A demonização do direito de defesa

27/04/2017

Por Soraia da Rosa Mendes e Marilia Araújo Fontenele de Carvalho - 27/04/2017

Ancorada em mitológicas[1] neutralidades, tanto do judiciário, quanto do Ministério Público, a desestabilização da concepção de processo penal como mecanismo de controle e contenção dos abusos do poder estatal adubou e tornou fértil uma nova sementeira na qual tem brotado (crescido e dado frutos), desde certas regiões agrícolas[2] do país, para usar uma expressão de Juarez Cirino dos Santos, tendências claramente antidemocráticas e demonizadoras.

Um cenário no qual, assim como nos tempos de trevas, em que julgador-inquisidor eram uma figura única (papéis que atualmente, no mais das vezes, somente se diferenciam pelos lugares que MP e Juiz/a ocupam no espaço físico da sala de audiências) a defesa também é trazida ao centro das atenções para que, conjuntamente com os aclamados “delinquentes”, torne-se alvo de execração pública. É como se Eymerich redivivo autorizasse a presença do advogado como uma espécie de perito ao qual, somente segundo a vontade e necessidade do inquisidor, seriam dados a conhecer a este o conjunto das peças do processo, os nomes dos acusados, das testemunhas e dos delatores[3].

A espetacularização do processo penal é hoje parte da indústria do entretenimento. Um segmento rentável para setores da grande mídia capazes de cegar, ensurdecer e alimentar o “público” com a satisfação de um certo sadismo demonizador do direito de defesa. Por outro lado, nestes nossos tempos de dogmática penal e processual apática e simplista, decorrente do manualismo raso que acomete nossas instituições, o descumprimento de princípios norteadores da Lex Major e a flexibilização de garantias fundamentais são males “necessários”, vistos como naturais para que nosso mal-aventurado sistema de justiça criminal prenhe de “privilégios” seja, enfim, expurgado.

A crescente atenção dos meios de comunicação de massa[4], que criam narrações distantes da complexidade dos fatores criminais e humanos postos à apreciação do Poder Judiciário, propicia perspectivas maniqueístas e sensacionalistas[5], transformando o caso penal, a depender do fascínio exercido pela conduta pretensamente perpetrada, em fantasiosa luta do bem contra o mal, personificado no cidadão sentado no banco dos réus e do advogado/a que está ao seu lado.

Essa estetização profunda do processo penal pátrio promoveu sua transformação, em um processo penal do espetáculo[6], que seguindo seu enredo, tem o condão de afastar a lei, naquilo que em substância são direitos e garantias fundamentais. Não devem existir limites à ação dos mocinhos contra os bandidos.

Não é só. Tudo deve ser asséptico, acrítico, simplório e condicionado por uma tradição autoritária brasileira. O espetáculo aposta na exceção[7]. O respeito à legalidade e às garantias fundamentais podem ser isoladas, já que contraproducentes e enfadonhas para a atração que se deseja apresentar.

Mas, lembremos: como há muito nos ensinou Galeano, na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que contribui com os mortos[8].

Como sabemos, o processo penal não se presta qualquer batalha, que não a política e social. E, por ser campo marcado pela tensão do possível constrangimento das liberdades individuais, é óbvio que as ações e omissões cometidas em seu espaço produzem efeitos de forte significado social. Daí porque ser preciso lembrar com Ferrajoli que os custos de aplicação temerária do Direito Penal e seus postulados pesam não apenas sobre os culpados, mas sobretudo sobre os inocentes[9], de modo que deve o Estado Democrático de Direito, por intermédio de seus atores e agentes estatais, sempre ir de encontro a atos tendencialmente autoritários que, como pressuposto afastam garantias fundamentais, como é o pleno exercício do direito de defesa e o correlato direito ao exercício desta tarefa.

Quem, como advogado ou advogada militante na área criminal nunca ouviu uma pergunta do tipo “se defende corrupto, defende a corrupção”? Esquecem-se aqueles e aquelas que lançam seus olhares acusadores e autoproclamados como de ilibada moral para advocacia que questionamentos como esses nada mais são do que outra maneira de repetir a velha máxima totalitária sintetizadora da intolerância “se não está comigo, está contra mim”. Um pensamento que, pouco mais de meio século atrás, levou milhares a campos de concentração, e que hoje, cada vez mais, levanta muros que cercam países.

Infeliz, mas não espantosamente, este modo de pensar está também nas veias de uma cultura autoritária dos agentes de realização da ordem jurídica, como o Ministério Público, local ou federal, e a Magistratura.

Como bem já referiu Salo de Carvalho, em pesquisa de campo realizada com os membros do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul[10], embora 48% tenha respondido que, em escala de prioridades, ser o papel do parquet a tutela dos direitos e garantias individuais, mais da metade dos componentes do órgão ministerial gaúcho (54,4%), identificou-se com as políticas de tolerância zero, em oposição a 8,2% dos que afirmaram ser influenciados e influenciadas pelo garantismo penal. Na magistratura o cenário foi semelhante, com adesão integral ou parcial a correntes punitivistas, sobretudo por parte dos juízes de piso[11].

