A criminalização da violência obstétrica – Por Ricardo Antonio Andreucci

02/02/2017

Foi sancionada pelo governador de Santa Catarina, João Raimundo Colombo, no último dia 17 de janeiro, a Lei nº 17.097, que tem por objeto a implantação de medidas de informação e proteção à gestante e à parturiente contra a violência obstétrica naquele Estado.

A violência obstétrica é um problema que assola diversos países, tendo ganhado maior repercussão no Brasil há alguns anos, a partir de diversos levantamentos feitos por órgãos públicos (Ministério Público, Defensoria Pública etc), secundados por estatísticas coligidas por institutos, fundações e organizações não governamentais, dando conta do número assustador de mulheres que são vitimizadas por esta prática abominável.

A lei acima citada foi publicada no Diário Oficial do Estado de Santa Catarina no dia 19 de janeiro p.p., definindo, em seu artigo 2º, o que se deve entender por violência obstétrica.

É bem verdade que a definição constante da lei é bastante semelhante àquela já veiculada pela Organização Mundial de Saúde, em 2004, por meio da declaração sobre “Prevenção e Eliminação de Abusos, Desrespeito e Maus-tratos durante o Parto em Instituições de Saúde”, guardando, também, similitude com diversas outras definições constantes de publicações especializadas sobre o assunto.

O art. 2º da sobredita lei estadual estabelece que se considera violência obstétrica “todo ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um familiar ou acompanhante que ofensa, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de parto ou, ainda, no período do puerpério.”

No art. 3º, a lei estabelece as condutas consideradas ofensa verbal ou física, dentre as quais, merecem destaque: tratar a gestante ou parturiente de forma agressiva; fazer graça ou recriminar a parturiente por qualquer comportamento como gritar, chorar, ter medo, vergonha ou dúvidas; fazer graça ou recriminar a mulher por qualquer característica ou ato físico como, por exemplo, obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros; tratar a mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos, tratando-a como incapaz; fazer a gestante ou parturiente acreditar que precisa de uma cesariana quando esta não se faz necessária, utilizando de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados e sem a devida explicação dos riscos que alcançam ela e o bebê; impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência durante todo o trabalho de parto; submeter a mulher a procedimentos dolorosos, desnecessários ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas, exame de toque por mais de um profissional; proceder a episiotomia quando esta não é realmente imprescindível; submeter a mulher e/ou bebê a procedimentos feitos exclusivamente para treinar estudantes; dentre outras.

Percebe-se, portanto, que a violência obstétrica pode se manifestar de várias formas, podendo ser considerada como toda ação ou omissão realizada por profissionais da saúde que, de maneira direta ou indireta, tanto no âmbito público como no privado, afete o corpo e os processos reprodutivos das mulheres, expressa em um trato desumanizado, em abuso de medicação ou em patologização dos processos naturais, podendo abranger, ainda, o processo de apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos.

Mas seria necessário criminalizar a violência obstétrica?

Acreditamos que sim, tal a gravidade das condutas praticadas e a nocividade para a gestante e/ou bebê dos procedimentos que caracterizam a violência obstétrica.

Já há países, como Argentina e Venezuela que tratam a violência obstétrica como crime.

Na Argentina, a Lei Nacional 25.929, de 2004, chamada de “Lei do Parto Humanizado”. Também a Lei 26.485, de 2009. Na Venezuela, a “Ley Orgánica sobre el Derecho de las Mujeresa uma Vida Libre de Violência de 19.03.2007.”

No Brasil, longe de ser considerada conduta criminosa, a violência obstétrica vem tratada somente no âmbito administrativo, e, ainda assim, de maneira muito acanhada. Só para se ter idéia, a Lei nº 11.108/05, alterando o art. 19 da Lei nº 8.080/90, garantiu às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, direito esse que vem sendo constantemente negado, segundo relato de diversas mulheres ouvidas por instituições especializadas no assunto.

Outro dado alarmante foi apresentado em agosto de 2010 pela Fundação Perseu Abramo, em publicação intitulada “Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos e Privados”, dando conta de que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto.

Essa violência, como já anotado, é tanto física como verbal, consistente em xingamentos e impropérios proferidos pelos profissionais da saúde, colocação em situação vexatória e constrangedora, submissão a sofrimento desnecessário, realização de procedimentos igualmente desnecessários (indução do parto por medicamentos, cesariana, episiotomia etc), e até mesmo a prática de atos libidinosos, como introdução de dedo no ânus da gestante, exames de toques por diversos profissionais e por estudantes de maneira desrespeitosa. Isso sem mencionar expressões do tipo: “na hora de fazer você gostou, não é?”, “quem manda no procedimento sou eu”, “cale a boca e pare de gritar”, “não era o que você queria? Agora aguenta a dor”.

No Brasil, as normas de cunho não criminal que tratam do assunto não são suficientes para conter a escalada da violência obstétrica na rede pública de saúde e também nos estabelecimentos particulares.

Alguns podem argumentar: não seria melhor educar a criminalizar?

Ora, justamente os protagonistas da violência obstétrica são, em regra, pessoas com nível cultural acima da média, em sua maioria portadores de nível superior nas diversas áreas da saúde (medicina, enfermagem etc). Educação não falta para essas pessoas e nem tampouco conhecimento sobre as nefastas consequências de seus atos.

A criminalização, nesse passo, seria a melhor alternativa, a exemplo do que já se fez com o assédio sexual, com a violência contra a mulher e com outras condutas violadoras da dignidade humana.

Afinal, como bem anotado pela Organização Mundial de Saúde, a violência obstétrica constitui uma grave violação aos direitos humanos.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Inauguración del Hospital Municipal de Chiconcuac // Foto de: Presidencia de la República Mexico // Sem alterações

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