Coluna ASSET/SC
No apagar das luzes de 2019 o Supremo Tribunal Federal passou a considerar crime o não pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Isto significa que os administradores responsáveis pelas empresas que não efetuarem o recolhimento de ICMS ao Estado poderão ser processados por crime de apropriação indébita tributária, com base no artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90.
Nos moldes do controverso julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 163334 o STF firmou entendimento de que:
“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990”.
O entendimento firmado pelo STF repercutiu no judiciário, tanto que recentemente, no Habeas Corpus 399.109/SC, o STJ também manifestou posicionamento no sentido de considerar crime deixar de recolher ICMS declarado ao Fisco e não pago.
De acordo com o entendimento atual da jurisprudência acerca do tema, o não recolhimento de ICMS pode repercutir na aplicação das penalidades previstas no artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, que assim dispõe:
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000):
(...)
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
(...)
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Referido artigo dispõe que constitui crime contra a ordem tributária deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos. Em outras palavras, e conforme julgados citados, entende-se por crime quando o empresário repassa ao cliente final, no preço do seu produto, a quantia devida a título de ICMS e deixa de repassar este valor.
Esse crime é denominado de “apropriação indébita tributária”, isto é, o contribuinte indireto se apropria dos valores que lhe foram entregues pelo contribuinte direto.
Obviamente, para que este crime se caracterize, é necessário que a empresa efetivamente repasse ao consumidor final, integralmente, o valor devido a título de ICMS. Caso contrário não ocorre a apropriação indébita.
Nesta toada, foi publicada recentemente neste mesmo espaço da ASSET/SC uma coluna científica assinada pelo Sr. Velocino Pacheco, auditor fiscal da SEF/SC, que apresentou interessante abordagem sobre o efetivo “repasse” de ICMS ao consumidor final[1].
Tirando uma licença poética para resumir as palavras do texto, temos que, na prática, a grande maioria das empresas do país não impõe preço de produto. As únicas empresas com capacidade de impor preço ao consumidor final são as empresas detentoras de monopólio, situação inclusive vedada e combatida pelo governo federal.
Em verdade as empresas nacionais atuam em consonância com a regra mais clássica do mercado consumidor: DEMANDA x CONSUMO. Aumentando ou diminuindo a demanda do produto ou a ânsia pelo consumo de determinado produto seus preços sobem ou descem.
Supondo que determinada empresa por conta do regime de concorrência não consiga vender todos seus produtos, ela é obrigada a baixar o preço para fazer girar seu estoque. Típico caso dos feirões de produtos. Neste tipo de situação o industrial muitas vezes opera no prejuízo e arca sozinho com os tributos incidentes sobre a operação.
Se o tributo em uma mínima parte é arcado também pela empresa, o crime de apropriação indébita fica descaracterizado.
Fora a interessante abordagem do tema acima, ainda, para empresas que recolhiam seus tributos sob a modalidade do Simples Nacional, há ainda mais um aspecto a se considerar.
É até plausível que um empresário cuja empresa recolhe o ICMS sob o regime do Lucro Presumido ou do Lucro Real efetivamente repasse no preço do seu produto a quantia devida a título de ICMS eis que a alíquota é fixa. Sempre será 17% (dezessete por cento), ou 12%(doze por cento) ou etc...
Todavia, na modalidade tributária do simples nacional o recolhimento de tributos e contribuições tem como base de apuração a receita bruta e não a operação de venda de mercadoria. Ou seja, o tributo será calculado em alíquota determinada sobre o faturamento e não sobre o produto vendido ao consumidor final.
Não obstante isto, no simples nacional é possível definir tanto regime de caixa quanto regime de competência. Isso significa que a apuração do tributo devido pode se dar tanto pela data da venda quando pela data em que o valor foi efetivamente recebido.
O Simples Nacional foi instituído pela Lei Complementar 123/2006, que assim prevê em seu artigo 22 e seguintes:
Art. 22. O Comitê Gestor definirá o sistema de repasses do total arrecadado, inclusive encargos legais, para o:
I - Município ou Distrito Federal, do valor correspondente ao ISS;
II - Estado ou Distrito Federal, do valor correspondente ao ICMS;
III - Instituto Nacional do Seguro Social, do valor correspondente à Contribuição para manutenção da Seguridade Social.
