Por Cândice Lisbôa Alves - 17/08/2016
Na semana passada aconteceu a seleção para ingressantes no projeto de extensão que coordeno na Universidade Federal de Uberlândia. Trata-se do “Constituição na Escola”[1] que abarca atividades de ensino, pesquisa (com iniciação científica versando sobre as temáticas que cercam o mesmo), e a extensão propriamente dita. Haja fôlego: são muitas vertentes em um só projeto, o que requer esforço triplicado.
O processo seletivo foi simples e profundo ao mesmo tempo. A pergunta era: “o que você está fazendo aqui?”, e com ela eu tinha a intenção de saber se o aluno vincula-se ou não à ideologia das ações que proponho com a extensão. Em especial eu buscava perceber uma aptidão/experiência ou habilidade com o aspecto social do projeto, ou a aderência do aluno à minha insistente visão de que o Direito Constitucional pode ser instrumento apto à promoção da participação e, mais adiante, da emancipação social. Como já falei em grupos de estudos, devemos aplicar os ensinamentos de Boaventura de Souza Santos, no sentido de que o Direito pode/deve ser instrumento contra o próprio direito. Explico: contra uma realidade de exclusão chancelada pelo Direito, somente cabe o combate por meio de uma visão de Direito voltada para o social. Esse trabalho tem sido desempenhado pelo Direito Constitucional no Brasil, sob a nomenclatura – não unânime – de ativismo judicial. Mesmo recebendo várias críticas – de pessoas que me julgam sonhadora – eu penso que seja esse elemento que torna o Direito Constitucional mágico. Imagino, e quase visualizo, a possibilidade de abraço do Direito sobre pessoas necessitadas, como o que ocorre quando um deferimento de saúde que salva uma vida, ou quando se garante a creche escolar a criança e assim a mãe pode trabalhar para sustentar essa mesma criança. O que seria isso senão um fraterno abraço, ou, uma espécie de resgate social?
Voltando ao projeto, minha segunda intervenção no processo seletivo foi: “diga um sentimento”. Todos me olharam e disseram: “hein?”. Eu disse: só um sentimento, tem tantos por aí...(rs). Eles deram uma risada nervosa e começaram a escolher os sentimentos que queriam. Vieram: gratidão, solidariedade, amor, respeito, empatia, reciprocidade , estranhamento - como possibilidade de troca - ubuntu, carinho, compaixão, independência, resiliência, esperança e dúvida. Em algumas manifestações – como quando disseram solidariedade - deixaram claro que não sabiam se aquilo era sentimento, mas se expressaram – e queriam se expressar – dessa forma. Algumas palavras se repetiram muitas vezes. A mais recorrente foi esperança. Então, eu me pergunto, o que tudo isso significa? Esperança de quê? Para quê? Estaríamos falando, supostamente, de um Direito Constitucional que tem coração? Ou de pessoas com coração que usam o Direito Constitucional para causas sociais? E o que dirão os adeptos do positivismo jurídico que rechaçam com veemência qualquer aproximação entre moral e direito, tomando como argumento a segurança jurídica? Dúvidas... reflexões sem resposta pronta ou acabada... apenas inseridas em um espaço de construção.
Dúvidas e inquietações são algo bom. O início do Iluminismo se deu por meio das dúvidas, e elas podem ser consideradas a força motriz das grandes transformações do e no mundo... com elas há a oportunidade de aperfeiçoamento do contexto atual. Elas escancaram o que o status quo não gosta de mencionar, por medo de perder uma posição privilegiada. Mas, não há como calar uma mente inquieta, tampouco a vontade de ajudar ao próximo. Assim, mesmo diante de resistências teóricas e práticas, nosso projeto se iniciou aquecido e conduzido pelo coração!
O projeto “Constituição na Escola” tem como objetivo promover transformações sociais por meio da aplicação do Direito Constitucional em comunidades vulneráveis e invisibilizadas. Aplicar Direito Constitucional é, a bem da verdade, impossível. Todavia, concretizar e conformar direitos fundamentais é atitude factível por meio, primeiro, de se levar a notícia de que as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade têm direitos. Informar é essencial, porque as pessoas distanciadas do Direito chegam a acreditar que não têm direitos. Então, faremos uma aproximação humanizada a essas pessoas: iremos olhar nos olhos e dizer que nós estamos diante delas, percebendo sua existência, suas necessidades, suas ausências...dizendo que acolhemos a realidade em que se encontram e estamos dispostos a ajudá-las da maneira como nos seja possível no projeto de extensão. Talvez o simples olhar nos olhos já faça toda a diferença.
Vamos seguir junto com a premissa de que é possível mudar. Tais atitudes promovem o resgate da autoestima de pessoas esquecidas pelo sistema, refaz o sentimento de pertencimento e mesmo de humanidade. Traz de volta a crença no fato de que “pobre também tem direito”. Primeiro por meio de se contar uma história, depois de um sorriso, e um acolhimento, e a seguir, com o estudo de caso e a análise jurídica da situação. Vamos buscar transformação social. Prol pessoas. Mirando na dignidade esquecida.
Então, enquanto pessoas vamos ver outras pessoas. Não vamos doar. Vamos trocar experiências. Vamos aplicar o Ubuntu*, porque para mudar é preciso ter um coração que pulsa. Desconfio que o Direito Constitucional tenha coração. Ouso falar de amor.
*Ubuntu: “Para os africanos, ubuntu é a capacidade humana de compreender, aceitar e tratar bem o outro, uma ideia semelhante à de amor ao próximo.
Ubuntu significa generosidade, solidariedade, compaixão com os necessitados, e o desejo sincero de felicidade e harmonia entre os homens” (Disponível em: http://www.significados.com.br/ubuntu/. Acesso em 16 de agosto de 2016)
Notas e Referências:
[1] No próximo texto vou apresentar o projeto.
. Cândice Lisbôa Alves é Bacharel em Direito pela UFV(2004). Mestre pela UFV (2006). Doutora em Direito Público pela Puc Minas(2013). Professora Adjunta I da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (2016). Professora de Organização do Estado e dos Poderes e Jurisdição Constitucional na graduação. Professora de Jurisdição Constitucional no Mestrado em Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Advogada. Coordenadora do grupo de estudos Hoplita, que analisa as atividades contramajoritárias do direito em prol dos direitos fundamentais. Uma das professoras coordenadoras do projeto Ouvidoria Acolhidas (ouvidoria especializada para atender casos de discriminação de gênero e assedio sexual na Universidade Federal de Uberlândia). Coordenadora do projeto Constituição na Escola (projeto de extensão e pesquisa que busca ensinar à crianças e adolescentes o conteúdo da Constituição, elegendo pontos relevantes para o incentivo à cidadania).
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