Por Matheus Martins Moitinho - 12/03/2016
O nosso legislador constituinte originário (CF/88) previu na redação do art. 5º, XXXVIII a instituição do Tribunal do Júri, a qual se encontra forjada pela confluência dos seguintes elementos: a) a plenitude da defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Dentre os motivos ensejadores da preservação do Tribunal do Júri no sistema criminal brasileiro, tem-se o fato de que este se mostraria como uma via de acesso da comunidade ao cenário decisório/judicial, na tentativa de se conferir foros democráticos através do julgamento de um cidadão por seu semelhante e membro da localidade em que se deu o fato a se apurar.
Sobre o assunto, assim ensina o respeito Walfredo Cunha Campos:
“O Júri se coloca, ao lado do plebiscito e referendo, como instrumento de participação direta do povo nas decisões políticas, a caracterizar, em conjunto com tais instrumentos participativos, nossa democracia como semidireta (que, em regra, se exerce através de representantes eleitos e, por exceção, sem intermediários, pelo próprio povo). Daí a enorme importância do Júri para o despertar e o amadurecimento da consciência cívica, chamando o povo agora não apenas para criticar, olhando de fora, mas para assumir, ele próprio, uma fatia do poder de decisão, passando-lhe a responsabilidade de parte da política criminal.”. (CAMPOS, 2015, p. 267)
Mais à frente, dessa vez no art. 129, I, acertadamente a Assembléia Constituinte fez questão de estabelecer o sistema acusatório como baliza a ser seguida em matéria processual penal, demonstrando claro intuito de expurgar o ranço inquisitorial que sempre dominou (e muitas vezes ainda insiste em dominar) o processo criminal brasileiro.
Por força da incidência do sistema da convicção íntima quanto aos componentes do Conselho de Sentença, tem-se que as razões de decidir não precisam, ou melhor, não devem ser exteriorizadas, de modo que a garantia da soberania dos veredictos encontra-se em posição de coligação com o sigilo das votações. É que o jurado é juridicamente leigo, não possui o domínio da técnica jurídica, de modo que forma a sua convicção a partir do quanto é produzido a título de prova na instrução plenária, bem como através dos debates travados entre o Ministério Público e assistente de acusação (este eventualmente) e a defesa do Acusado.
No ano de 2008, o legislador ordinário promoveu uma reforma no Código de Processo Penal, através do advento da Lei nº 11.689/2008, donde se abraçou o sistema do exame cruzado para a grande maioria dos procedimentos (cross-examination), em sede de oitiva de testemunhas e realização de perguntas pelas partes durante o cenário instrutório, restando resquícios do sistema presidencialista apenas quanto a realização do interrogatório do acusado inicialmente pelo Magistrado, ou a sua total manutenção no seio dos processos de competência do Tribunal do Júri, conforme a redação do art. 473, do CPP atual.
Malgrado o legislador tenha sido tímido na reforma aludida, este articulista é partidário de uma opinião que advoga a extensão do sistema do exame cruzado para todos os procedimentos criminais, inclusive nos feitos de competência do Tribunal do Júri, uma vez que insistir no presidencialismo instrutório seria permanecer no continuísmo da redução do papel do Magistrado a mero intérprete das partes quando da formulação de perguntas, bem como uma incoerência com o princípio acusatório adotado no art. 129, I, CF.
Firmada essa premissa básica, não raro se tem notícias de que o órgão acusatório tem se utilizado em sessões plenárias do Tribunal do Júri do expediente da leitura da denúncia para a testemunha arrolada para a instrução em plenário, sob o questionável argumento de que serviria para situá-la quanto aos fatos, o que, no entender deste autor, traduz-se em postura processual veiculadora de nulidade absoluta, em razão da violar o princípio da plenitude da defesa, bem como deturpar o sistema de convicção íntima que informa a secular instituição do júri.
O alistamento do jurado que servirá ao Tribunal do Júri, por mais que se faça por meio de mecanismos que procurem selecionar indivíduos com certa postura de credibilidade perante a comunidade (art. 425, § 2º, CPP), não é dado gerador da certeza de que se terá um julgamento pautado na mais absoluta justiça. Pessoas com as mais variadas posições sociais, vindas de segmentos profissionais diversos e com diferentes concepções leigas sobre o valor da justiça são selecionadas para essa importantíssima função, a fim de que decidam a respeito da (ir) responsabilidade penal do réu.
Atento a isso, o legislador aderiu ao sistema da convicção íntima em relação ao jurado, o qual somente expressa a sua decisão mediante o depósito do seu voto na urna, quando instalada a sala secreta de votação. Não se há de exigir do jurado conhecimento profundo a respeito do Direito, sendo até mesmo desaconselhável que atores processuais se utilizem do “jurisdiquês” e formalismos durante a sessão plenária, acaso desejem obter algum êxito pela via de atingir o convencimento dos 07 (sete) membros componentes do Conselho de Sentença. Afinal de contas, direito é linguagem e o bom êxito do processo comunicativo pressupõe o uso da linguagem adequada ao cenário do diálogo.
Na medida em que o legislador adota o sistema da convicção íntima como modelo para o atendimento ao dever de fundamentação (art. 93, IX, CF/88), qualquer ato que venha a antecipar o momento de formação de convicção pelo jurado deve ser repreendido pelo Magistrado, o qual preside a Sessão Plenária de Julgamento, devendo este exercer o poder de polícia e manter a ordem dos trabalhos. Isso pode se dar, exemplificadamente, pelo uso de algemas fora das hipóteses da súmula vinculante nº 11/STF, o uso de uniformes penitenciários por réus presos ou, no caso em evidência, o uso indiscriminado do expediente de leitura da denúncia para as testemunhas.
