Cada vez mais comum nos dias de hoje, o chamado “estupro coletivo” vem ganhando notoriedade nos meios de comunicação e alcançando a repugnância da quase totalidade da sociedade brasileira.
Não que essa modalidade de estupro constitua novidade no país, sendo conhecida de longa data por todos aqueles que labutam diariamente na seara penal.
A novidade consiste justamente na divulgação desse ato vil pelas redes sociais e aplicativos de compartilhamento de informações, não raras vezes exibindo o rosto dos estupradores e mostrando a vítima como um troféu, uma presa abatida, como um pedaço de carne que pudesse ser usado e abusado por aqueles que perderam (ou nunca tiveram) qualquer respeito pelo ser humano.
A vítima, no mais das vezes, com sua dignidade aniquilada pelo ato brutal e covarde, ainda sofre com a chamada “vitimização secundária”, sendo alvo de toda a sorte de desconfianças e recriminações, até por parte de familiares, como se tivesse pedido para ser vitimizada, única e exclusivamente pela sua condição de mulher.
Há, inclusive, aqueles que tentam explicar o ocorrido por meio de teorias que sustentam a chamada “perigosidade vitimal”, como estado psíquico e comportamental em que a vítima se coloca, estimulando a sua vitimização.
Não se trata, por óbvio, de ingressar no estudo da vitimilogia nestas linhas, assunto que deixaremos para outra oportunidade.
É inegável, porém, que a vítima sofre inúmeras conseqüências (físicas, morais, psicológicas, emocionais, patrimoniais etc) em decorrência do crime, não havendo praticamente nenhum dispositivo de lei que a ampare, que lhe forneça assistência psicológica, médica, jurídica e material, ocorrendo, isso sim, um verdadeiro incentivo a que permaneça no anonimato, não buscando as autoridades, até por receio da chamada “vitimização secundária”.
A “vitimização secundária”, ou sobrevitimização, como se sabe, é uma espécie de dano adicional sofrido pela vítima em decorrência do próprio funcionamento da persecução criminal do infrator, desde a fase policial até a fase judicial. É o conjunto de circunstâncias e eventos que, ocorrendo após o crime (vitimização primária), prolongam ou agravam as conseqüências suportadas pela vítima. Como exemplos de “vitimização secundária” podemos citar o mau atendimento que eventualmente receba a vítima em delegacias de polícia, institutos médico-legais, fóruns e varas criminais. Também o preconceito da sociedade, amigos e pessoas da família em relação à vitimização primária. A busca por providências policiais, a submissão a exames de corpo de delito, a narrativa das minúcias da violência sexual sofrida, as sucessivas oitivas policiais e judiciais, tudo isso traz invariavelmente à vítima uma sobrecarga vitimal que a faz deixar de lado, muitas vezes, a procura por justiça ao se ver vitimizada. Ademais, via de regra, a vítima comparece sozinha e às suas expensas às repartições policiais e fóruns, enfrentando toda a sorte de dificuldades, não tendo um advogado a acompanhá-la, aconselhá-la ou instruí-la.
Mas não é só isso. Outro aspecto da questão precisa ser analisado.
O que levaria o participante de um “estupro coletivo” a compartilhar, nas redes sociais, a sua “proeza”, exibindo seu rosto (às vezes até sob a forma das chamadas “selfies”) e possibilitando a sua identificação, ao lado da vítima abatida?
Seria a certeza da impunidade? Seria a necessidade incontrolável de mostrar às pessoas de seu relacionamento cibernético a “façanha” praticada, como espelho de uma personalidade narcisista e doentiamente exibicionista?
Cremos que as razões são múltiplas. A permissividade da sociedade, a complacência da legislação, a leniência das autoridades envolvidas na persecução criminal e na concretização da justiça são apenas algumas das causas primitivas desses bárbaros atos que deveriam ser tratados com muito mais rigor pelo Poder Judiciário, não apenas com a fixação de reprimendas mais severas, como também por meio do indeferimento indiscriminado de benefícios em sede de execução penal.
Iniciativa interessante é o Projeto de Lei do Senado nº 618/2015 que, embora não prevendo a figura típica do “estupro coletivo”, insere no Código Penal o art. 225-A, do seguinte teor:
“Art. 225-A. Nos casos dos arts. 213 e 217-A deste Código, a pena é aumentada de um terço se o crime é cometido em concurso de duas ou mais pessoas.”
A par disso, com relação à divulgação do material que contenha cena de estupro, foi incluída uma emenda da senadora relatora visando criminalizar, com pena privativa de liberdade de dois a cinco anos, quem “oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar”, por qualquer meio, inclusive sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro.
Embora louvável a iniciativa, é certo que não se resolve o problema criminal no Brasil com a edição de leis mais severas ou com a criação de tipos penais específicos, mas fundamentalmente com a implementação da cultura da certeza da punição, hoje distante da sociedade, robustecendo-se as finalidades punitiva e preventiva da sanção penal, já que o paradigma ressocializatório, para “estupradores coletivos”, é paisagem linda, porém distante, mais da realidade do que das assertivas “politicamente corretas” que povoam o inconsciente de grande parte da comunidade jurídica nacional.
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