A Ilusão da Verdade Real: O Processo Penal inquisitório que vigora no Brasil

18/02/2017

Por Vinícius Anacleto Burato – 18/02/2017

1. O Mito do Sistema Misto[1]

Costuma-se dividir o Processo Penal em três sistemas: inquisitório, acusatório e misto. Para melhor compreendermo-los, é necessário trazer ao texto as principais características do sistema inquisitório e do acusatório, para após relacioná-los com o dito sistema misto e, por fim, com a busca da verdade real. Em síntese, segundo Aury Lopes Jr. (2015, p. 53, grifo do autor), as características do sistema inquisitório são:

a) gestão/iniciativa probatória nas mãos do juiz (figura do juiz-ator e do ativismo judicial = princípio inquisitivo);

b) ausência de separação das funções de acusar e julgar (aglutinação das funções nas mãos do juiz);

c) violação ao princípio ne procedat iudex ex officio, pois o juiz não pode aturar de ofício (sem prévia invocação);

d) juiz parcial;

e) inexistência de contraditório pleno;

f) desigualdade de armas e oportunidades.

De outro lado, as características do sistema acusatório (LOPES JR, 2015, p. 53, grifo do autor):

a) gestão/iniciativa probatória nas mãos das partes (juiz-espectador = princípio acusatório ou dispositivo);

b) radical separação das funções de acusar e julgar (durante todo o processo);

c) observância do princípio ne procedat iudex ex officio;

d) juiz imparcial;

e) pleno contraditório;

f) igualdade de armas e oportunidades (tratamento igualitário).           

A partir das singularidades destes sistemas, grande parte da doutrina afirma ser nosso sistema processual misto, por considerá-lo inquisitório durante a fase investigatória (inquérito policial), e acusatório durante a fase judicial. No entanto, ao tomar percepção da realidade brasileira, verifica-se a inexistência de sistema misto, pois, mesmo na fase judicial (acusatória), com a divisão entre as funções de acusar e julgar, o juiz ainda é o detentor da gestão probatória, ao invés de ser alguém estranho ao processo, que toma conhecimento da reconstrução dos fatos através das partes.

Para fins de demonstração, através leitura dos artigos 156 (busca de provas pelo juiz), 209 (juiz ouvir testemunhas além das indicadas pelas partes), 311 (decretar prisão preventiva de ofício), 383-384 (modificar a imputação penal), 385 (condenar o acusado, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição), entre outros, todos do Código de Processo Penal, a lei permite que o juiz tenha interesse na causa, instruindo o processo com uma pretensão condenatória. Isto acaba fazendo com que o juiz assuma funções de delegado, promotor, ou até mesmo de justiceiro, rendendo-se ao clamor público, além de demonstrar que, no dizer de Alexandre Morais da Rosa (2016, p. 331): “Diversos dispositivos do Código de Processo Penal não foram recepcionados pela CR/88 e várias leis posteriores que alteraram parcialmente suas disposições são inconstitucionais.” Visível a existência de uma fraude legalizada.

Portanto, é necessário superar o dito sistema misto e admitir que o Processo Penal brasileiro, no todo, é inquisitório.

Ainda que se diga que o sistema brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador é o inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz. (LOPES JR, 2015, p. 47, grifo do autor).

Em seguimento ao tema abordado no presente tópico, passa-se ao estudo da Verdade Real, com o objetivo de demonstrar seu caráter ilusório e contraditório com o sistema acusatório.

2. A Ilusória Verdade Real

Não bastando à inquisição em sua essência, o Processo Penal brasileiro é norteado pelo mantra da “busca da verdade real”, sendo considerado por grande parte dos teóricos como um dos princípios basilares deste ramo do direito. Importante ressaltar que a discussão acerca do significado de verdade e o caminho a ser trilhado visando sua obtenção, não sendo objeto de aprofundamentos do presente escrito, é capaz de envolver uma série de discussões acerca de seu alcance, o que torna o termo objeto de várias formas de compreensão.