Em um contexto como este, resta ao defensor no cotidiano do exercício de seu mister, não raro humilhante, além de reagir à imputação de crimes visando a minimização dos efeitos da criminalização ou da punição ante a restrição de sua atuação em razão dos demais atores do sistema penal, que anulam direitos e garantias fundamentais, ter de lidar com a crescente criminalização de sua função[12].

No cotidiano da profissão de defesa, e em defesa, todos e todas resistem.

As defensoras e defensores públicos resistem como garantidores de escassos direitos dos miseráveis cidadãos e cidadãs que, em maior número e assiduidade, frequentam os bancos dos réus. E resistem as advogadas e os advogados privados, que militam contra o poder aniquilador do Estado, para o reconhecimento e legitimação dos direitos e garantias fundamentais, que, frise-se, são asseguradas a todos e todas.

Olvidam-se, ou querem deliberadamente esquecer, os Tribunais, o Ministério Público, a opinião pública e a mídia que a verbalização da defesa em plenário não se confunde com conivência ou coparticipação do patrono com o crime em análise. E com isso constroem a demonização do exercício do direito de defesa que descamba em questionamentos sobre a conduta pessoal de advogados e advogadas fazendo-as alvo fácil de selvagens e agressivas ofensivas por parte do público, que desejam obter a punição do “criminoso” a qualquer custo.

A grande massa aplaude aos discursos fáceis e superficiais de maior rigor nas penas[13] de prisões antecipadas, e facilmente “compra” suspeitas lançadas sobre a reputação de criminalistas em razão de sua clientela, questionando, inclusive, seu crédito e valor para exercer cargos públicos. E, de outro lado, também saúda quando outros atores do sistema de justiça, encobertos sob um manto de neutralidade que travestida de princípio dá origem a um mito de viés autoritário[14], são elevados a condição de heróis da pátria, e reconhecidos como o depósito das esperanças do grande público de verem o país livre da corrupção.

A defesa atua sob a égide da lei, sendo a porta-voz dos direitos de todo e qualquer cidadão e cidadã em todas as esferas do judiciário, sendo seu etiquetamento contínuo como “inimigo público”, no mínimo, desleal com ela e com ela representa.

Talvez o profundo desconhecimento do conteúdo dos direitos fundamentais e as consequências de sua flexibilização no panorama atual de espetacularização do processo penal tenham como um dos reflexos a desmoralização, o menosprezo e o desprestígio do exercício do direito de defesa, que tem por missão invocar garantias constitucionais àqueles/as que passam pelos filtros seletivos do sistema penal[15]. Todavia, por mais que isso incomode a alguns e algumas, as garantias seculares não podem ser etiquetadas como tumultos e chicanas impeditivas de “uma justiça” de juízes e tribunais ou da opinião, não pública, mas meramente publicada.


Notas e Referências:

[1] CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.

[2] Jurista que “puxou a orelha” de Moro em audiência é sumidade entre criminalistas. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/jurista-que-201cpuxou-a-orelha201d-de-moro-em-audiencia-e-sumidade-entre-criminalistas. Acesso em: 23nov2106.

[3] Nicolau Eymerich, escreveu em 1376 o Directorium inquisitorum, ou o Manual dos Inquisidores, nos quais em um didático sistema de perguntas e respostas tratava da processo e da prática inquisitorial. Posteriormente o manual foi revisto e ampliado porm Francisco de La Peña em 1578.   Eymerich, Nicolau. Directorium inquisitorum: manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1993. Pp. 225.

[4] CASARA, Rubens R. R., Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1. Ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015, p. 12.

[5] CASARA, Rubens R. R., Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1. Ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015, p. 12.

[6] CASARA, Rubens R. R., Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1. Ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015.

[7] CASARA, Rubens R. R., Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1. Ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015, p. 13.

[8] GALEANO, Eduardo. O teatro do bem e do mal. São Paulo: Coleção L&PM Pocket, 2006.

[9] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 203.

[10] Ibidem, p. 101.

[11] Ibidem, p. 104.

[12] CASARA, Rubens R. R., Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1. Ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015, p. 29.

[13] CASARA, Rubens R. R., Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1. Ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015, p. 33.

[14] CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015. Pp. 147.

[15] CASARA, Rubens R. R., Processo Penal do Espetáculo: Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. 1. Ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015, p. 29.


Soraia da Rosa Mendes. Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e pós-doutoranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. .


Marilia Araújo Fontenele de Carvalho. . Marilia Araújo Fontenele de Carvalho é advogada criminalista, pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Chess board // Foto de: Eugen Anghel // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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