A intenção, boa em essência, é a de autorizar o levantamento do saldo atrelado à conta do trabalhador no FGTS para reparação dos prejuízos oriundos do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana/MG, de propriedade da empresa Samarco, cujas sócias-proprietárias são a Vale e a anglo-australiana BHP.
O que é auspicioso e de certa forma draconiano, afora, claro, o caráter ad hoc da legislação, é o fato da qualificação como “natural” do desastre decorrente do rompimento da barragem. O Decreto presidencial é expresso ao salientar que “considera-se também como natural o desastre (...)”, o que vem sendo criticado não apenas pela sociedade em geral, mas também por auditório técnico especializado, a exemplo da sub-procuradora geral Sandra Cureau, que coordena a 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Meio Ambiente do Ministério Público Federal, que qualificou o Decreto como “preocupante”, uma vez que o ente normativo pode acabar sendo utilizado como forma de atenuar a responsabilidade da empresa envolvida na situação[1].
Nesta coluna, já tive a oportunidade de relatar a controvérsia Soler-Carrió a respeito da utilização da linguagem[2], demonstrando, naquele momento, quão discutível a possibilidade de a utilização da linguagem encontrar limites, quer no direito, quer em sua utilização cotidiana, na polis. O desenvolvimento da questão apresenta algumas interessantes conclusões.
Joan-Carles Mèlich sustenta que herdamos um “mundo interpretado” e que as normas são organizadas com base em “horizontes morais” previamente estabelecidos. Destaca, ainda, o mesmo autor, que deve ser empreendida distinção entre a moral e a ética, sendo aquela capaz de ditar leis, normas, imperativos, apresentando-se pública e acessível a todos, ao passo que esta, indeterminada, obscura, individual, surge apenas quando se constata a transgressão de leis e outras categorias assemelhadas[3].
Esta distinção levada a cabo por Mèlich apresenta-se deveras importante no caso do Decreto ora em exame. Isso porque, ao mencionar “considera-se natural” um desastre que, em princípio, parece não ostentar esta conclusão, o ente normativo abusa do horizonte de significado que utiliza para lograr alcançar o fim a que se propõe; e, nessa ordem de ideia, denota, em seu âmago, um fim ético, no sentido proposto pelo Autor citado, circunscrito ao particularismo do pensamento de quem o elaborou.
É conhecida a qualificação do positivismo pós-hartiano como inclusivo, ou includente, segundo o qual, adotando a tese da vinculação abrandada, introduzem-se elementos morais na compreensão – e não na formação – do direito em hipóteses excepcionais, quando se verificarem casos de textura aberta na linguagem[4]. No caso em voga, no entanto, não se trata de elemento moral inserido no contexto da determinação haurida do Decreto, mas de uma postura ética – particularista e nebulosa – que simplesmente não pode ser aceita como direito se e enquanto não se encontrar devidamente lastreada nos fatos a serem perquiridos e comprovados.
Dito de outra maneira: acaso no decorrer do processo eventualmente iniciado por força do rompimento da barragem restar comprovada que o evento nada teve de “natural”, a sua menção na linguagem normativa não terá qualquer efeito para fins de minoração da responsabilização de quem de direito. Isso porque a sua inserção no regramento vigente não tem qualquer compatibilidade com o horizonte moral que se lhe apresenta como suporte: natural não é aquilo que é provocado. Trata-se, ao revés, tão somente de um particularismo ético que nada representa em termos de direito. É um não-direito, a bem da verdade.
À base da premissa segundo a qual acaso a utilização de termos na lei se afaste de seu horizonte de significado deve ser tido como um não-direito encontra-se, por exemplo, a teoria da injustiça extrema outrora sustentada por Gustav Radbruch. Para este Autor, o direito vigente deve ser observado, ainda que injusto; mas, acaso extremamente injusto, a sua força normativa se esvairá, porque carente de embasamento jurídico que a sustente[5].
Quer no ambiente da formação da norma (como sugere Radbruch), quer na sua interpretação (como, entre muitos, sugere Hart), parece evidente que, apartando-se de seu horizonte de significado, os termos utilizados pela lei não encontrarão embasamento que lhe permita ultrapassar o nível ético particularista, adentrando sequer no quadrante moral mínimo que, mesmo a título de textura aberta, viabilize sua compreensão como direito.
Daí que a menção a “natural” no Decreto presidencial tem a mesma valia que a alusão a “melancia”, “pato”, ou “jacaré”. Todos não se enquadram – ao revés, revelam-se longínquos – do horizonte de significado que poderia lastrear a eventual responsabilização dos envolvidos no evento ao final tido como não natural.
Levar em conta o contrário significaria, afinal, abandonar o mínimo de coerência, consistência e harmonia no diálogo, normativo ou não. O ato de fala, nesta hipótese, representaria não apenas a divulgação de um comando normativo prenhe de legitimidade, senão o produto do particularismo ético e arbitrário daqueles que, procurando incremento constante de sua força, ou, como parece ser o caso, sem ter a menor noção do que fazem, revelam-se cada vez mais em paralelo ao caminhar social.
Curiosa esta ideia de que o direito, por vezes, ostenta um caráter de não-direito, não é?! Aprofundarei esta ideia em outras oportunidades. Aguardarei, no entanto, outras pérolas normativas oriundas da nossa pátria ortinorrinco.
Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!
Notas e Referências:
[1] A íntegra da notícia pode ser encontrada em http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2015/11/subprocuradora-critica-decreto-que-libera-fgts-para-vitimas-de-mariana.html. Acesso em 22 novembro de 2015.
[2] A propósito, principalmente, das obras SOLER, Sebastián. La Interpretación de la ley. Buenos Aires: editora Ariel, 1962; e CARRIÓ, Genaro R.. Notas sobre Derecho y Lenguaje. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1986.
[3] MÈLICH, Joan-Carles. Lógica de la crueldad. Barcelona: Herder Editorial, 2014, p. 27.
[4] A este respeito: HART. Herbert. O conceito de direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[5] “Há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade”. RADBRUCH, Gustav. Cinco minutos de filosofia do direito. In: Radbruch, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Antonio Amado, 1979, p. 415-418.
Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.
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