A jurisdição constitucional e o destravamento de pautas políticas e bloqueios institucionais: um início de conversa...

26/08/2017

Por Cândice Lisbôa Alves – 26/08/2017

Jurisdição constitucional é expressão que se refere ao ato de interpretação e aplicação das normas constitucionais o que requer, por consequência, hermenêutica constitucional.

Nosso constitucionalismo nacional sofreu várias modificações ao longo da história, saindo de um não-lugar – ou de uma posição coadjuvante, já que o Código Civil era mais importante que a Constituição – para a central em nosso Ordenamento Jurídico, compatibilizando-se com a teoria da força normativa da Constituição, de Konrad Hesse[1]. Essa trajetória acompanhou o movimento mundial de fortalecimento dos direitos humanos e as reflexões decorrentes do nazismo que questionavam na essência o positivismo jurídico ou, por outra vertente, pela linha da teoria crítica do direito.

No Brasil o marco do fortalecimento da jurisdição constitucional se deu com a promulgação da Constituição da República, em 05 de outubro de 1988. Deve-se ressaltar, todavia, que mesmo após a promulgação não houve uma transição rápida ou homogênea para a “nova importância” do Direito Constitucional, até porque a composição do Supremo Tribunal Federal à época não comportava uma modificação significativa das decisões da Corte. Ao longo do tempo, com a substituição dos Ministros aliada à uma cultura constitucional que bebeu das águas germânicas – especialmente quanto à teoria dos direitos fundamentais –, o constitucionalismo veio e vem se firmando. O movimento é gradual e paulatino, sem se poder falar em constância ou progressividade absoluta, pois em alguns momentos podemos perceber certo regresso. Nesse sentido, o controle de constitucionalidade é vetor importante, na medida em que exerce a função de filtro de compatibilidade entre as normas e atos do poder público com as determinações da Constituição da República de 1988, tanto no modelo difuso quanto no concentrado, todavia esse último deve ser destacado em função dos desdobramentos que provoca no Ordenamento Jurídico como um todo.

A jurisdição constitucional, nestes quase trinta anos após a constituinte, vem se constituindo como o lugar de defesa e busca de concretização dos direitos fundamentais. Isto significa, a reboque, a salvaguarda do primado da dignidade humana[2] em diferentes campos e acepções.

Especialmente nos últimos quinze anos grandes mudanças aconteceram por meio do controle concentrado de constitucionalidade que tocaram em desacordos morais significativos, sem qualquer possibilidade de formação de consenso sobre os assuntos debatidos. Nessa senda pode-se destacar como exemplos as decisões acerca da possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo (ADPF 132), a possibilidade jurídica de interrupção de gestação de fetos anencéfalos[3] (ADPF 54) e a possibilidade de pesquisas com células tronco (ADI 3510). Ainda há outros exemplos sem decisão final atinentes à recepção ou não do aborto pela nossa Constituição (ADPF 442) ou sobre as mazelas do sistema carcerário nacional (ADPF 347). Nesse último caso foi introduzida no Brasil a teoria do Estado de Coisas Inconstitucional, de matriz colombiana.

A jurisdição constitucional, assim, tornou-se no Brasil o locus de debates públicos acerca de temas que “não acontecem” no Poder Legislativo ou no Executivo, pois tais poderes negam-se a considerar ou discutir abertamente “certos assuntos”, como se sobre eles existisse tabu, ou como se as normatizações atuais fossem intocáveis ou imodificáveis. Não obstante a não ocorrência do debate – ou a sua distorção para uma decisão negativa quanto a assuntos que estão inseridos nos desacordos mencionados – não há como sustentar na atualidade do Direito argumentos ou posições absolutas, especialmente levando-se em consideração a filosofia da linguagem e o espiral hermenêutico[4]. Ainda assim os Poderes democráticos não dão abertura para aquilo que consideram demandas de minorias ou que sejam contra os interesses ditos da maioria, ou que representam o status quo.

Para alguns autores esse fechamento de pauta sobre determinados temas constitui-se como bloqueio institucional ou mesmo bloqueio político[5], e é a possibilidade de a jurisdição constitucional destravar essas pautas o enfoque que se espera ressaltar nesse ensaio.

Quando o Supremo Tribunal Federal recebe uma ação em que determinado segmento pleiteia, por exemplo, a possibilidade de união estável entre pessoas do mesmo sexo, ele age contramajoritariamente, ou seja, ele decide não em função da escolha política realizada pelos  representantes do povo (que não editaram norma jurídica possibilitando a referida união), mas em decorrência do princípio da inafastabilidade da jurisdição e amplia os desdobramentos dessa decisão por meio do efeito erga omnes e eficácia vinculante em relação aos Poderes Executivo e Legislativo. A decisão da ação judicial será alicerçada pelas normas constitucionais referentes aos direitos fundamentais e assim a opinião social sobre o afeto das pessoas do mesmo sexo é deixada de lado tendo em vista o direito à felicidade dessas pessoas. O direito à felicidade, por seu turno, é calcado na noção de dignidade humana que abarca a liberdade de afetividade assim como das repercussões patrimoniais advindas desse estado de fato e de afeto. Não há, assim, como manter o bloqueio político e social – verdadeiro tabu – sobre relações entre pessoas do mesmo sexo, já que o debate é deslocado do âmbito da moralidade e religiosidade (marco das decisões políticas) para princípios jurídicos, que tem sua fonte na mencionada dignidade humana. Nesse sentido o Supremo desbloqueia os valores sociais para incluir demandas de minorias também sociais.

Uma das maneiras de alargar as discussões na jurisdição constitucional é fomentada pela ideia da participação popular nos debates, o que ocorre através do amicus curiae[6]. Em função de o Poder Judiciário não ser democrático exsurge a crítica quanto a falta de legitimidade do mesmo para analisar e decidir questões políticas, e quase todos os temas controversos dizem respeito à falta de legitimidade então de decisões que tocam em temas dessa natureza. Não há consenso sobre esse assunto de maneira que observam-se críticas de juristas renomados como Jeremy Waldron[7] ou Cass Sunstein[8] - entre outros. Eles apresentam argumentos pautados no minimalismo judicial ou na manutenção da divisão dos poderes em uma versão clássica, o que significa a não possibilidade de o Judiciário decidir questões políticas. Não obstante, o Supremo Tribunal Federal vem decidindo sobre os assuntos apresentados. Essa opção é fundamentada no princípio da inafastabilidade da jurisdição ou na omissão estatal quanto a condutas decorrentes da Constituição (como no caso da não prestação de requerimentos de saúde[9]). Como se disse, há muitas críticas feitas que merecem ser analisadas com atenção e cuidado, infelizmente nesse texto não temos espaço para tanto.

O mais importante e o que se pretende destacar é que sem a atuação do Supremo Tribunal Federal em sede de direitos fundamentais estaríamos ainda presos à perspectiva de programaticidade de normas constitucionais quanto a direitos fundamentais, o que geraria um atraso quanto à concretização de direitos como saúde e educação, afora outros como a questão dos presos na atualidade brasileira. Esse tema deverá ser abordado posteriormente em outro artigo, por enquanto basta perceber que em termos de direitos fundamentais temos mais ganhado que perdido com um Supremo Tribunal Federal atuante e protetivo.


Notas e Referências:

[1] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

[2] Sobre a forma como a dignidade pode ser entendida no Brasil, bem como julgados interessantes à respeito, verificar a tese de titularidade do professor Daniel Sarmento na UERJ, que foi publicada em livro intitulado Dignidade da Pessoa Humana - Conteúdo, Trajetórias e Metodologia, pela editora Fórum.

[3] Na decisão a expressão utilizada foi antecipação terapêutica do parte ao invés de aborto ou interrupção de gravidez, pautando-se a inviabilidade da vida extrauterina.

[4] Sobre o assunto consultar GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

[5] Para maiores considerações analisar o livro Estado de Coisas Inconstitucional de Carlos Alexandre de Azevedo Campous publicado pela JusPodvm e que é resultado da suas pesquisas de doutoramento pela UERJ.

[6] No CPC 2015 há previsão de participação do amicus curiae em qualquer procedimento, todavia, quando a discussão não acontece no controle concentrado de constitucionalidade não gera efeitos erga omnes ou eficácia vinculante ao Executivo e Judiciário e, por consequência, podem ocorrer decisões divergentes e assim insegurança jurídica.

[7] A referência aqui é a obra Law and Disagreement, para maiores investigações vale a leitura.

[8] SUNSTEIN, Cass. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court. Harvard: Harvard University Press, 1999

[9] Barroso chega a falar que casos assim nem são de judicialização, mas de exercício de direito subjetivo. Conferir o texto: “Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”, disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/pdf/estudobarroso.pdf>


Cândice Lisbôa AlvesCândice Lisbôa Alves é Bacharel em Direito pela UFV(2004). Mestre pela UFV (2006). Doutora em Direito Público pela Puc Minas(2013). Professora Adjunta I da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (2016). Professora de Organização do Estado e dos Poderes e Jurisdição Constitucional na graduação. Professora de Jurisdição Constitucional no Mestrado em Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Advogada. Coordenadora do grupo de estudos Hoplita, que analisa as atividades contramajoritárias do direito em prol dos direitos fundamentais. Uma das professoras coordenadoras do projeto Ouvidoria Acolhidas (ouvidoria especializada para atender casos de discriminação de gênero e assedio sexual na Universidade Federal de Uberlândia). Coordenadora do projeto Constituição na Escola (projeto de extensão e pesquisa que busca ensinar à crianças e adolescentes o conteúdo da Constituição, elegendo pontos relevantes para o incentivo à cidadania).


Imagem Ilustrativa do Post: Detail of the temple of Hadrian, Rome // Foto de: Helen Simonsson // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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