De acordo com Demo (2014, p. 19):

A busca da verdade pressupõe algo que se apresenta e, ao mesmo tempo, se mantém oculto, embora perceptível, uma vez que, se inexistisse como objeto de percepção, não teria como transformar-se em objeto de análise.

Ao realizar uma primeira leitura para buscar uma (possível) compreensão de verdade, ou de forma mais especifica, da Verdade Real, no âmbito do Direito Processual Penal, pode-se chegar à conclusão de que, agindo em “homenagem” a este princípio, está se fazendo a busca do justo, do correto, a fim de não se deixar passar impune aquele que está sendo acusado de ter cometido determinado crime, causando violações ao princípio da presunção de inocência, o que pode levar, em várias situações, o magistrado a ultrapassar de seus limites de atuação.

Neste sentido, as palavras de Yuri Felix e Alexandre Morais da Rosa (2017, p. 68) tornam-se esclarecedoras:

A verdade real, tangenciando o sagrado, cumpre hoje um papel justificador de flexibilização das regras, pois aquele que “combate” em nome da “verdade” está a serviço daquilo que é nobre, logo, tudo lhe é autorizado, pois age em nome do “bem” e do interesse público.           

Este fator é decorrente de que no Processo Penal é comum o entendimento de que o juiz tem o dever de buscar a verdade (real), não podendo se conformar com os elementos constantes no processo, conforme afirma Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 43): “O princípio da verdade real significa, pois, que o magistrado deve buscar provas, tanto quanto as partes, não se contentando com o que lhe é apresentado, simplesmente”. Fernando Capez (2015, p. 71) vai além, ao admitir que: “No processo penal, o juiz tem o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal constante dos autos.” A função de investigar é típica da autoridade policial, também se admitindo a realização da mesma pelo Ministério Público (STF, RE 593.727), onde deve ser exercida respeitando os limites legais. O dever de realização de tarefa investigatória pelo magistrado, ideia predominante no senso comum, faz com que o julgador acabe por assumir uma função que não é sua, deixando a imparcialidade apenas nos escritos de Direito Processual Penal.

Um exemplo[2] demonstra o perigo da Verdade Real: durante a instrução, o Ministério Público, ou querelante na ação penal privada, e o defensor estão satisfeitos com as provas produzidas no processo, porém, o juiz está em dúvida. Pergunta-se: o que o juiz faz quando está em dúvida? Muitos responderiam que se deve absolver o acusado, prevalecendo o in dubio pro reo, ou seja, na dúvida em favor do réu, fundamentando a decisão em uma das hipóteses do artigo 386 do Código de Processo Penal. No entanto, o julgador aplica o artigo 209 do CPP (ouvir testemunhas além das indicadas pelas partes). Pergunta-se: por que o juiz fez isso? Boa parte dos leitores chegaria à conclusão que o julgador tomou tal atitude para “buscar a verdade real”, mas na realidade fez isso para buscar suporte para condenar o acusado, pois a dúvida já bastaria para absolvição. “E a lógica sistemática do in dubio pro reo, no caso da matriz inquisitória, passa a ser in dubio pro hell.[3]

Portanto, sem delongas, “cabe ao juiz garantir direitos processuais, sem participação na gestão da prova ou em nome da ilusória Verdade Real.” (MORAIS DA ROSA, 2016, p. 331, grifo do autor).

3. Conclusão

Diante de tudo que foi exposto neste escrito, o grande objetivo foi trazer a texto o grande paradoxo do Processo Penal brasileiro, ou seja, a busca de uma verdade, dita real, que se demonstra contraditória ao sistema processual acusatório, característico da fase judicial. Ao analisar este princípio para além da superficialidade que lhe é apresentada pelos manuais, é perceptível que “a busca da verdade real” é a grande “fachada” para práticas inquisitórias no curso do processo, onde as manipulações do jogo processual acontecem.

