“A Justiça está a serviço da polícia”, disse Foucault – Por André Sampaio

18/12/2016

Foucault, no documentário “Foucault par lui-même”, lança a polêmica afirmação de que ao invés do que se comumente reproduz, não é a polícia que se encontra a serviço da Justiça, como órgão auxiliar, mas o oposto. Devaneios de um filósofo – na ausência de adjetivo mais apropriado – perturbado? Desconstruções sem sentido? Hipótese aventureira e desprovida de fundamento? Muito pelo contrário, uma observação lúcida que somente à margem do sistema jurídico poderia ser realizada.

Desde o sistema jurídico positivo encontramos uma configuração que situa a polícia investigativa como “órgão auxiliar do Poder Judiciário”; desta forma, suas funções seriam sempre secundárias, de caráter meramente executivo, tendo como momento paroxístico a busca de indícios de autoria e prova do crime para embasar a justa causa para o exercício da ação penal, ao menos no sentido mais superficial de “justa causa”.

Entretanto, qualquer pessoa que tenha contato com a empiria da máquina punitiva pode perceber que a ordem simbólica erigida normativamente e reproduzida acriticamente no senso comum teórico dos juristas se encontra em relação de inversão à sua praxe. É natural que haja sempre um vão de divergência entre ordens simbólicas e campo de manifestação fenomenológica, porém o que chama mais atenção à hipótese ora sustentada é a de supressão da regra por sua exceção, nos moldes agambenianos -  a exceção vira (e funda, por que não?) a regra: a Justiça está a serviço da Polícia.

Obviamente para que esse cenário surja e se preserve são necessários elementos obnubilados por uma análise meramente epidérmica, quais sejam a razão cínica, motor da cegueira deliberada da realidade, e o significante que opera como seu dispositivo de legitimação: o artigo 155 do Código de Processo Penal.

Ao dispor que o juiz poderá fundamentar sua sentença – inclusive condenatória – com base nos elementos colhidos na fase investigativa, contanto que não exclusivamente neles, a legislação erige o duto de contaminação judicial pelo que fora colhido na fase anterior, ou, de modo ainda mais radical, funda a ordem operante subjacente que atribui aos atos colhidos na fase investigativa o status de elementos primários de (re)construção do acontecimento.

Ora, como assim? Há um elemento de gradação no artigo 155, o advérbio “exclusivamente”, que, em uma hermenêutica simples, fomenta a interpretação inexorável: os atos de investigação, aqueles colhidos na fase investigativa, são sempre menos importantes que os atos de prova, os colhidos em contraditório judicial, afinal de contas é possível o magistrado condenar apenas com base em atos de prova, mas jamais com base em atos de investigação! Eis o ardil que encaçapa o ingênuo.

Uma análise científica medianamente acurada ou a própria vivência da advocacia criminal desvela o mecanismo subjacente e permite ao observador encarar a estratégia empregada, desde a utilização de qualquer ato de prova para “preencher o suporte fático” demandado pelo advérbio “exclusivamente” – das mais frágeis imagináveis, como testemunhas de “ouvir dizer”, até a mera ratificação dos atos de investigação repetíveis, como a leitura do depoimento da testemunha para que ela possa “confirmar” o que supostamente fora dito.

A consequência dessa reconfiguração sistêmica é a centralização da função de (re)construção do acontecimento, objeto de julgamento, na fase preliminar do processo penal, relegando a este a mera função de referendar a verdade construída e aplicar a ela a hermenêutica legal que melhor lhe couber. Os danos, como soa evidente, são suportados pela defesa, pelo acusado e, em última análise, pela democraticidade[1] do processo penal.

Em uma democracia, permitir a participação da defesa em paridade de condições na (re)construção do acontecimento é elemento inelutável, não pode haver verdade (re)construída unilateralmente, característica primordial de sistemas autoritários. Qual seria a solução, então, permitir o contraditório amplo e defesa na fase investigativa? Evidente que não, tal solução não só intensificaria a legitimidade desse procedimento, minando ainda mais a relevância da fase processual, como seria de difícil conciliação com a imperatividade do sigilo das investigações ainda em curso.

Diante disso, a solução mais viável para minimizar os problemas aqui apontados perpassa pela adoção de medidas tomadas há muito pelo sistema jurídico-penal italiano e proclamadas há décadas no Brasil por Aury Lopes Jr.,[2] quais sejam a exclusão física dos autos de inquérito da fase processual e a imperatividade de reprodução (e não mera ratificação) dos atos de investigação repetíveis em contraditório judicial.

Podemos ir além, é imprescindível a adoção de um regime claro sobre a utilização de atos de investigação repetíveis, reduzindo o trilema “utilizar o depoimento policial/utilizar o depoimento judicial/não utilizar nenhum” ao dilema “utilizar o depoimento judicial/não utilizar nenhum”, instituir um controle rígido sobre o caráter sumário da duração da fase investigativa, evitando o exaurimento da cognição nesta fase, e, por que não, suprimindo drasticamente a fase investigativa em algumas situações, como de prisões decretadas, por exemplo. Mas como fazê-lo sem obliterar a função democrática – sim, ela existe! – da investigação preliminar? É sobre o que conversaremos em uma outra oportunidade.


Notas e Referências:

[1] Expressão cunhada por Rui Cunha Martins em “O ponto cego do direito” e trabalhada por Rubens Casara e Antônio Pedro Melchior em “Teoria do Processo Penal Brasileiro, vol I.: dogmática e crítica: conceitos fundamentais” (pp. 101-103).

[2] LOPES JR., Aury. Direito processual penal brasileiro. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 337-341.


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