A hipocrisia que a todos nós consome, parte II: a (des)ordem pública e as lettres de cachet – Por André Sampaio

05/03/2017

Leia também: A hipocrisia que a todos nós consome, parte I: R.I.P. periculum libertatis

Durante o Estado Absolutista um poderoso artifício à disposição do soberano eram as “Lettres de Cachet”; tratavam-se de verdadeiras ordens oriundas diretamente do rei com o condão de, entre outros efeitos, efetuar-se a prisão de qualquer súdito. Funcionava como mecanismo de controle dos indesejáveis, já evidenciando o biopoder prestes a irromper, propiciando certa conservação estrutural ou, em outras palavras, a “ordem pública”, por que assim não dizer?

Extintas com a Revolução Francesa por evidente incompatibilidade com os valores democráticos nela defendidos, atualmente, em nosso sistema, o que mais a elas se assemelha é a prisão preventiva em decorrência de ameaça à “ordem pública”, mas a que essa expressão se refere?

Se analisarmos sumariamente a temática da prisão preventiva, espécie do gênero medidas cautelares, perceberemos que sua ocorrência está vinculada a pelo menos dois requisitos (positivos), quais sejam o fumus commissi delicti – prova do crime e indício suficiente de autoria – e o periculum libertatis – prova de que a preservação da situação jurídica de liberdade poderá trazer risco concreto à instrução processual (cautela-meio) ou a uma eventual condenação (cautela-fim).[1] Todavia, inserido no cardápio de requisitos positivos da prisão preventiva com a vã ilusão de passarem despercebidos encontram-se dois intrusos: o perigo à ordem econômica e à ordem pública.

Por que intrusos? Ora, é simples, basta se perquirir o que tais elementos (que a bem da verdade podem ser fundidos em um) buscam acautelar. Para ousarmos responder esta pergunta precisamos fazer um pequeno detour, iniciando pela árdua tarefa de mapear o universo de significantes possíveis (ou ao menos prováveis) para a expressão “ordem pública”.

Não pretendo aqui defender a univocidade semântica de qualquer termo, a linguagem é sempre plurívoca e sujeita a falhas, visto se tratar de uma relação bilateral entre indivíduos, pautada pelos elementos “informação”, “dar a entender” e “compreensão”, todos suscetíveis a “ruídos de fundo”.[2] Entretanto alguns termos são dotados de tão contundente amplitude semântica, ou, em outras palavras, de tão vasto espectro de significados potenciais que sua utilização deve ser sempre evitada na confecção de textos de lei, sobretudo quando se tratar de dispositivo de natureza penal (sim, as normas que regem as prisões cautelares possuem natureza penal, ainda que formalmente sejam processuais).

Assim, desde a epiderme da questão, encontramos para o termo “ordem” (excluindo as manifestamente impertinentes ao tema) o sentido de:

Disposição organizada e ordenada das coisas, seguindo uma categoria, o lugar que lhes convém: ordem alfabética. Regras, leis, estruturas que constituem uma sociedade. Posição ocupada numa hierarquia; categoria, mérito: ordem militar. Disposto em fileira, renque: respeite a ordem da fila. Lei geral proveniente do costume, da autoridade; lei relativa a assunto particular: é preciso manter a lei e a ordem. Condição de tranquilidade, paz: o protesto aconteceu em ordem. Boa administração das finanças de um Estado ou de um particular.[3]

E para “pública”: “Que se refere ao povo em geral: interesse público. Relativo ao governo de um país: negócios públicos. Manifesto, conhecido por todos: rumor público”.[4] Assim, desde essa perspectiva, qualquer composição léxica nos trará elementos relacionados à conservação de algo previamente definido, ignorando os processos de definição desse “algo”, agindo como se irrompessem espontaneamente em sociedade e não fossem o fruto de interesses comezinhos e eventualmente ardilosos; afinal, como nos lembra Nilo Batista, nada nasceu mais privado do que o interesse público![5]

Obviamente que a construção do texto de lei não deve se vincular inextrincavelmente ao sentido fornecido pelos dicionaristas, por outro lado não podemos nos descurar do fato de que estes possuem o ofício de cartografar em determinada época os sentidos possíveis para os elementos de determinada língua, servindo inevitavelmente como parâmetro em uma atividade hermenêutica.

