A evolução do tratamento jurídico conferido às provas ilícitas no processo penal brasileiro

29/06/2017

Por Gabriela Rodrigues Querido Fortes - 29/06/2017

Em meio ao processo de redemocratização do país, o constituinte originário sentiu a necessidade de elencar um rol expressivo de direitos individuais e coletivos na Carta Magna. Dentre os quais, inseriu-se a cláusula de vedação no processo das provas obtidas por meios ilícitos, presente no artigo 5º, inciso LVI da Constituição da República Federativa do Brasil.

O direito à prova, portanto, embora seja, igualmente, um direito e garantia fundamental, vez que desdobra do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV, CRFB/88), encontra uma limitação constitucional no tocante à inadmissibilidade das provas ilícitas. A escolha expressa do constituinte de limitar a atividade probatória das partes não se revela exclusiva do processo penal, mas é, aqui, onde um resultado desfavorável ao réu tem o potencial de tirar-lhe a própria liberdade, que os contornos do direito à prova se tornam mais necessários (GRINOVER, GOMES FILHO, FERNANDES, 2011, p. 124).

Não obstante o texto constitucional desautorizar a utilização das provas obtidas por meios ilícitos no processo, não traz uma definição de o que são provas ilícitas. A esse respeito, o magistério de Ada Pellegrini Grinover, seguido pela maioria de seus pares, se inspira na doutrina italiana de Nuvolone para apontar a distinção entre os conceitos de prova ilícita e prova ilegítima, sendo ambas espécies de um mesmo gênero: a prova ilegal (GRINOVER, GOMES FILHO, FERNANDES, 2011, p. 126).

A prova ilegítima é aquela produzida com a infringência a norma processual, isto é, “em função de interesses atinentes à lógica e à finalidade do processo” (GRINOVER, GOMES FILHO, FERNANDES, 2011, p. 126), como a exibição de documento no Júri que não tenha sido juntado aos autos com a antecedência mínima de três dias úteis, conforme prevê o artigo 479 do CPP (LIMA, 2016, p. 610). A prova ilícita, também circunscrita à categoria de prova ilegal, é aquela obtida com a violação de regras ou princípios de direito material, postos pela Constituição ou pelas leis, como é o caso de documento probatório apreendido por meio de entrada ilegal em domicílio, cuja inviolabilidade tem proteção constitucional (art. 5º, XI, CRFB/88). A inobservância de um direito material na colheita da prova traz a esta a mácula da ilicitude e, então, as consequências dela decorrentes.

A distinção posta entre ilicitude e ilegitimidade não é meramente conceitual. Com efeito, a separação apresenta relevância prática na medida em que a resposta processual à prova vedada modifica-se conforme seja ela reconhecida como ilícita ou ilegítima.

Nesse sentido, esclarecem Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes, que “para a violação do impedimento meramente processual basta a sanção erigida através da nulidade do ato cumprido e da ineficácia da decisão que se fundar sobre os resultados do acertamento” (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2011, p. 127).

Para a prova ilícita, ao revés, a solução é a inadmissibilidade desta no processo. Significa dizer que a prova ilícita, a priori, não deve sequer ser juntada aos autos do processo e, uma vez juntada, deve ser desentranhada na forma prescrita no artigo 157, § 3º do CPP. É uma manifestação do direito de exclusão[1].

No entanto, nem sempre foi assim. Conforme esclarece Luiz Flávio Gomes da vigência do CPP até meados dos anos 70, prevaleceu no nosso ordenamento jurídico a visão legalista de prova ilícita, segundo a qual ela é considerada eficaz e válida, sem embargos do cabimento de sanções na esfera civil, penal e/ou disciplinar da pessoa a quem se atribuiu a obtenção ilícita da prova, seja um particular, seja uma autoridade pública (2003, p. 01). Vigorava, pois, a fórmula autoritária do male captum, bene retentum (prova mal colhida, mas bem produzida).

Registrando a transição do sistema legalista para o constitucionalista, o qual inadmite o uso da prova ilícita no processo, antes da promulgação da Constituição Cidadã, o Supremo Tribunal Federal[2] proferiu três decisões emblemáticas que reconheceram a inadmissibilidade da prova ilícita, refutando-se a tese de que as provas deveriam ser consideradas eficazes e válidas no processo, resguardado o direito do acusado de pleitear indenização civil contra o responsável pela ilicitude.

No momento histórico e político de redemocratização do país, Scarance Fernandes aponta que emergia o valor dominante de que o texto constitucional contivesse normas de cunho garantista para assegurar os direitos fundamentais da pessoa contra o poder estatal intervencionista, no relacionamento indivíduo-Estado (FERNANDES, 2010, p. 19).

Nesse diapasão, uma importante finalidade reconhecida em doutrina do artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal é erradicar, da única forma possível, o estímulo existente para a obtenção de uma prova com violação a direitos e garantias do acusado: impedindo o ingresso dela no processo e, se já inserida nos autos, forçando o seu desentranhamento com a consequente não apreciação pelo juiz.

Sob essa ótica, cumpre função verdadeiramente preventiva (CONCEIÇÃO, 2013, p. 02), também conhecida como função pedagógica (OLIVEIRA, 2011, p. 344), posto que a inutilização da prova ilicitamente obtida tem o intuito claro de prevenção de abusos dos agentes do Estado na persecução penal. Nesse sentido, Eugênio Pacelli leciona com exatidão:

Mais que uma afirmação de propósitos éticos no trato das questões do Direito (...) a vedação das provas ilícitas atua no controle da regularidade da atividade estatal persecutória, inibindo e desestimulando a adoção de práticas probatórias ilegais por parte de quem é o grande responsável pela sua produção. Nesse sentido, cumpre função eminentemente pedagógica, ao mesmo tempo que tutela determinados valores reconhecidos pela ordem jurídica. (OLIVEIRA, 2011, p. 344)

Sem embargos do reconhecimento deste propósito, que encontra inspiração na jurisprudência das Cortes norte-americanas, nos filiamos àqueles que ensinam que a finalidade precípua da vedação das provas ilicitamente obtidas, no ordenamento pátrio, é a tutela de direitos e garantias fundamentais, não se limitando a uma mera função de desestímulo de condutas contrárias ao direito na colheita de provas (LIMA, 2016, p. 625-626). Trata-se de garantia inerente ao devido processo legal e a um Estado Democrático de Direito que, como tal, é regido pelo postulado da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB/1988) e que deve aos seus cidadãos que ele próprio – o Estado – respeite e faça respeitar suas próprias leis, sob pena de deslegitimação do sistema punitivo.

Nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima ressalta que “seria de todo contraditório que, em um processo criminal, destinado à apuração da prática de um ilícito penal, o próprio Estado se valesse de métodos violadores de direitos, comprometendo a legitimidade de todo o sistema punitivo, pois ele mesmo estaria se utilizado do ilícito penal” (2016, p. 608).

Não custa lembrar que, mesmo nos Estados Unidos da América, outras finalidades à inadmissibilidade das provas ilícitas são apontadas, além da função preventiva. Com efeito, as chamadas exclusionary rules visam também um imperativo de integridade judicial, haja vista que não caberá ao Judiciário tornar-se cúmplice de violações da Constituição, bem como um imperativo de confiabilidade no Governo, ao passo em que se torna de conhecimento do cidadão que o governo não se beneficiará de condutas contrárias à lei. (ROMANO NETO, 2009, p. 335).

Apesar de a cláusula de vedação das provas ilicitamente obtidas ter sido edificada no texto constitucional como cláusula pétrea e, então, verdadeira tutela de direitos e garantias fundamentais, por duas décadas, inexistiu regramento da matéria no âmbito infraconstitucional, causando incertezas acerca dos contornos dessa proibição.

Esse cenário de arrastada omissão legislativa modificou-se somente em 2008 com a publicação da Lei n° 11.690 que alterou o Código de Processo Penal. Antes disso, porém, jurisprudência e doutrina exerceram importante papel em interpretar o alcance da norma constitucional, confrontando a relevante discussão acerca da denominada prova ilícita por derivação, a qual se traduz na seguinte pergunta: somente se considera inadmissível, no processo, as provas ilícitas em si mesmas ou a ilicitude destas se estende às provas que dela derivem, contaminando-as?

No âmbito do direito alienígena, esse debate foi enfrentado pela Suprema Corte norte-americana, em 1920, no caso paradigmático Silverthorne Lumber Co. v. United States. Nesta oportunidade, a corte firmou o entendimento de que “os meios probatórios que, não obstante produzidos, validamente, em momento posterior, encontram-se afetados pelo vício da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal” (LIMA, 2016, p. 613), sendo, pois, igualmente inadmissíveis no processo. Somente no caso Nardone v. United States (1939), porém, cunhou-se a disseminada expressão fruits of the poisonous tree (frutos da árvore envenenada)[3] para referir-se ao princípio da contaminação da prova (LOPES JR., 2015, p. 409).

A vedação à prova ilícita por derivação se justifica porque “proibir o uso direto de certos métodos, mas não pôr limites a seu pleno uso indireto apenas provocaria o uso daqueles mesmos meios considerados incongruentes com os padrões éticos e destrutivos da liberdade pessoal” (PIEROBOM DE ÁVILA, 2007, p. 152 apud LOPES JR., 2015, p. 409). De nada adiantaria, vedar a utilização de provas ilicitamente obtidas se aceitássemos, no processo, as provas que, a partir delas, fossem colhidas e produzidas.

No Brasil, no julgamento do HC n° 69.912/RS em 1993, o Supremo Tribunal Federal teve que se debruçar sobre a discussão em torno do princípio da contaminação e da prova ilícita por derivação. O caso versava sobre uma investigação de tráfico de entorpecentes, em que a Polícia interceptou ilegalmente comunicações telefônicas dos investigados durante período suficiente para obter a identificação do local onde as drogas eram armazenadas. Por conta dessa informação, as substâncias ilícitas vieram a ser regularmente apreendidas, além de ter ocorrido a prisão em flagrante dos investigados.

Nesta ocasião, em razão de uma interpretação literal do inciso LVI do artigo 5º, CRFB/1988, que não prevê o princípio da contaminação, o Supremo Tribunal Federal rejeitou a adoção da teoria dos frutos da árvore envenenada. Portanto, não obstante demonstrado o nexo de causalidade da interceptação telefônica ilegal com as provas posteriores, estas, regularmente colhidas, foram julgadas admissíveis, uma vez que a inadmissibilidade da prova aplicar-se-ia estritamente àquela colhida ilicitamente.

A respeito da decisão do STF, Renato Brasileiro comenta:

Inicialmente, prevaleceu a posição do Min. Moreira Alves, segundo o qual a dicção normativa empregada pelo constituinte no art. 5º, LVI, claramente sufragou a tese de que somente devem ser consideradas inadmissíveis no processo as provas ilícitas em si mesmas, e não aquelas a que se chegou por meio daquelas, consideradas não como provas, mas apenas como pistas, e que foram produzidas licitamente. (LIMA, 2016, p. 614)

Com a mudança de composição do STF, após a aposentadoria do Ministro Paulo Brossard e ingresso do Ministro Maurício Correia no Tribunal (ROMANO NETO, 2009, p. 332), vingou no Pleno da Corte Constitucional, por maioria, o posicionamento favorável a adoção da teoria dos frutos da árvore envenenada. In verbis:

EMENTA: HABEAS CORPUS. ACUSAÇÃO VAZADA EM FLAGRANTE DE DELITO VIABILIZADO EXCLUSIVAMENTE POR MEIO DE OPERAÇÃO DE ESCUTA TELEFÔNICA, MEDIANTE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. PROVA ILÍCITA. AUSÊNCIA DE LEGISLAÇÃO REGULAMENTADORA. ART. 5º, XII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. FRUITS OF THE POISONOUS TREE. O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, assentou entendimento no sentido de que sem a edição de lei definidora das hipóteses e da forma indicada no art. 5º, inc. XII, da Constituição não pode o Juiz autorizar a interceptação de comunicação telefônica para fins de investigação criminal. Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptação telefônica -- à falta da lei que, nos termos do referido dispositivo, venha a discipliná-la e viabilizá-la -- contamina outros elementos probatórios eventualmente coligidos, oriundos, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta. Habeas corpus concedido.

O reconhecimento do princípio da contaminação significou, certamente, uma conquista no seio do garantismo processual, haja vista que a proteção do indivíduo é uma razão inversamente proporcional à tolerância do direito com violações de garantias na persecução criminal, na busca incessante do “equilíbrio entre o ideal de segurança pública e a imprescindibilidade de se resguardar o indivíduo em seus direitos fundamentais” (FERNANDES, 2010, p. 19).

Contudo, conforme mencionado, a ausência de um estatuto legal que conferisse qualquer tratamento à matéria fez perdurar solo arenoso acerca dos contornos da vedação. Isso porque, mesmo entre os Ministros do Supremo Tribunal Federal, existia forte dissenso sobre o tema, a propiciar que outra eventual mudança na composição da Corte significasse, mais uma vez, uma mudança do entendimento majoritário.

Odilon Romano Neto, analisando o momento anterior a Reforma do CPP, preleciona:

a ausência de um maior detalhamento no plano normativo infraconstitucional criava um ambiente de absoluta insegurança jurídica a respeito do tema, eis que qualquer dos posicionamentos a respeito da teoria dos frutos da árvore envenenada contava com adesão quase idêntica dentre os Ministros integrantes daquela Corte. (ROMANO NETO, 2009, p. 331)

A partir da entrada em vigor da Lei n° 11.690/08, o nosso Código de Processo Penal incorporou de maneira expressa conceitos advindos da experiência norte-americana, como a teoria dos frutos da árvore envenenada e a exceção da fonte independente. Não obstante representar um avanço sob o aspecto legislativo porque, enfim, conferiu regulamentação infraconstitucional à matéria, já há muito aclamada, ressalta-se que a reforma processual não saiu ilesa de críticas doutrinárias.

Diz o caput do art. 157, CPP, com a redação conferida pela Lei n° 11.690: “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.

Nota-se que o legislador não tomou em consideração a diferenciação consagrada em doutrina entre as denominadas provas ilícitas e as provas ilegítimas. Consequentemente, a definição ampla constante no referido dispositivo legal não teve a aprovação de nomes de peso para o processo penal[4]. Seguindo essa linha, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes aduzem que:

[n]ão parece ter sido a melhor a opção da Lei 11.690/2008, ao definir a prova ilícita como aquela ‘obtida em violação às normas constitucionais ou legais’ (nova redação do art. 157 CPP). A falta de distinção entre a infringência da lei material ou processual pode levar a equívocos e confusões, fazendo crer, por exemplo, que a violação de regras processuais implica ilicitude da prova e, em consequência, o seu desentranhamento do processo. O não cumprimento da lei processual leva à nulidade do ato de formação da prova e impõe sua renovação, nos termos do art. 573, caput, do CPP. (GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, 2011, p. 127.)

Ademais, doutrina de peso atenta que o legislador incorreu em compreensão equivocada acerca dos conceitos de fonte independente e da descoberta inevitável, sendo certo que, embora sejam ambas hipóteses de aproveitamento da prova desenvolvidas pela doutrina norte-americana, elas não se confundem (nesse sentido, cf. GRINOVER; GOMES FILHO; FERNANDES, p. 136; OLIVEIRA, p. 364; LIMA, p. 617; ROMANO NETO, p. 341).

A limitação da fonte independente, conhecida nos EUA como independent source doctrine, trata da hipótese em que, a despeito de haver alguma ilicitude durante a persecução penal, a acusação demonstra que obteve novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova, sem qualquer vínculo de causalidade com a prova originariamente ilícita.

Já na exceção da descoberta inevitável – inevitable discovery limitation –, a prova será reputada válida caso reste demonstrado, com base em um juízo concreto de probabilidade, que a prova ilícita por derivação seria produzida de um jeito ou de outro, independentemente da prova ilícita originária.

É necessário, então, tomar especial cuidado com a redação do art.157, § 2º, CPP, in verbis: “considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”.

A bem da verdade, tal definição melhor se coaduna com a acepção da limitação da descoberta inevitável. Isso porque o dispositivo legal ao empregar o verbo “ser” no condicional afasta o caráter de certeza que é inerente à limitação da fonte independente. Ao revés, adentra no terreno do juízo provável, característico da limitação da descoberta inevitável (LIMA, 2016, p. 617).

Por essa razão, apesar de a limitação da descoberta inevitável não constar expressamente da nova redação conferida ao Código de Processo Penal, parcela da doutrina defende que esta foi introduzida na ordem jurídica brasileira pelo § 2º do artigo 157, CPP.

Não se trata, porém, de entendimento pacífico. Pelo contrário, grandes nomes do direito processual penal sustentam que a aplicação da teoria da descoberta inevitável, tal como delineada, é incompatível com a Constituição Federal e, por conseguinte, atribuir a norma tal significação seria inconstitucional.

Antônio Magalhaes Gomes Filho faz a sua crítica ao dispositivo legal, in verbis:

na situação de inevitable discovery, são circunstâncias especiais do caso concreto (como no exemplo do encontro do cadáver) é que permitem considerar que a prova seria inevitavelmente obtida, mesmo se suprimida a fonte ilícita. Ao contrário disso, o texto legislativo examinado permite que se suponha sempre a possibilidade de obtenção da prova derivada por meios ilegais, o que esvazia, por completo, o sentido da garantia. Em resumo, como está redigido, o texto do art. 157 § 3º é inconstitucional. (GOMES FILHO, 2010, p. 406)

De qualquer forma, os tribunais superiores incorporaram ambas as limitações como restrição à teoria dos frutos da árvore envenenada (nesse sentido, sobre a fonte independente, STF, 2ª Turma, HC 116.931/RJ, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 03/03/2015, DJ 07/05/2015 e, com relação à descoberta inevitável, STJ, 6ª Turma, HC 52.995/AL, Rel. Min. Og Fernandes, j. 16/09/2010, DJe 04/10/2010 e STF, 2ª Turma, HC 91.867/PA, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 24/04/2012, DJe 19/09/2012).

No tocante ao procedimento previsto para a hipótese de a prova ser reconhecida como ilícita, o correto é que ela não seja sequer juntada aos autos. No entanto, na hipótese de ter sido fisicamente juntada, a solução que a legislação traz é o desentranhamento desta em decorrência do direito de exclusão (§3º, art. 157, CPP).

Insta ainda fazer um breve comentário acerca do § 4º do art. 157, CPP, o qual fora objeto de veto da Presidência da República. Na redação aprovada pelo Congresso Nacional, assim constava: “o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir sentença ou acórdão”.

O propósito da norma era impedir a contaminação psicológica do juiz que teve contato com a prova ilícita no julgamento do caso, tendo em mira que a garantia da motivação da sentença é, em verdade, imperfeita. A motivação, como aponta Luiz Flávio Gomes, divide-se em motivação-documento (aquilo que é documentado pelo juiz) e motivação-atividade (aquilo que efetivamente levou o juiz a concluir pela culpabilidade ou inocência do réu) (GOMES, Luiz Flávio, 2003, p. 02), assim sobre a decisão do juiz aponta que:

[existe] um contexto de descobrimento e um contexto de justificação. No primeiro pode haver critérios ou momentos irracionais (o juiz pode sofrer influencias de seus preconceitos, de suas crenças, de suas idiossincrasias etc.; emprega critérios lógicos, jurídicos, cognitivos, valorativos, mas também, às vezes, irracionais); já o segundo é o espaço em que não importa como se chegou à decisão, e sim como justifica-la ou como apresenta-la com ares de razoabilidade. (GOMES, Luiz Flávio, 2003, p. 02).

No entanto, vetou-se o dispositivo porque este poderia causar transtornos ao andamento célere do processo, ao obrigar que o juiz que acompanhou a instrução criminal seja, eventualmente, substituído por outro[5].

Não obstante, registra-se a crítica ao veto, na medida em que desconsiderou a contaminação, consciente ou inconsciente, do julgador, adotando, portanto, uma visão positivista do direito, que crê na separação entre emoção e razão, em que os fatores psicológicos do juiz não teriam o condão de afetar o ato de julgar (LOPES JR., 2015, p. 414-415).

Por fim, cumpre frisar que, apesar de cláusula de inadmissibilidade das provas ilicitamente obtidas ser cláusula pétrea, o Ministério Público Federal, aproveitando-se da popularidade decorrente da chamada operação lava-jato, mobilizou boa parte da opinião pública para defender a reforma do tratamento jurídico dado às provas colhidas com violações a direitos e garantias individuais.

Por consequência, embora recentíssima a reforma do Código de Processo Penal (CPP), ocorrida no ano de 2008, existe uma pressão atual para alargar a admissibilidade da prova ilícita no processo penal. As “10 Medidas Contra a Corrupção” transformaram-se no Projeto de Lei n° 4.850/16 (PL n° 4.850/16) em tramitação na Câmara dos Deputados em forma de projeto de iniciativa popular.

As mudanças sugeridas no âmbito infraconstitucional buscam acrescer verdadeiras excludentes de ilicitude (CORRÊA FILHO, 2016, p. 08). O rol de excludentes de ilicitude vem provocando grande rejeição na doutrina e nas instituições essenciais à Justiça, em especial, no tocante à exceção da boa-fé, que propõe a análise do ânimo subjetivo do agente responsável pela colheita da prova ilicitamente, condicionando a inadmissibilidade dela à consciência da ilicitude[6].

Evidentemente, na prática, as “excludentes de ilicitude” da prova restringem a incidência da vedação constitucional, que é uma cláusula pétrea, sendo certo que a opção do constituinte originário em consagrá-la como cláusula pétrea objetiva, exatamente, blindá-la dos efeitos nocivos dos movimentos pendulares que marcam a história do processo penal, ora predominando valores de segurança social e eficiência repressiva, ora prevalecendo ideias de afirmação e conservação das garantias do acusado, como aponta Antonio Scarance Fernandes (2010, p. 19).

Portanto, concordamos com àqueles que defendem que o Projeto de Lei n° 4.850/16 ao buscar minimizar o espectro constitucional da vedação de provas ilícitas, com a criação de excludentes de ilicitude, torna-se inconstitucional desde o seu nascedouro (COSTA; SAMPAIO JR., 2016, p. 36).

Apesar do alvoroço já causado pelo mencionado projeto de lei na comunidade jurídica, conforme ampla divulgação nos meios de comunicação, é notório que o projeto aprovado na Câmara dos Deputados e remetido para votação no Senado Federal sofreu profundas distorções, descaracterizando-o por completo, como assim declarou o Procurador da República Deltan Dallagnol. Nesse ínterim, a reforma que se pretendia no tratamento das provas ilícitas fora, em um primeiro plano, inteiramente descartada na redação final aprovada pela Casa Legislativa. Se a discussão retornará a ocupar o debate legislativo ou não, são cenas dos próximos capítulos.


Notas e Referências:

[1] Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes argumenta que “enquanto a nulidade pretende nulificar a eficácia de uma prova, o modelo da inadmissibilidade orienta-se no sentido de impedir seu ingresso no processo (porque a prova ilícita tem todas as características de um ato inexistente). O sistema da nulidade foi pensado para operar depois da produção da prova, o modelo da inadmissibilidade foi criado para ter incidência antes da produção (introdução) da prova nos autos.” (GOMES, 2003, p. 03)

[2] Em 1977, o Supremo Tribunal Federal decidiu pelo desentranhamento dos autos do processo de fitas gravadas clandestinamente em um processo civil (RTJ 84/609) e, em 1984, diante de igual situação em outro processo cível, julgou novamente a inadmissibilidade da prova ilícita (RTJ 110/798). No campo do processo penal, em 1986, proferiu decisão no mesmo sentido, determinando o trancamento do inquérito policial fundado em interceptação telefônica clandestina (RTJ 122/47).

[3] Leonardo Costa de Paula (2009, p. 318) assevera que chamar de “frutos da árvore envenenada” é uma tradução inexata, tendenciosa a provocar uma má interpretação do conceito. Sustenta que o seu significado seria melhor alcançado se chamada de árvore venenosa, para deixar claro que qualquer fruto que resulte dela será venenoso, imprestável. Outro nome encontrado na doutrina para designar tal teoria é “efeito à distância” (NUCCI, 2009, p. 358).

[4] Em sentido minoritário, temos o posicionamento de Guilherme de Souza Nucci, que sustenta: “A partir da nova redação conferida ao art. 157, caput, do CPP, soa-nos nítida a inclusão, no termo maior provas ilícitas, daquelas que forem produzidas ao arrepio das normas constitucionais ou legais. Logo, a infringir a norma constitucional ou qualquer lei infraconstitucional (direito material ou processual), pois não fez o referido art. 157 nenhuma distinção, torna a prova ilícita. Este é, pois, o gênero e não a espécie.” (NUCCI, op. cit., p. 354).

[5] As razões do veto foram as seguintes: “O objetivo primordial da reforma processual penal consubstanciada, dentre outros, no presente projeto de lei, é imprimir celeridade e simplicidade ao desfecho do processo e assegurar a prestação jurisdicional em condições adequadas. O referido dispositivo vai de encontro a tal movimento, uma vez que pode causar transtornos razoáveis ao andamento processual, ao obrigar que o juiz que fez toda a instrução processual deva ser, eventualmente substituído por um outro que nem sequer conhece o caso. Ademais, quando o processo não mais se encontra em primeira instância, a sua redistribuição não atende necessariamente ao que propõe o dispositivo, eis que mesmo que o magistrado conhecedor da prova inadmissível seja afastado da relatoria da matéria, poderá ter que proferir seu voto em razão da obrigatoriedade da decisão coligada”. BRASIL. Mensagem n° 350, de 09 de Junho de 2008, Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Msg/VEP-350-08.htm>. Acesso em 24/04/2017.

[6] Nesse sentido, cf. BADARÓ, As propostas de alteração do regime de provas ilícitas no processo penal, Boletim do IBCCRIM, ano 23, nº 277, p. 17-19, dez.2015. Disponível em: <http://goo.gl/MRYKPx>. Acesso em 05/06/2017. DPGE/RJ. 10 Medidas em xeque: uma análise crítica das propostas de combate à corrupção. p. 31-36. Disponível em: <http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/imagens/d8a82703a08b4a4096424c576bdff239.pdf>. Acesso em 20/10/2016.

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. As propostas de alteração do regime de provas ilícitas no processo penal, Boletim do IBCCRIM, ano 23, nº 277, p. 17-19, dez.2015. Disponível em: <http://goo.gl/MRYKPx>. Acesso em 05/06/2017. 

BRANDT, Ricardo Brandt. ‘Congresso destruiu’ as 10 Medidas contra Corrupção, diz procurador da Lava Jato. Estadão, Panamá, 03 dez. 2016. Acesso em 05/06/2017. Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/congresso-destruiu-as-10-medidas-contra-corrupcao-diz-procurador-da-lava-jato/>.

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 24/04/2017.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 24/04/2017.

BRASIL. Mensagem n° 350, de 09 de Junho de 2008, Presidência da República. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Msg/VEP-350-08.htm>. Acesso em: 24/04/2017.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Plenário. HC 69.912/RS segundo, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 16/12/1993, DJ 25/03/1994.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Plenário. HC 73.351, Relator Ministro Ilmar Galvão, julgado em 09/05/1996, DJ 19/03/1999.

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Gabriela Rodrigues Querido FortesGabriela Rodrigues Querido Fortes é bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, membro da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UNIRIO – LACCrim. Foi bolsista de iniciação científica no projeto de pesquisa Política e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Foi monitora de Direito Administrativo no projeto Questões Contemporâneas da Administração Pública pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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