Art. 23. As microempresas e as empresas de pequeno porte optantes pelo Simples Nacional não farão jus à apropriação nem transferirão créditos relativos a impostos ou contribuições abrangidos pelo Simples Nacional. (grifado).
Em outras palavras, o Contribuinte adepto ao Simples Nacional não se beneficia de crédito e tampouco garante crédito aos seus clientes. Todo o valor devido a título de ICMS (assim como outros tributos) descola-se da operação de mercantilização ficando adstrita ao faturamento bruto da empresa. Diferente das empresas no Lucro Presumido ou no Lucro Real, referido tributo (ICMS) é repassado ao Estado pela União, sem qualquer gerência da empresa que ultrapasse a mera informação de seu faturamento.
Ademais, para empresas no simples nacional, para fins de alíquota e enquadramento, é utilizado o sistema de Receita Bruta Acumulada (RBA) ou Receita Bruta Acumulada nos 12 meses (RBT12) expressamente previsto nos Art. 3º e Art. 18 da LC 123/2006, que institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.
Resumidamente, a Receita Bruta Acumulada nos 12 meses (RBT12) anteriores ao período de apuração serve para determinar a faixa e alíquota do Simples Nacional através de complexo cálculo que considera o faturamento declarado, “o anexo” no qual a empresa está enquadrada e o montante a deduzir do valor a ser pago.
Das tabelas insculpidas na LC 123/2006 infere-se que tanto a alíquota do principal do valor a ser recolhido a título de simples nacional, quanto a quota parte na repartição relativa ao ICMS variam, mensalmente, em função do faturamento declarado pela empresa.
Repassadas as informações, sob o regime de caixa ou competência, relativas ao faturamento dos últimos 12 meses, para a União, é gerado o Documento de Arrecadação do Simples Nacional (DAS) com vencimento para o dia 20 do próximo mês.
Portanto, empresa adepta do simples nacional não possui a informação do quanto terá de recolher a título de Simples Nacional (muito menos o correspondente ao ICMS) no momento da venda, eis que o valor efetivamente devido só será conhecido após informar o faturamento total do mês, que junto dos outros 11 (onze) meses anteriores enquadrará a empresa na alíquota respectiva.
No entanto, é virtualmente impossível que o empresário adepto do simples nacional cometa tal crime. Isto, pois ele simplesmente não sabe, no momento da venda, o quanto será devido a título de ICMS. Conforme dito, referida alíquota somente será sabida após informar o faturamento do mês inteiro, soma-lo ao faturamento dos últimos 11 (onze meses) e aplicar na fórmula do Simples Nacional.
O empresário do Simples Nacional não tem como precificar o ICMS do seu produto e repassar o cliente, ele tem uma mera noção do quanto será pago eis que a alíquota do ICMS será calculada ao término do mês, considerando o faturamento declarado nos últimos 12 meses e informada em DAS com vencimento para o dia 20 do mês seguinte.
Se o empresário não sabe o quanto será devido a título de Simples Nacional (e por consequência de ICMS do Simples) não há como concluir que ele está repassando o valor no preço do produto ou mesmo se apropriando de tal quantia.
Não há como atribuir conduta criminosa ao empresário que em virtude de sua adesão ao Simples Nacional, no momento da venda ou do faturamento não sabe e não tem conhecimento da alíquota efetiva devida a título de Simples Nacional, logo, não se caracteriza nem o repasse do tributo no preço da mercadoria tampouco a apropriação indébita do mesmo.
Sem que o Contribuinte saiba a alíquota do ICMS não há como sustentar o argumento de que o ICMS é repassado ao consumidor final, logo, não existe como atribuir ao empresário adepto do Simples Nacional conduta criminosa de Locupletamento do ICMS pelo mero não pagamento.
Notas e Referências
[1] https://emporiododireito.com.br/leitura/o-icms-declarado-e-o-crime-de-apropriacao-indebita-tributaria, acesso em 24.11.2020
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