Além disto, o sistema misto revela-se superado, pois “dizer que um sistema “misto” é não dizer quase nada sobre ele, pois misto todos são.” (LOPES JR, 2015, p. 47). Em outras palavras, “como sistemas históricos, atualmente os ordenamentos nacionais guardam, por contingências diversas, características de ambos os sistemas, ou seja, inexiste sistema puro. Daí que se fala equivocadamente de sistemas mistos.” (MORAIS DA ROSA, 2016, p. 150).

Embora inexistindo sistema misto, somando-se com a afirmação doutrinária de que na fase judicial o Processo Penal é orientado pelos ditames do sistema acusatório, apesar deste ser, em tese, perfeito no âmbito teórico, o Processo Penal brasileiro, em sua essência, é inquisitório, pelos motivos já expostos anteriormente.

Portanto, o que precisamos é de um Processo Penal democrático, interpretado à luz da Constituição da República, onde as garantias individuais do acusado prevaleçam, a fim de evitar o arbítrio estatal.

Por fim, a realização de uma “filtragem constitucional” do Processo Penal não se deve simplesmente ao motivo de a Constituição ser Constituição, ou de ostentar o título de “Lei Maior” do Estado e por estar no topo da hierarquia das normas. Deve-se ao fato de ser um documento oriundo de uma luta histórica para a consagração de direitos e garantias essenciais a todos. Seu conteúdo não foi elaborado simplesmente para ser admirado, mas sim, para ser efetivado/aplicado de forma imediata (art. 5º, § 1º, da CR/88). É o que o Processo Penal brasileiro precisa para evoluir e deixar o autoritarismo apenas na história. 


Notas e Referências:

[1] Sobre o assunto: TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas; FACCHI JUNIOR, Edson Luiz. A superação do mito do sistema misto. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/a-superacao-do-mito-do-sistema-misto-por-paulo-silas-taporosky-filho-e-edson-luiz-facchi-junior/>. Acesso em: 02 fev. 2017.

[2] Aos interessados, mais precisamente em 2h08min: YouTube. 03/03/2016 - Processo Penal em Debate: Sérgio Moro e Alexandre Morais da Rosa. Vídeo (3h36min45s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ni8_SFUIeWI&t=7199s>. Acesso em 06 fev. 2017.

[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED JR, Salah H. In dubio pro hell: o princípio mal-dito do processo penal. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2014/07/08/dubio-pro-hell-o-principio-mal-dito-processo-penal/>. Acesso em 04 fev. 2017. (Grifo dos autores).

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 888 p.

DEMO, Wilson. Retórica e Argumentação: Ferramentas úteis para a elaboração de discursos e defesas de teses. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014. 165 p.

FELIX, Yuri; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Novas Tecnologias de Prova no Processo Penal: o DNA na delação premiada. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. 190 p.

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 1148 p.

MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 3. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. 527 p.

­___; KHALED JR, Salah H. In dubio pro hell: o princípio mal-dito do processo penal. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2014/07/08/dubio-pro-hell-o-principio-mal-dito-processo-penal/>. Acesso em 04 fev. 2017.

TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas; FACCHI JUNIOR, Edson Luiz. A superação do mito do sistema misto. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/a-superacao-do-mito-do-sistema-misto-por-paulo-silas-taporosky-filho-e-edson-luiz-facchi-junior/>. Acesso em: 02 fev. 2017.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 1182 p.

YouTube. 03/03/2016 - Processo Penal em Debate: Sérgio Moro e Alexandre Morais da Rosa. Vídeo (3h36min45s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ni8_SFUIeWI&t=7199s>. Acesso em 06 fev. 2017.


vinicius-anacleto-burato. . Vinícius Anacleto Burato é acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Barriga Verde – UNIBAVE, campus Orleans/SC. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


   

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