No modelo de justiça criminal brasileiro se tem a anacronia do desequilíbrio processual desde o seu nascedouro (com a persecução penal inquisitorial e sem ampla defesa e contraditório), perpassando para o ritual judicial em que o Ministério Público senta-se à direita do Magistrado (conforme o art. 18, inciso I, alínea “a”, LC nº 75/93, regente da carreira do MP), layout esse que tem sido odiosamente tolerado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, em que pese se ter como pressuposto básico para uma Constituição que se afirme garantista o pleno respeito a paridade de armas.
O mecanismo do uso da leitura da denúncia para as testemunhas arroladas nos autos, apesar de ser majoritariamente aceito pelos Tribunais Superiores, precisa ser revisto em matéria de Tribunal do Júri. Por evidente, o jurado sorteado para a composição do Conselho de Sentença somente se deparará com o caso a ser submetido a julgamento no momento em que se sentar na sessão reservada aos julgadores da ocasião, de modo que a apresentação e repetição da versão apresentada pelo Ministério Público às testemunhas pode se revelar como perigoso fator de atingimento subreptício do convencimento do jurado.
A peça acusatória é o instrumento que inaugura a marcha processual em face do acusado, contendo apenas as razões colocadas pelo ente ministerial para fins de atingir o convencimento do julgador. Não raro, a utilização de termos rebuscados seduzem o espectador leigo e que nada entende do que significa tais termos. Soa bem para os ouvidos de muitos, principalmente nas Comarcas interioranas, concordar com o que não se entende, muitas vezes por uma questão de deferência ou intimidação quanto às autoridades interlocutoras, por mais que alguns argumentos não tenham tanta autoridade argumentativa, lamentavelmente.
Como o sistema do exame cruzado e o princípio da ampla defesa determinam que as testemunhas arroladas pelo órgão acusatório sejam ouvidas primeiramente, o Ministério Público começa a formular as perguntas, obtendo, caso utilize-se da denúncia como suporte para a sua produção probatória, o trunfo de dizer a primeira versão nos autos, sem que haja qualquer contraposição por parte da defesa. Pior do que isso, poderá fazê-lo por repetidas vezes, já que as testemunhas pendentes de oitiva devem manter-se incomunicáveis.
Entretanto, como dito alhures, a convicção do julgador leigo é formada a partir da instrução em plenário e dos debates travados pelas partes na sessão de julgamento. A leitura da peça de denúncia – que não é elemento de prova – para a testemunha acaba por se transmudar em antecipação de utilização de documento que poderia ser invocado somente na fase de debates propriamente dita, gerando não só tumulto processual apto a ser sanado pela intervenção do Magistrado presidente da sessão de julgamento, como também atua como forte componente de captura inconsciente do convencimento do jurado.
A repetição da leitura da denúncia acaba por irradiar efeitos conducentes àquilo que o mestre Aury Lopes Jr (2014, p. 365). tem ensinado como quadro mental paranóico, fazendo que o julgador tome a hipótese que lhe é colocada como um patamar de certeza, de modo a se comportar, ainda que de maneira involuntária, a absorver somente aquilo que vier a confirmar aquela representação de tiver feito de maneira concludente no seu inconsciente. Em linhas resumidas, o julgador procurará a todo o instante a confirmação do seu juízo prematuro de convicção, que, repita-se, foi criado por meio de procedimento subreptício.
Fatores espaciais contribuem ainda mais para que o expediente analisado seja prontamente rechaçado. A disposição dos plenários das salas de sessões do Tribunal do Júri pelo Brasil afora é nitidamente violadora de uma das garantias processuais mais básicas, que é a paridade de armas. A posição em que se senta o membro do Ministério Público, ao lado do juiz e próximo dos jurados, acaba por gerar no inconsciente de muitos uma suposta relação de credibilidade, atuando de maneira prejudicial à presunção da inocência do acusado sem que muitos se dêem conta disso.
Isso se dá por força da permanência do disposto no art. 18, inciso I, alínea “a”, da LC nº 75/93, regente da carreira do Ministério Público, o qual não consegue resistir a um exame raso de confronto com a Constituição Federal. Isso porque, em que pese o Ministério Público ser uma função essencial à Justiça, o mesmo qualificativo foi atribuído à advocacia, pública e privada, bem como à Defensoria Pública, instituição esta que, em pleno ano de 2016, após quase 28 (vinte e oito) anos de advento da Constituição Federal vigente, ainda se estabelece a passos curtos no país, mesmo com o grande esforço dos membros que fazem parte de referida instituição.
Deste modo, somadas a disposição especial do salão do júri, a ausência de contato do jurado anterior com o caso e o nascimento já empenado da situação processual do acusado (Goldschimit), acrescendo-se ao fato de que o processo penal serve a uma dupla instrumentalidade (servir como caminho necessário para eventual aplicação de pena, acaso o cenário probatório confirme a hipótese acusatória; servir como meio para o fiel respeito às garantias fundamentais do acusado, sujeito débil no processo), constitui-se como verdadeiro dever do Magistrado vedar a prática de leitura da peça acusatória às testemunhas que irão depor na instrução plenária, sob pena de nulidade absoluta, uma vez que se estará diante de evidente prejuízo ao princípio da plenitude da defesa do acusado.
Notas e Referências:
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 14ª Edição. Editora Saraiva, Porto Alegre.
CAMPOS, Walfredo Cunha. Tribunal do Júri. 4ª Edição. Editora Atlas, São Paulo.
. Matheus Martins Moitinho é graduado pela UNIFACS (2008.2) e Especialista em Direito do Estado pelo JUSPODIVM. Aprovado em diversos concursos públicos, dentre os quais: Advogado da Caixa Econômica Federal (2012) e Defensor Público Substituto do Estado de Sergipe. Atualmente é Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. .
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