O ICMS declarado e o crime de apropriação indébita tributária

11/11/2020

O ICMS é classificado como imposto lançado por homologação, ou seja, o sujeito passivo tem o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa (CTN, art. 150). O lançamento opera-se pelo ato em que a autoridade homologa a atividade do sujeito passivo, expressa ou tacitamente, por decurso de prazo (§ 4º). O imposto a recolher apurado pelo sujeito passivo deve ser informado ao Fisco, conforme art. 168 do Anexo 5 do RICMS-SC/2001.

Mas, o que acontece se o contribuinte apurar o imposto, declarar e não recolher?

O Ministério Público catarinense tem entendido que o não recolhimento caracteriza o crime de apropriação indébita tributária, previsto no inciso II do art. 2º da Lei 8.137/1990, tipificado da seguinte forma: “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. A caracterização da apropriação indébita decorre do termo “cobrado”, utilizado pelo legislador. Então, se uma mercadoria é vendida por R$ 60,00, está incluído nesse preço ICMS no valor de R$ 10,20. Esse imposto estaria sendo “cobrado” do consumidor, embutido no preço, e se não for recolhido ao Erário, estaria havendo uma apropriação indébita do imposto.

A tese foi acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça e, mais recentemente, pelo Supremo Tribunal Federal, como exemplifica o Recurso Extraordinário com Agravo 1.192.092 SC que decidiu: “o ICMS é imposto indireto cuja carga econômica recai sobre o consumidor final, de forma que o comerciante detém tão somente a obrigação de recolhimento e repasse do tributo aos cofres públicos”. Entende o tribunal que “cobrado” significa o tributo que é acrescido ao preço da mercadoria, pago pelo consumidor — contribuinte de fato — ao comerciante, que deve recolhê-lo ao Fisco. O consumidor paga mais caro para que o comerciante recolha o tributo à Fazenda estadual. Desse modo, o valor do ICMS cobrado em cada operação não integra o patrimônio do comerciante, que é depositário desse ingresso de caixa. Portanto, a conduta não equivale a mero inadimplemento tributário, e sim à apropriação indébita tributária. A censurabilidade está em tomar para si valor que não lhe pertence. Para caracterizar o tipo penal, a conduta é composta da cobrança do consumidor e do não recolhimento ao Fisco.

No mesmo sentido, decidiu o tribunal no Habeas Corpus 172.628 SC, relator Min. Alexandre de Moraes: considerando que os pacientes detinham os valores, mas optaram pelo não repasse ao Estado, resta clarividente que as suas condutas amoldam-se, perfeitamente, ao injusto típico penal descrito no art. 2°, inciso II, da Lei n. 8.137/90, que tem por desiderato repreender os empresários que, apesar de repassarem o tributo aos consumidores de suas mercadorias ou serviços, deixam de recolher aos cofres públicos o valor a ser suportado por estes.

É isso mesmo? O sujeito passivo apenas repassa ao Fisco o imposto cobrado do consumidor? Ou ele arca com parte do ônus tributário? Afinal, o art. 166 do CTN admite que, para pleitear a restituição do indébito, o sujeito passivo pode provar que assumiu o encargo financeiro. Então, se o contribuinte de direito suporta, ao menos em parte, o tributo exigido pelo Estado, não é certo que ele apenas transfere ao Poder Público o imposto que cobrou do consumidor.

Para entender o que acontece, deve-se distinguir entre repercussão jurídica e repercussão econômica do tributo. A primeira refere-se apenas a que o valor do tributo integra o preço cobrado do consumidor. A segunda leva em conta o efeito do tributo sobre o mercado e o mecanismo de formação do preço.

Em regime de concorrência, em que o volume de produção de cada empresa não é suficiente para afetar os preços (poder de monopólio), o preço pelo qual a mercadoria será comercializada é o resultado da interação entre oferta e procura. Ou seja, o preço não é determinado por quem vende a mercadoria, mas pelo mercado. Como, pela lei da demanda, a procura por uma mercadoria é inversamente proporcional ao preço, a reação dos consumidores a um aumento de preço é a diminuição das quantidades demandadas. A isto, os economistas chamam de elasticidade-preço da demanda, que pode ser definida como “a razão entre a variação relativa na quantidade procurada do bem em consideração, dada uma variação relativa de seus preços” (GARÓFALO; CARVALHO, 1990, p. 142). Trata-se de uma limitação à determinação do preço pelo vendedor. A esse propósito, já lecionava Rubens Gomes de Sousa:

A mesma observação demonstra ainda a impropriedade da conceituação dos impostos sobre transações civis ou comerciais como impostos “indiretos”, de acordo com a definição clássica de tais impostos como sendo cobrados do “contribuinte legal” (o vendedor) e repercutidos por este sobre o “contribuinte de fato” ou “econômico” (o comprador). Com efeito, a repercussão do imposto cobrado sobre uma transação depende essencialmente da rigidez ou elasticidade da procura da utilidade transacionada. A transferência do ônus fiscal fazendo-se necessariamente por um acréscimo no preço dos bens ou serviços, o imposto somente se repercutirá integralmente se as condições do mercado permitirem que o acréscimo de preço seja igual ao montante do tributo. Fora dessa hipótese, ocorrerá a “repercussão inversa” e o tributo será parcial ou totalmente absorvido pelo “contribuinte legal”.

Nem mesmo uma disposição legal que vise tornar a repercussão juridicamente obrigatória pode ter a virtude de alterar a lei da oferta e da procura em contrário à conclusão que acaba de ser exposta. De fato, uma disposição desse tipo apenas dá origem, juridicamente, a uma relação de direito privado entre o “contribuinte legal” e o “contribuinte de fato”, mas nem sequer afeta a relação de direito público entre o “contribuinte legal” e o poder tributante. E muito menos afeta o aspecto econômico do problema, que continua regido pela elasticidade da procura.

Confrontando com uma disposição dessa ordem, o “contribuinte legal”, na impossibilidade de majorar o preço de venda em importância igual ao imposto, terá de reajustá-lo de modo a cumprir formalmente a lei e ao mesmo tempo continuar a vender o produto ou o serviço. Esse reajustamento terá forçosamente de fazer-se à custa dos dois elementos de que se compõe o preço, isto é, o valor de custo e o lucro. Esgotada a capacidade de compressão do primeiro, o reajustamento se refletirá sobre o segundo, com a consequência, já referida, da absorção do imposto pelo “contribuinte legal” até o limite da redução da margem de lucro. Os impostos sobre transações tendem, portanto, a agravar o valor do patrimônio transacionado, ou a renda bruta do vendedor. O fato desta situação ocorrer, como é evidente, com intensidade máxima nos impostos de incidência única, confirma a conclusão de que somente os de incidência múltipla correspondem, com um grau razoável de aproximação, ao conceito de tributos sobre circulação de riquezas (SOUSA, 1956, p. 10).

Comunga do mesmo entendimento Alfredo Augusto Becker, segundo o qual, “o legislador, ao criar a incidência jurídica do tributo, simultaneamente, cria regra jurídica que outorga ao contribuinte de jure o direito de repercutir o ônus econômico do tributo sobre outra determinada pessoa”. No entanto, prossegue o mesmo autor, “essa repercussão jurídica do tributo, de modo algum, significa a realização da repercussão econômica do mesmo” (BECKER, 2002, p. 534). A repercussão econômica pode ocorrer apenas parcialmente ou não se realizar, dependendo de fatores de mercado. “Os fatores decisivos da repercussão econômica do tributo são estranhos à natureza do tributo e determinados pela conjuntura econômico-social” (idem, p. 541).

Então, podemos dizer que a regra do art. 166 estabelece a presunção de que o imposto irá repercutir sobre o contribuinte de fato. Nesse caso, a condição é que o contribuinte de direito esteja autorizado pelo contribuinte de fato a pedir restituição. Assim, de um acordo entre os dois, o contribuinte de fato poderá beneficiar-se da restituição. Desse modo, restabelece-se uma situação de justiça entre adquirente e vendedor (suum cuique tribuere). Trata-se, porém, de presunção relativa (juris tantum) que admite prova em contrário. O CTN admite que o requerente demonstre que arcou com o ônus do imposto e não o repassou no preço cobrado. Assim, o CTN reconhece que o ônus do imposto, no todo ou em parte, pode recair sobre o contribuinte de direito que, no caso, não é um mero agente arrecadador do imposto cobrado do consumidor, mas arca, ao menos em parte com o ônus da exação.

