A CURIOSA HISTÓRIA DA BATATA IDEAL: UMA FICÇÃO TRIBUTÁRIA  

17/10/2021

Quem não tem ilusões? Quem não constrói castelos no ar? Todos, desde o soberbo Pirro até a Vendedora de leite. Todos, tanto os sábios quanto os loucos. Sonhamos acordados e não há nada mais agradável que deixar fantasias enormes se apoderarem de nossas almas. Quando estou sonhando, sou tão valente que desafio o mais bravo, elejo-me Rei de um povo que me adora, visto coroas. No entanto, qualquer imprevisto me devolve à realidade e volto a ser o mesmo pobre Jean de antes. (A leiteira, Jean de La Fontaine[1]).

Em a leiteira, retrata-se a distorção causada por uma visão dicotômica entre “o que é real” e “o que é ideal”. Não se deve levantar, por assim dizer, uma barreira intransponível. Do ponto de vista fenomenológico, Gadamer chega à mesma conclusão de que não podemos falar em “mundo-em-si”, porquanto a realidade se apresenta sempre dentro de um horizonte histórico de possibilidades, estando desde sempre pleno de idealidade[2].

Em artigos anteriores, ressalto que a dogmática jurídica, especialmente na esfera tributária, não decifrou este enigma hermenêutico segundo o qual não há compreensão fora da linguagem[3]. Assinalo isso uma vez que a discussão nas causas judiciais permanece em torno de “conceitos puros” ou “essências”, buscando por uma resposta pré-linguística. Sendo assim, prevalece o entendimento de que a “coisa” se reduz a algo palpável ou captada por algum outro sentido (extra-)sensorial. 

Alguns anos atrás (2009), um interessante julgamento tributário na Inglaterra chamou atenção por envolver justamente a problemática acerca da percepção da “coisa”.

A Court of Appeal (Civil Division) apreciou o caso Procter & Gamble (UK) versus HMRC[4], na qual a proprietária da marca de salgadinho Pringles pleiteava que o produto fosse enquadrado na regra geral cuja classificação tributária previa alíquota 0%. A controvérsia era a de que os gêneros alimentícios se sujeitam à alíquota zero, a não ser que previstos na lista de exceções, a exemplo dos chips de batata ou similares produzidos de farinha de batata. Com base nisso, os advogados da empresa alegaram que a composição do snack teria em torno de 40% de farinha de batata e, por isso, não incidiria na ressalva.

No acórdão, o Lord Justice Jacob entendeu que seria imprecisa a realização de um teste quantitativo ou qualitativo para fins de se investigar a natureza do produto. Segundo sua linha de raciocínio, o Parlamento jamais teria previsto um percentual de insumo de batata necessário ou uma essência mínima de sabor de batata. Logo, o Tribunal também não o poderia fazê-lo, caso contrário estaria legislando. Em seguida, ressaltou que não havia uma questão pura de fato ou de direito, e sim uma disputa interpretativa em que ambos os elementos estariam implicados. Nessa ordem de ideias, destacou que a resposta jurídica correta não estaria atrelada a aspectos técnicos ou científicos, mas adequada ao direito aplicável. Em conclusão, entendeu que a mercadoria não teria direito a uma alíquota zero, tendo em vista que este seria o sentido mais coerente dos conceitos de “semelhante a” ou “feitos de” dentro do contexto de seu uso cotidiano.

Verifica-se que a Corte Inglesa demonstrou que as exceções à alíquota zero previstas para os gêneros alimentícios em geral não devem, necessariamente, serem interpretadas restritivamente, porquanto a própria alíquota zero é uma exceção à alíquota padrão. Analisando a legislação do IVA, as regras devem ser interpretadas de maneira que melhor realizem os padrões nela implícitos. Isto significa que o Direito não se reduz à literalidade das regras. Há, pelo contrário, um aspecto prático que os princípios visam a resgatar, sendo necessário a incidência de algum princípio para derrogação da alíquota padrão.

Com efeito, realçou-se o caráter interpretativo do Direito, segundo o qual o significado das palavras não se confunde com o conteúdo psíquico real da consciência. Aliás, foi este o papel decisivo da hermenêutica, ao evidenciar que a coisa só é na medida em que nomeada enquanto tal. Elas já vêm dotadas de sentido, transmitidas pelo horizonte histórico.

Dessa maneira, a matriz de pensamento centrada em conceitos imutáveis, fundamentada na ideia de uma linguagem projetiva, torna-se enganoso. Sendo seres finitos e históricos, nossa mobilidade histórica alcança apenas um saber datado. A experiência linguística não apreende todos os aspectos e modos do mundo. Sempre faltando algo, os conceitos que temos parametrizam nosso ponto de vista, porém, são postos à prova a todo instante.

Dessa relação linguística com o mundo, a moral da história é que as fábulas servem para uma importante missão instrutiva, e não apenas para puro deleite. Nelas há algo de oculto que a linguagem fantasiosa esconde, cabendo ao leitor interpretá-las. Seguindo a mesma lógica, a verdade para o Direito reside na implicitude, incluindo a mediação do tempo na atualidade da compreensão.

Por tudo isso, as fábulas e o Direito não buscam aceder à “batata ideal”, e sim encontrar o significado da experiência que a batata desempenha para os comensais no seio de determinado momento único e singular.  Dito de outro modo, não cuidam de responder se há batatas ou não!                       

*Post scriptum: em razão da SC DIANA/SRRF07 Nº 15/ 2013, o Produto alimentício crocante obtido a partir de uma massa à base de pó de batata (cerca de 40%) e outros ingredientes, frito em óleo e pronto para o consumo, denominado comercialmente "Batata Pringles" “é” o CÓDIGO NCM: 1905.90.90,  descrito como Produtos de padaria, pastelaria ou da indústria de bolachas e biscoitos, mesmo adicionados de cacau; hóstias, cápsulas vazias para medicamentos, obreias, pastas secas de farinha, amido ou fécula, em folhas, e produtos semelhantes, na subclassificação “outros”, sujeito a uma alíquota de IPI de 0%. Contrariando a filosofia de Quincas Borba, ao vencedor sem batatas!

 

Notas e Referências

 

[1] In Fabulas. Trad. Adap. René Ferri. São Paulo: 2020, p.72.

[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.

[3] Especialmente em (Auto-)nomia do direito e linguagem: uma resposta hermenêutica para a conexão entre direito tributário e contabilidade. Disponível em: https://revista.trf1.jus.br/trf1/article/view/293/171

[4] Revenue & Customs v Proctor & Gamble UK [2009] EWCA Civ 407 (20 May 2009), Disponível em: https://www.bailii.org/ew/cases/EWCA/Civ/2009/407.html.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ronmacphotos/8704611597

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