Se formos à jurisprudência da Suprema Corte, apenas, encontraremos as mais diversas acepções a “ordem pública”, encontrando inclusive significado que certas decisões repudiavam e outras admitiam para preencher seu sentido (curiosamente às vezes prolatadas pelo mesmo Ministro!).[6]

A lista é grande: clamor público, paz social, gravidade do crime, periculosidade do agente... Se descermos a instâncias inferiores perpassaremos por inadequações crassas, como o “restaurar a credibilidade das instituições” e até por teratologias, como a prisão decretada para a proteção do próprio preso! Todas elas absolutamente divorciadas da característica de cautelaridade inerente às prisões preventivas.

Até mesmo se buscarmos uma técnica hermenêutica sistêmica aliada à análise de ordenamentos jurídicos estrangeiros relacionados ao nosso, alcançaremos o sentido de “evitação da reiteração criminosa por parte do preso”, pergunto: cadê a cautelaridade?

Com isso não quero dizer que ela seja dispensável, não compactuo da visão de que toda e qualquer prisão provisória deve ser expurgada de um modelo jurídico democrático por violação à regra da inocência presumida, mas sua imperiosidade não autoriza que “colemos” sentidos ao bel prazer da majestade. A prisão preventiva decorrente de perigo à ordem pública não possui natureza cautelar, mas de verdadeira medida de polícia.

Isso quer dizer que por esse motivo poderá ser mais “flexibilizada”? Não, muito pelo contrário! É justamente por possuir verdadeiramente tal natureza que seu disciplinamento deve ser ainda mais taxativo, não só delimitando do modo mais concreto possível seu espectro semântico, como dispondo das situações que não podem ser interpretadas por “ordem pública”.

Infelizmente o que se percebe na praxe forense são menos tentativas de contenção do poder armazenado pela plurivocidade da expressão em análise, do que a otimização de seu uso promíscuo, lançando mão de significados pertencentes muitas vezes ao mero campo das opiniões, o que por si só inviabiliza qualquer contraditório – afinal de contas como vou provar ao juiz que ele está errado em sua “opinião” acerca do réu ser perigoso? Ou de sua futurologia exarada na fundamentação do réu que “tenderá a delinquir” mesmo sendo primário?

Ao cabo não posso incorrer em “sensacionalismos arbitrários”, afirmando que há o risco de qualquer um poder ser preso a qualquer momento, por exemplo; o fumus, mesmo enfraquecido, ainda é uma mínima limitação ao poder de enjaular, mas o periculum jaz dormente, reduzido a um jogo de palavras que de tão vagas pode ser usado de modelo para os mais variados casos, fazendo com que, desde certa perspectiva, as lettres de cachet continuem sobrevivendo em pleno Estado democrático de direito.


Notas e Referências:

[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 977.

[2] LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Trad. Silvia Pappe; BrunhildeErker. Barcelona: Anthropos; México: UniversidadIberoamericana; Santafé de Bogotá: CEJA, PontificiaUniversidadJaveriana, 1998.

[3] Cf. <https://www.dicio.com.br/ordem/>, acesso em 03 de março de 2017.

[4] Cf. <https://www.dicio.com.br/publico/>, acesso em 03 de março de 2017.

[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

[6] SAMPAIO, A. R.; COSTA, E. M.; FARIAS, J. S.; MELO, M. E. V.. Os efeitos do princípio da razoável duração do processo com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2003. Caderno Fits de Graduação, v. 3, p. 35-44, 2011.


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