No caso de preços administrados (serviços públicos concedidos), a Primeira Turma do STJ entendeu que “o preço dos serviços de transporte aéreo era controlado pelo Governo Federal (Departamento de Aviação Civil), ficando a recorrente sem campo de ação para estabelecer qualquer critério de fixação de sua remuneração. Não há, in casu, formação da base tarifária nem possibilidade de repasse de qualquer tributo aos usuários” (REsp 902.327 PR).

A repercussão do tributo sobre o consumidor (como critério caracterizador dos tributos indiretos) tem sido causa de polêmica entre juristas e economistas. Ora, dizemos que uma empresa está em regime de concorrência – lembrando que a livre concorrência está prevista no art. 170, IV, da Constituição Federal como um dos princípios informadores da ordem econômica – quando a quantidade da mercadoria por ela comercializada é insuficiente para influir na determinação do preço. A empresa, nesse caso, é uma tomadora de preços determinados pelo mercado, representando a posição de equilíbrio entre oferta e demanda. “Quando o preço fixado pelo mercado vier a sê-lo a um nível igual ao mínimo do custo variável médio, o prejuízo total relativo passaria a ser relativo. A sua magnitude igualaria in totum o custo fixo total, visto que, nesta eventual situação, este custo em nada mais estaria sendo coberto” (GARÓFALO; CARVALHO, 1990, p. 378). Esse raciocínio, entretanto, não é válido para mercados não concorrenciais em que os agentes econômicos, devido ao volume de mercadoria que transacionem, tenham algum poder de influenciar preços.

O seguinte exemplo numérico ajuda a compreender a questão: seja uma situação em que não há tributação na comercialização e que a empresa vende sua mercadoria pelo preço de R$ 50,00. A empresa recebe R$ 50,00 nessa operação comercial. Vamos imaginar agora que foi criado um imposto sobre as operações de circulação de mercadorias, com alíquota de 17%. Acrescentado o imposto ao preço praticado pela empresa (calculado “por dentro”), o preço cobrado do consumidor passa a ser de R$ 60,24, dos quais R$ 10,24 correspondem a imposto.

No entanto, como a empresa é uma tomadora de preços, suponhamos que, por esse preço, ela não consegue vender sua mercadoria. Então, ela tem de baixar o preço (segundo a lei da demanda, conhecida por qualquer dono de mercadinho: quanto maior o preço, menor a quantidade demandada e vice-versa). Suponhamos que o preço que o mercado aceita é de R$ 55,00, dos quais R$ 9,35 corresponde ao imposto que deve recolher aos cofres públicos. Descontado o imposto, a empresa irá receber R$ 45,65.

Podemos, então, distinguir entre a repercussão jurídica e a repercussão econômica do tributo. O imposto que será recolhido ao Estado compõe o preço cobrado do consumidor (p = R$ 55,00; I = R$ 9,35). Esta é a repercussão jurídica.

Contudo, antes da tributação, a empresa recebia R$ 50,00, enquanto, depois da tributação, passa a receber apenas R$ 45,65. Ou seja, a incidência do imposto implica a redução da margem de lucro da empresa. Esta é a repercussão econômica. O efeito será tanto maior ou menor conforme a elasticidade-preço da demanda.

A repercussão econômica do tributo leva a duas consequências: a) redução da quantidade comercializada da mercadoria; e b) redução da margem de lucro o que pode levar a empresa a sair do mercado. A tributação plurifásica não-cumulativa é neutra somente em relação à tomada de decisão dos agentes econômicos (se a tributação atingir a todos sem exceções). Mas, ela tem efeito sobre o nível de atividade econômica. Por isso que os benefícios fiscais, dados sem critério, representam, para a empresa em concorrência, uma vantagem competitiva e a distorção do sistema de preços.

Podemos concluir, com segurança que o contribuinte de direito não é um mero cobrador de impostos que repassa ao Erário. Isto por que o imposto não repercute integralmente sobre o consumidor, mas é arcado, ao menos em parte, pelo contribuinte. Portanto, o crime de apropriação indébita tributária fica descaracterizado. O valor do ICMS cobrado em cada operação de fato integra o patrimônio do comerciante, que não é mero depositário desse ingresso de caixa.

 

Notas e Referências

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Lejus, 2002.

GARÓFALO, Gilson de Lima; CARVALHO, Luiz Carlos Pereira de. Teoria Microeconômica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1990.

SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1956. 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Planilha para Social Media // Foto de: Trianons Oficial // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/h8NCzg

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura