A efetividade da aplicação da nova lei de medidas cautelares pessoais (Lei nº 12.403/11) pelo Tribunal de Justiça do Paraná

12/06/2016

Por Pedro Henrique Machado da Luz e Rodrigo Régnier Chemim Guimarães - 12/06/2016

1 INTRODUÇÃO

Preocupados com a possível dificuldade de compreensão dos magistrados brasileiros a respeito do que pretendia a nova Lei 12.403/11, que alterou a sistemática das medidas cautelares pessoais no Código de Processo Penal brasileiro, procuramos proceder à análise de campo para verificar como eles vêm recepcionando a nova legislação. Para uma primeira verificação, valemo-nos de alguns paradigmas dos Tribunais Superiores, com posterior ênfase no quanto o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná vem orientando os juízes de primeiro grau, procurando, para tanto, evidenciar a exegese posta nos Habeas Corpus.

No campo prático, então, foram analisadas, em conjunto, as 80 (oitenta) decisões proferidas em sede de Habeas Corpus pelo Tribunal de Justiça do Paraná, pelas suas cinco Câmaras Criminais, num período de cinco meses (março a julho de 2015) traçando-se - dessa forma - o perfil médio de cada Câmara (considerando que algumas possuem competências materiais diferentes) e correlacionando as impressões e dados obtidos com as ambições teleológicas da Lei nº 12.403/11. Optou-se por analisar os últimos cinco meses desde o início da pesquisa e em fazê-lo em relação às oitenta primeiras decisões, para não usar outros mecanismos que pudessem desvirtuar a representatividade do modo de pensar da Corte.

2 Novidades trazidas pela Lei nº 12.403/11

Estruturalmente, a Lei nº 12.403/11 criou um novo dispositivo e promoveu a alteração de outros 32 (trinta e dois) do Código de Processo Penal, alterando inclusive a redação do Título IX, o qual agora vigora com o nome "Da Prisão, das Medidas Cautelares e da Liberdade Provisória". Suas finalidades, segundo FREITAS (2013, p.61) foram adequar o Código de Processo Penal à Constituição, principalmente no tratamento da prisão como ultima ratio; criar de um rol de medidas cautelares alternativas à prisão (art. 319, CPP); e dar nova roupagem ao instituto da fiança, o qual passa de contracautela para medida cautelar específica.

A Lei nº 12.403/11, neste diapasão, não é apenas mais uma importante ferramenta com o fito de possibilitar uma maior relação do acusado com o almejado sistema acusatório[1], preservando o respeito à presunção de inocência e o devido processo legal. Mais que isso, a referida disposição legal fulminou um antigo binômio existente a partir de uma prisão em flagrante: ou se mantinha a prisão cautelar ou se concedia a liberdade provisória. Não havia “meios termos”.

Com a alteração legislativa a nova regra do art. 310 do CPP prevê que o magistrado agora dispõe de três opções ao receber o auto de prisão em flagrante: poderá relaxar a prisão se essa for manifestamente ilegal; aplicar as medidas cautelares diversas da prisão (se cabíveis, segundo o art. 312 do CPP), com previsão legal no art. 282 do CPP ou conceder a liberdade provisória.

E é importante deixar anotado desde já o seguinte critério: com o ordenamento pós-2011, nos termos da nova redação do art. 310 do CPP[2], a prisão preventiva só pode ser decretada caso se revelem inadequadas ou insuficientes as outras nove medidas cautelares diversas da prisão, elencadas no art. 319 do Código de Processo Penal, a saber: I - comparecimento periódico em juízo para informar e justificar atividades; II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares para evitar o risco de novas infrações; III - proibição de manter contato com pessoa determinada; IV - proibição de ausentar-se da Comarca; V - recolhimento domiciliar no período noturno e/ou nos dias de folga (sendo exigido residência e trabalho fixos para tal medida); VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira, quando houver riscos que essas possam ser utilizadas para a prática de infrações penais; VII - internação provisória do acusado para inimputáveis e semi-imputáveis; VIII - fiança, nas infrações afiançáveis; IX - monitoração eletrônica.

Não é demais lembrar que inexistem medidas cautelares fora do rol disposto no art. 319 do CPP, o que indica ser este rol numerus clausus.

Por fim, é importante destacar que as novas disposições do art. 313 do Código de Processo Penal restringiram a possibilidade de decretação da prisão preventiva, abandonando o antigo critério que somente permitia a medida cautelar em delitos punidos com reclusão, para admiti-la, agora e como regra, apenas para crimes dolosos com pena superior a quatro anos. Assim, vários delitos que antes permitiam a prisão preventiva (v.g.: furto simples, contrabando, descaminho, posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso permitido; dentre outros), agora, pelo novo critério, não permitem mais. Mas a questão central que se pretende avaliar na análise de campo, por ora, está restrita a verificar se os magistrados paranaenses compreenderam a necessidade de dar atenção ao caráter subsidiário da prisão cautelar frente às demais medidas cautelares diversas da prisão. E nesse ponto, se eles conseguem externalizar de maneira suficiente em suas decisões os fundamentos exigidos para a decretação da prisão preventiva. Por fim, a pesquisa também tem a pretensão de verificar se o Tribunal de Justiça do Paraná detecta algo nesse sentido e como vem se comportando a partir das provocações operadas pela via dos Habeas Corpus. Antes de avaliar o que se constatou, imperioso deixar bem pontuada a importância da fundamentação das decisões, algo que, por vezes, parece esquecido em determinados setores da Justiça quando avaliam a questão das medidas cautelares pessoais. 

2.1 Fundamentação judicial. Demanda de um Estado Democrático de Direito

A fundamentação judicial em matéria penal é assunto de suma importância que adquire horizontes ainda maiores no que tange às prisões cautelares. A necessidade de motivação decisões do juiz encontra abrigo nos arts. 5º, LXI, e 93, IX, ambos da Constituição Federal de 88. Como reforço, o próprio Código de Processo Penal contempla essa necessidade em seu art. 315.

Portanto, caso o magistrado não entenda pela aplicação das supracitadas medidas cautelares, deve motivar sua decisão neste sentido, apontando situações fáticas e concretas para tanto, pois, como cediço, a falta de justificativa sólida configura nulidade processual absoluta.

A fim de bem fundamentar a aplicação do instituto da prisão preventiva, o magistrado necessita demonstrar estar presente tanto o fumus comissi delicti quanto o periculum libertatis, lastreado em alguma das hipóteses do art. 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública; garantia da ordem econômica; conveniência da instrução criminal ou asseguração da aplicação da lei penal.

Ainda deverá demonstrar, por meio de argumentos vinculados ao caso concreto, porque entendeu como insuficiente e ineficaz cada uma das medidas cautelares alternativas à prisão, mandamento esse extraído do art. 282, §6º do Código de Processo Penal. Não se trata de fardo excessivo delegado ao juiz, pois o que está em perspectiva nessas decisões é justamente um dos bens mais caros do patrimônio do indivíduo: sua liberdade. Portanto, todo cuidado é pouco; um Estado Democrático de Direito efetivo deve garantir decisões bem fundamentadas, respeito às garantias processuais e concretização dos direitos fundamentais. Todas essas diretrizes devem ser fielmente seguidas, principalmente na esfera penal, ramo tão suscetível às arbitrariedades.

Fixada a necessidade de fundamentação detalhada, antes de analisarmos os julgados, também é importante levar em conta uma questão que tem despertado discussões: é possível que o Tribunal de Justiça, em sede de Habeas Corpus, conceda a ordem para anular a prisão preventiva e, ao mesmo tempo, de ofício, imponha ao paciente medidas cautelares diversas da prisão? Ou deveria a Corte Estadual remeter o processo ao juiz de 1º grau, para que este analisasse a conveniência das demais medidas?

Entendemos que a resposta às questões postas se resolve pela negativa à primeira pergunta. Primeiro pela aplicação analógica, ao tema das medidas cautelares pessoais, do princípio da identidade física do juiz em matéria penal, disposto no §2º, do art. 399, do Código de Processo Penal, resultante da Lei nº 11.719/08. Por ele, o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. A teleologia deste princípio, portanto, indica uma opção pela coerência; deve ser preservada e respeitada a autonomia do juízo originário, figura próxima à produção probatória e documental, que está em contato singular com as partes e com o processo. Ao contrário, o juízo recursal, na vasta maioria das vezes, tem apenas aproximação documental com o processo. Ou seja, julga por informações contidas em papéis. Não deve ser, segundo a lógica, competente para impor medidas cautelares pessoais aos acusados ex officio. Essas, mesmo que assim não devesse ser, levando em conta os “modelos de juízes” que se tem nesse “mix” pós-moderno em que se insere o Judiciário brasileiro, ainda detém uma carga altamente subjetiva e por isso devem ser observadas caso a caso, respeitando-se o binômio necessidade e adequação, sempre harmonizando a proibição do excesso com a proibição de proteção insuficiente. Portanto, entendemos que o Tribunal não é competente para impor as cautelares ex officio. Sucede que, como se verá a seguir, os Tribunais, inclusive os superiores, atuam ao arrepio dessas observações.

Serve de parâmetro de análise o quanto sucedeu no Habeas Corpus nº 127186/PR[3], recentemente julgado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, cuja relatoria ficou a cargo do Min. Teori Zavascki. No writ em foco, o juízo de primeiro grau, responsável pela condução dos processos da chamada “Operação Lava-Jato" referente aos réus que não tinham foro por prerrogativa de função, mormente grandes empreiteiros e doleiros envolvidos, decidiu decretar a prisão preventiva de Ricardo Ribeiro Pessoa, presidente da empresa UTC, uma das maiores construtoras do país, a qual atuava no epicentro dos delitos, em tese, praticados.

Para tanto, pautou-se na garantia da ordem pública, ante a gravidade dos crimes supostamente praticados, a fim de "resgatar a confiança da sociedade no regular funcionamento das instituições", na conveniência da instrução criminal, respaldado em eventual ameaça às testemunhas e no risco à aplicação da lei penal - consubstanciado no fato de que as empresas dos presos possuíam sedes em outros países, o que, segundo o magistrado, facilitaria uma possível fuga. Não vamos ingressar no mérito dos argumentos lançados pelo magistrado de primeiro grau, até porque o Supremo já se debruçou sobre eles. Com efeito, o voto do e. Ministro Relator foi no sentido de conhecer e prover o Habeas Corpus e ao analisar os motivos do art. 312, afastou o risco à aplicação da lei penal, sob o argumento de que a fundamentação foi genérica e não apresentou fatos concretos a amparar um convencimento minimamente seguro sobre risco de fuga. Quanto à conveniência da instrução criminal, entendeu também ter havido fundamentação genérica, bem como - em que pese tenha reconhecido pontual ameaça a testemunhas - já ter sido concluída a instrução criminal, motivo pelo qual não persistiria o argumento apresentado pelo primeiro grau. Por fim, no tocante à garantia da ordem pública, embora tenha reconhecido a gravidade dos crimes imputados, entendeu o Relator que o argumento de credibilidade das instituições não era suficiente para imposição do cárcere preventivo mediante o argumento suscitado. Até aqui, tudo bem. Porém, foi além a Suprema Corte, ingressando na análise das medidas cautelares pessoais diversas da prisão. Entendeu a Corte que, in casu, as medidas cautelares diversas da prisão seriam efetivas para o bom andamento da ação penal. Desta forma, a Corte aplicou medidas cautelares ex officio[4] sem qualquer luta crítica. A decisão é preocupante, pois serve de parâmetro e modelo a ser seguido pelos demais Tribunais.

Em síntese, no que tange à eventual solução quanto as cautelares ex officio, defende-se a anulação da sentença do juiz que olvidou a imposição de medidas cautelares diversas à prisão, e que, após anulado o ato, a decisão volte ao primeiro grau, para que este decida o que melhor convier em sede de cautelares. E se a fundamentação vier novamente “capenga”, ensejará medida em grau recursal.

Não se trata de burocratização do sistema penal, mas respeito aos princípios da ampla defesa e da identidade física do juiz (analogicamente aplicado às cautelares).

2.2 Pesquisa de campo no Tribunal de Justiça do Paraná. Metodologia.

Partindo do quanto acima se considerou em termos doutrinários, vejamos agora como o tema vem sendo tratado no âmbito do Tribunal de Justiça do Paraná. Antes, no entanto, é preciso elucidar sucintamente os objetivos e métodos de pesquisa de campo realizados com base na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná. Os alertas de Salo de CARVALHO (2015, p. 38) foram de grande valia para a realização do estudo, sobretudo quando este explica a perigosa e reprimível tarefa de utilizar uma parte setorizada da jurisprudência para justificar as conclusões da pesquisa.

A metodologia utilizada é nominada pelo autor como estudo de "correntes jurisprudenciais"[5]. Para tanto, foram selecionadas as decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná proferidas após o advento da Lei nº 12.403/11, fruto de pesquisa realizada através da página oficial do referido Tribunal na internet, valendo-nos dos verbetes "Habeas Corpus"; "medidas cautelares diversas da prisão", "prisão preventiva" e "Lei nº 12.403/11", os quais ajudaram a filtrar decisões relacionadas com as pretensões do estudo. Como resultado, foram obtidas 80 (oitenta) decisões merecedoras de análise. 

2.4 Dados obtidos. Uma análise do perfil das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Paraná.

Dos 80 (oitenta) acórdãos de Habeas Corpus selecionados, 03 (três) estavam prejudicados, pois, ou a prisão preventiva do paciente havia sido revogada (perda de objeto), ou sobreveio sentença condenatória recorrível, tendo o 2º grau entendido ter havido a cessação da coação ilegal por conta da perda superveniente do objeto.

Dos 77 (setenta e sete) restantes, 48 (quarenta e oito) foram denegados[6] e 28 (vinte e oito) concedidos[7]. Também é relevante destacar que, no universo de 80 (oitenta) acórdãos, 77 (setenta e sete) decisões colegiadas foram julgadas de forma unânime, e apenas 03 (três) por maioria.

O gráfico a seguir, elaborado estritamente com os resultados obtidos pela pesquisa, demonstra a disposição desses números pelas 05 (cinco) Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Paraná:

Antes de realizar uma leitura dos dados obtidos, importante pontuar as competências de cada uma das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Paraná, por tratar-se de informação pertinente inclusive para fins de futura interpretação gráfica. Tais competências foram obtidas conforme o Regimento Interno[8] deste Tribunal.

A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, de acordo com o art. 93 do referido regimento, julga os crimes contra a pessoa (exceto os contra a honra), os crimes militares definidos em lei e os processos oriundos do Conselho de Justificação da Polícia Militar.

À 2ª Câmara Criminal compete julgar infrações penais imputadas a Prefeitos Municipais, os crimes contra a administração pública, os crimes contra a fé pública, a honra, a incolumidade pública, a ordem tributária e econômica, as relações de consumo e falimentares, os crimes ambientais, e ainda as demais infrações penais, na proporção de metade do que delas for distribuído, à 3ª, 4ª e 5ª Câmaras Criminais e os atos infracionais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente.

No que tange à competência da 3ª, 4ª e 5ª Câmara Criminal, a elas compete julgar processos referentes a crimes contra o patrimônio, a dignidade sexual, a paz pública, infrações penais relativas a tóxicos e entorpecentes, além das demais infrações penais (competência residual).

Auxiliando na interpretação gráfica, vale registrar que foram coletados 11 (onze) acórdãos de HC na 1ª Câmara Criminal, sendo que 10 (dez) ordens foram denegadas e apenas 01 (uma) foi concedida. Na 2ª Câmara, foram apreciadas 03 (três) ações de habeas corpus criminais e todas foram denegadas. O baixo número aqui, se comparado com as demais Câmaras, pode ser debitado à diferença de competência material e à seletividade do Direito Penal que não costuma atuar com a mesma severidade em crimes do colarinho branco (próprios da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná).

Já a 3ª Câmara Criminal, competente para a, assim chamada, “criminalidade de rua” (furto, roubo, estupro, tráfico de drogas, etc.), foi a que mais deferiu ordens de Habeas Corpus: 17 (dezessete) concedidas e apenas 06 (seis) denegadas. Inversamente, a 4ª Câmara, de igual competência material, proveu apenas 01 (uma) ordem, julgou outra prejudicada e denegou 13 (treze). Por fim, coletou-se 28 (vinte e oito) acórdãos da 5ª Câmara Criminal, que também possui idêntica competência material, dos quais 02 (dois) foram julgados prejudicados, 09 (nove) ordens foram concedidas e 17 (dezessete) denegadas.

Portanto, já de início é possível dizer que quando analisadas comparativamente as três Câmaras Criminais de igual competência material, observa-se evidente discrepância nos dados obtidos, revelando que a Terceira Câmara Criminal apresenta postura mais liberal se comparada às duas outras Câmaras do mesmo Tribunal.

Ainda vale destacar que em 22 (vinte e duas) das 28 (vinte e oito) ordens concedidas foram aplicadas medidas cautelares diversas da prisão ex officio pelo Tribunal de Justiça do Paraná, revelando que a posição do Supremo Tribunal Federal acima referida fez escola. Esse resultado também evidencia que a Corte procede à aplicação quase que automática, sem crivo crítico, das cautelares diversas da prisão quando da análise de Habeas Corpus, isto é, até determina a soltura do paciente, mas invariavelmente impõe medidas cautelares diversas da prisão. Vale considerar que nos únicos 06 (seis) casos em que essas medidas cautelares não foram aplicadas, a soltura do paciente foi devida ou à revogação por excesso de prazo ou ao relaxamento da prisão por flagrante ilegalidade.

2.5 Considerações críticas dos julgados

Um dos aspectos mais marcantes na análise dos acórdãos selecionados está relacionado ao (não) cumprimento dos requisitos necessários à segregação preventiva, particularmente quanto às justificativas relacionadas às circunstâncias elencadas no art. 312 do Código de Processo Penal.

A hipótese mais utilizada nos julgados colhidos foi a da garantia da ordem pública. Não é preciso muito esforço para compreender que essa é uma expressão extremamente vaga, imprecisa semanticamente e maleável, sendo - por vezes - utilizada à margem da legalidade. A abertura semântica da expressão, não raras vezes, facilita a prevalência da discricionariedade do magistrado, notadamente daqueles que ainda operam sua forma de compreender o mundo na linha da Filosofia da Consciência, alicerçada em suas impressões pessoais acerca do acusado. Seja com for, nos casos analisados, a ordem pública foi sempre referida nos moldes admitidos pelas Cortes Superiores, isto é, levando em conta a concreta probabilidade de reiteração de comportamento delitivo, ainda que, em determinados casos, isso possa ser lido como jogo retórico, como se vê, por exemplo, do HC 1328906-2, 4ª Câmara Criminal, no qual, ao denegar a ordem de Habeas Corpus num caso de prisão preventiva decretada em eventual crime de roubo (art. 157, CP), a Corte atestou o seguinte, ipsis litteris:

Já em relação ao segundo aspecto, o douto Magistrado singular indicou um dos requisitos do art. 312 do CPP, qual seja, a necessidade de resguardo da ordem pública, evidenciada pela real periculosidade do agente, que, mediante uso ostensivo de arma de fogo, teria, em tese, praticado o delito em comento.[9]

A crítica, aqui, implica em que dizer que a Corte não considerou o fato de o emprego de arma do fogo no crime de roubo já ser positivado como majorante (art. 157, §2º, I, do Código Penal), e, assim, justificar o ergástulo preventivo com base nesse argumento é desvirtuar a lógica do sistema penal. Com efeito, pela tônica do julgado, todo acusado de roubo "armado" deveria obrigatoriamente ter sua liberdade constrita.  Decerto que não é esse o mandamento do ordenamento pátrio, o qual acertadamente, atento à tênue linha entre o encarceramento antes da condenação e o princípio da presunção de inocência, trata a prisão preventiva como ultima ratio.

Ao lado da garantia da ordem pública, também se observou que considerável parte das decisões de decretação de prisão preventiva em 1º grau referiram à necessidade de assegurar a aplicação da lei penal, instituto que deve ser reservado aos casos nos quais há risco concreto, pautado numa situação fática específica, que permita considerar provável uma eventual fuga do acusado no curso do trâmite processual penal.

De modo geral, as hipóteses de cabimento destes institutos (do art. 312 do CPP) estão bem compreendidas e delineadas pelo órgão julgador, sendo possível dizer que há satisfatório acerto do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná nesse ponto.

Partindo para uma análise mais focada na aplicação das medidas cautelares diversas da prisão, vislumbram-se, em primeiro apanhado, dois grandes problemas: falta de fundamentação apropriada quando do não cabimento das medidas cautelares diversas da prisão e a imposição acrítica e de ofício de cautelares pelo segundo grau.

Dos 49 (quarenta e nove) acórdãos denegatórios de Habeas Corpus analisados, apenas 01 (um)[10] fundamentou de forma mais detalhada o afastamento da aplicação das cautelares do art. 319. No entanto, este julgado isolado ainda é digno ainda de ressalvas, pois, apesar de mais rico em argumentos (se comparado aos demais), ainda padece de relativa generalidade.

De resto, as outras 48 decisões (quarenta e oito) consubstanciam-se em uma coletânea de "colagens" de fundamentos, ou seja, os julgados - no geral - seguem um mesmo “esqueleto redacional”, com argumentos padronizados.

Além disso, a argumentação "média" de decretação da prisão preventiva padece de abstração e generalidade nas decisões, contrárias à elementar necessidade de motivação das decisões judiciais, corolário dos arts. 93, IX e 5º, LXI, ambos da Constituição Federal, bem como dos arts. 282, §6º e 315, do Código de Processo Penal. Se a motivação, que é uma das balizas do poder de punição do Estado, pois evita o surgimento de decisões arbitrárias, não consegue seguir as exigências de coerência e integridade vinculadas à necessária circularidade hermenêutica com o princípio da presunção de inocência, isso é, no mínimo, preocupante.

O correto proceder do juízo, então, seria no sentido de explicar, de forma concreta, aliada às circunstâncias do caso em apreço - do porquê de, ali, não caberem medidas cautelares diversas da prisão. Como já explicitado, essa minuciosa exposição é corolário da lógica de preservação da liberdade do indivíduo até o trânsito em julgado, eis que a liberdade é regra e a prisão preventiva exceção.

Outro ponto de suma importância é a necessidade de honestidade hermenêutica por parte do intérprete. Da literalidade do art. 282, §6º, entende-se que a prisão preventiva só será cabível quando insubstituível por alguma medida cautelar diversa da prisão.

Partindo desse ponto, não pode o magistrado dar sentido próprio ao artigo, afirmando que a prisão preventiva é alternativa ao apreço das medidas cautelares. Não pode falar, em síntese, que em um cenário de dúvida cabe ao juiz escolher se segrega a liberdade do indivíduo ou impõe as ditas cautelares. É certo que, em âmbito acadêmico, ainda se discute muito os limites da atuação do juiz; dos limites que se visa impor à possibilidade do chamado "ativismo judicial". Todavia, dar um sentido - como presente em uma decisão específica[11] - absolutamente contrário à compreensão hermenêutica da norma circularmente condicionada pelos princípios constitucionais, que devem servir como mecanismo de fechamento (e não de abertura) da interpretação, por vezes consubstancia uma opção solipsista[12], no pior sentido da expressão.

2.6 Ponderações finais

Após percorrer os novos aspectos teóricos trazidos pela Lei nº 12.403/11 e adotar o método de seleção de julgados (correntes jurisprudenciais) do Tribunal de Justiça do Paraná, observando de forma crítica como a lei vem sendo aplicada por este órgão, abre-se espaço para algumas conclusões referentes ao tema.

Da pesquisa realizada foi possível identificar que as Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná ainda não unificaram o entendimento acerca das novas disposições trazidas pela Lei nº 12.403/11, possuindo variações de interpretação que mereceriam melhor uniformização interna, pois acabam deixando os acusados à mercê de uma verdadeira "loteria" judiciária. Ao menos a impressão que passa é que dependendo de qual Câmara o paciente tiver seu Habeas Corpus distribuído ele pode ser solto ou ficar preso.

Com efeito, surpreende a disparidade no número de Habeas Corpus concedidos na comparação entre as Câmaras. De todas elas destacam-se os dois maiores extremos: enquanto a 4ª Câmara Criminal concedeu apenas 01 (uma) ordem de HC entre 14 (quatorze) analisadas, a 3ª Câmara Criminal concedeu 17 (dezessete) e denegou apenas 6 (seis). Rememore-se que essas Câmaras Criminais detém a mesma competência material, ou seja, a discrepância dos resultados não é fruto das particularidades dos tipos penais julgados, mas de fatores outros, os quais convêm ponderar.

Analisando os julgados não encontramos uma explicação única e inconteste para essa desproporção, o que permite especular algumas das prováveis causas: em primeiro lugar pode estar pesando a diferença de perfil dos julgadores da 3ª e da 4ª Câmara. Isso não significa necessariamente que a 4ª Câmara seja composta de desembargadores com linha mais “punitivista” e a 3ª por Desembargadores mais “garantista”, como apressadamente alguém poderia sentenciar, pois estes rótulos, por si só, implicam em desconsiderar a complexidade que eles mesmos representam quando analisados à luz de inúmeros julgados. Talvez seja melhor considerar que algo equivalente ao inconsciente coletivo de cada Câmara possa estar a operar e servir de fator determinante. Uma coisa é certa: as Câmaras Criminais atuam com resultados muito discrepantes entre si e, assim, parecem estar dando interpretações diferentes a determinados dispositivos do Código de Processo Penal, flexibilizando ou enrijecendo regramentos, o que definitivamente é um obstáculo ao modelo ideal de democracia, pois o Direito Penal é orientado pelo princípio da legalidade estrita, não cabendo ao intérprete realizar juízos arbitrários de normas, principalmente quando tal juízo descambe no prejuízo da liberdade dos acusados. Por fim, considera-se a tese menos provável: que tudo seja obra do acaso e que os grupos de casos julgados por uma das Câmaras sejam de casos coincidentemente mais graves se comparados aos da outra. Essa, no entanto, seria uma justificativa pouco crível, pois foram coletados dezenas de julgados e, se avaliados os próprios teores dos acórdãos, perceberá que não apontam para uma disparidade tão marcante, mas, paradoxalmente, apontam para respostas diferentes.

Ou seja, não há entendimento unitário sobre as novas disposições acerca das medidas cautelares diversas da prisão para os desembargadores do referido Tribunal, fator que provoca insegurança jurídica.

Mas dos aspectos que mais chamaram a atenção na pesquisa, destacamos dois problemas principais: a falta de fundamentação adequada para afastar a aplicação de medidas cautelares diversas à prisão - eis que se defende uma análise pormenorizada de cada cautelar, e não uma leitura genérica dos institutos - e a aplicação ex officio, por todas as câmaras criminais (a Corte estadual segue, aqui, a orientação do Supremo Tribunal Federal) das referidas cautelares.

Ainda é sintomático o fato de que decisões contenham trechos entendendo que a imposição de medidas cautelares diversas da prisão somente seria possível quando não for caso de prisão preventiva; ou seja, se estiverem presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, à luz do entendimento do Tribunal, o juiz não seria obrigado a apreciar a eventual possibilidade de aplicação das cautelares. Esse entendimento é flagrantemente contrário às disposições da Lei nº 12.408/11, pois o artigo 282, §6º do Código de Processo Penal não deixa dúvidas quanto ao fato de que a prisão preventiva é subsidiária às cautelares, é verdadeiramente a ultima ratio do processo penal.

Enfim, o que se percebe no geral é que há uma dificuldade do intérprete em enxergar o novo com os olhos do novo. Para concretizar um sistema que se oriente pela baliza de proibição de excesso é fundamental uma nova mentalidade a todos os personagens participantes, sejam juízes, delegados, advogados, legisladores e juristas.


Notas e Referências: 

[1] Cujo conceito mais moderno é o de um "Sistema penal caracterizado pela gestão das provas pelas partes".

[2] Art. 310, caput, do Código de Processo Penal: "Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:" c/c inciso II de mesmo artigo: "Converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão [...]".

[3] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC127186voto.pdf> Acesso em 01/05/2015.

[4] Ao deferir o habeas corpus, o Supremo Tribunal Federal impôs as seguintes medidas: a) afastamento da direção e da administração das empresas envolvidas nas investigações, ficando nas proibido de ingressar em quaisquer de seus estabelecimentos, e suspensão do exercício profissional de atividade de natureza empresarial, financeira e econômica; b) recolhimento domiciliar integral até que demonstre ocupação lícita, quando fará jus ao recolhimento domiciliar apenas em período noturno e nos dias de folga; c) comparecimento quinzenal em juízo, para informar e justificar atividades, com proibição de mudar de endereço sem autorização; d) obrigação de comparecimento a todos os atos do processo, sempre que intimado; e) proibição de manter contato com os demais investigados, por qualquer meio; f) proibição de deixar o país, devendo entregar passaporte em até 48 (quarenta e oito) horas; g) monitoração por meio da utilização de tornozeleira eletrônica.

[5] É explicada pelo autor como uma forma de trabalho pautada por um critério de seleção de julgados representativos de determinado Tribunal alvo da investigação, com delimitação do período de tempo da pesquisa e criação de marcadores (palavras-chave) que permitam selecionar julgados relacionados com o tema da pesquisa.

[6] HC 1354780-1; HC 1247804-3; HC 1352625-7; HC 1342991-3; HC 1348109-9; HC 1352151-2; HC 1332415-5; HC 1353408-0; HC 1329530-2; HC 1285599-1; HC 1335756-3; HC 1344225-2; HC 1353510-5; HC 1334885-5; HC 1348960-2; HC  1353162-9; HC 1324681-4; HC 1334666-0; HC 1350332-9; HC 1322874-1; HC 1313735-0; HC 1326933-1; HC 1324781-9; HC 1349539-1; HC 1353324-9; HC 1322251-8; HC 1342803-8; HC 1344102-4; HC 1338313-0; HC 1317557-2; HC 1278066-6; HC 1332527-0; HC 1334348-7; HC 1334719-6; HC 1319167-6; HC 1324177-5; HC 1330830-4; HC 1331949-2; HC 1333053-9; HC 1334898-2; HC 1324650-9; HC 1325187-5; HC 1328906-2; HC 1343348-6; HC 1333007-7; HC 1334107-6; HC 1285356-6; HC 1323897-8 e HC 1334470-4.

[7] HC 1323024-5; HC 1358860-0; HC 1331761-8; HC 1341495-2; HC 1357464-4; HC 1356594-3; HC 1350586-7; HC 1326689-8; HC 1330217-1; HC 1338154-1; HC 1351821-5; HC 1320338-2; HC 1343013-8; HC  1325096-9; HC 1324809-2; HC 1335936-1; HC 1324328-2; HC 1327161-9; HC 1324832-1; HC 1338750-3; HC 1337478-2; HC 1344185-3; HC 1344744-2; HC 1342806-9; HC 1344226-9; HC 1328308-6; HC 1345092-7 e HC 1344141-1;

[8] Disponível em <https://www.tjpr.jus.br/regimento-interno>. Acesso em 31/08/2015.

[9] TJ/PR. HC 1328906-2. Rel. Renato Naves Barcellos. 4ª Câmara Criminal. DJ 19/03/2015.

[10] HC 1351821-5.

[11] HC 1352625-7.

[12] O paradigma filosófico da consciência, de Immanuel Kant, confere uma proeminência à figura do sujeito. Esse entendimento decerto que gera o chamado sujeito solipsista, aquele que se basta, detentor (e produtor) dos sentidos. Todavia, em que pese não haver superação de sistemas filosóficos, hoje parece mais democrático o paradigma da linguagem, desde Ludwig Wittgenstein, passando por Heidegger e Gadamer, com a precisa contribuição para o Direito dada pela Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck, em que o sentido e os limites do entendimento estão não no objeto (paradigma ontológico) e nem no sujeito (paradigma da consciência), mas nos jogos de linguagem e na pré-compreensão estruturante. Os impactos do paradigma da consciência foram tão profundos para a sociedade ocidental em especial que, ainda hoje, muitos sujeitos ainda estão presos em ideais solipsistas, muitas vezes sem saber disso; pela análise de algumas decisões, parece o caso de alguns juízes.

CARVALHO, Salo de. Como (não) se faz um trabalho de conclusão: provocações úteis para orientadores e estudantes de Direito / Salo de Carvalho. - 3. ed. - São Paulo: Saraiva, 2015;

FREITAS, Jayme Walmer de. Prisão Cautelar no direito brasileiro / Jayme Walmer de Freitas - 3.ed. - São Paulo: Saraiva, 2013;

JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 15. ed. Editora Saraiva, 2015;

PACELLI, Eugênio. Prisão preventiva e liberdade provisória: a reforma da Lei nº 12.403/11. São Paulo: Atlas, 2013;

STRECK, Lenio. A dupla face do Princípio da Proporcionalidade e o cabimento de Mandado de Segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico. Disponível em <http://www.mprs.mp.br/criminal/doutrina/id385.htm>. Acesso em 09/11/2015.


Pedro Henrique Machado da Luz. Pedro Henrique Machado da Luz  é Graduado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba. Pós-graduando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito do Mercosul - NUPESUL, da Universidade Federal do Paraná e do Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia (UFPR).


Rodrigo Régnier Chemim GuimarãesRodrigo Régnier Chemim Guimarães é Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutor em Direito de Estado pela UFPR.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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