A questão relativa à aplicação retroativa do acordo de não persecução penal – ANPP, envolvendo o limite temporal do instituto, vem sendo muita debatida na doutrina e na jurisprudência, tendo as cortes superiores, principalmente o Superior Tribunal de Justiça, se posicionado firmemente pela negativa.
Vale lembrar que o acordo de não persecução penal é figura relativamente nova no nosso ordenamento jurídico, consistindo em uma forma de resolução penal pactuada pré-processual trazida pela Lei n. 13.964/19, chamada “Lei Anticrime”, que introduziu no Código de Processo Penal o art. 28-A.
O instituto já vinha tratado, anteriormente, pela Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. A Lei Anticrime, entretanto, trouxe importantes alterações, estipulando um novo regime jurídico para o referido acordo.
Conforme o disposto no art. 28-A do CPP, não sendo caso de arquivamento do inquérito policial e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Esse acordo deve prever condições ajustadas com o investigado, as quais poderão ser propostas cumulativa ou alternativamente.
Para que o Ministério Público proponha ao investigado o ANPP, são necessários os seguintes requisitos:
a) não se tratar de caso de arquivamento (leia-se: deve existir justa causa para a ação penal);
b) infração penal cometida sem violência ou grave ameaça;
c) infração com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos;
d) confissão, formal e circunstanciada, da prática da infração penal pelo investigado ao Ministério Público, na oportunidade do ANPP (ou durante as investigações);
e) o acordo deve se mostrar necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, no caso concreto.
As condições ajustadas com o investigado, que podem ser propostas cumulativa ou alternativamente pelo Ministério Público, são as seguintes:
a) reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
b) renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
c) prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Código Penal.
d) pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito;
e) cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
O ANPP será formalizado por escrito e deverá ser firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor, sendo levado, em seguida, a homologação em audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade e sua legalidade.
Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.
A pergunta que se faz, entretanto, é a seguinte: poderia o instituto do ANPP ser aplicado retroativamente a fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei n. 13.964/19? Ou seja, ser aplicado após o recebimento da denúncia, durante a instrução processual ou mesmo após o feito sentenciado?
A resposta é negativa.
A própria essência do instituto – evitar a deflagração do processo criminal – já demonstra a impossibilidade de sua aplicação retroativa a fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, ainda que se alegue eventual reflexo na seara penal.
O Superior Tribunal de Justiça, em diversos precedentes, vem se orientando também pela impossibilidade de aplicação retroativa do ANPP, vinculando sua propositura ao não recebimento da denúncia.
Nesse sentido: “O acordo de não persecução penal é instituto mediante o qual o órgão acusatório e o investigado celebram negócio jurídico em que são impostas condições, as quais, se cumpridas em sua integralidade, conduzem à extinção de punibilidade do agente. O caráter predominantemente processual, em que pese ter reflexos penais, e a própria razão de ser do instituto - evitar a deflagração de processo criminal, conduzem a se sustentar que sua retroatividade, diversamente do que ocorre com as normas híbridas com prevalente conteúdo material (de que é exemplo o dispositivo que condiciona a ação penal à prévia representação da vítima), deve ser limitada ao recebimento da denúncia, isto é, à fase pré-processual da ‘persecutio criminis’.” (STJ - AgRg no REsp 1937513/SP – Rel. Min. Rogério Schietti Cruz – Sexta Turma – DJe 21.09.2021).
Também: “É indevida a inovação recursal em embargos de declaração e a tese defensiva vai de encontro à jurisprudência desta Corte, que não admite a retroação do acordo de não persecução penal aos processos por fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019, quando a persecução penal em juízo já estava iniciada, com denúncia recebida anteriormente à inovação do Pacote Anticrime.” (STJ -– AgRg nos EDcl no AREsp 1488733/SP - Rel. Min. Rogério Schietti Cruz – Sexta Turma – DJe 21.09.2021).
Ainda: "A norma do art. 28-A do CPP, que trata do acordo de não persecução penal, somente é aplicável aos processos em curso até o recebimento da denúncia." (STJ - EDcl no AgRg no AREsp 1375327/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha – Quinta Turma - DJe 05.03.2021).
Portanto, infere-se dos julgados acima mencionados, e de outros inúmeros com teor semelhante, que não é possível a aplicação retroativa do acordo de não persecução penal – ANPP - a fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei n. 13.964/19, quando já recebida a denúncia, quando iniciado o processo criminal ou mesmo após a condenação, tenha ou não transitado em julgado.
Embora o instituto do ANPP tenha inegáveis reflexos penais, o art. 28-A do Código de Processo Penal não pode ser considerado uma norma híbrida (com conteúdo penal e processual) a ensejar sua aplicação retroativa.
Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações
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