A competência legislativa do município decorrente do interesse local: uma abordagem histórica, doutrinária e jurisprudencial

28/02/2016

Por Daniel Thiago Oterbach - 28/02/2016

Introdução

A importância dos Municípios no Estado federal brasileiro talvez constitua a verdadeira razão deste trabalho, que, mesmo despretensioso, buscará estudar um dos temas mais atuais e controvertidos no Direito Constitucional pátrio: a competência legislativa dos municípios decorrente do conceito de “interesse local”, presente, essencialmente, no art. 30, inciso I, da Carta Política vigente.

O assunto, há muito presente na doutrina e na jurisprudência, tomou novos traços após a Constituição Federal de 1988, não só pela modificação da expressão “peculiar interesse” por “interesse local”, como também pela maior autonomia política adquirida pelos municípios, o que, para muitos autores, não encontra precedentes na história do constitucionalismo moderno.

Apesar de a Constituição vigente já possuir mais de vinte e sete anos, várias são as discussões e os problemas existentes sobre o assunto, tanto do ponto de vista teórico como prático, o que o torna ainda mais nebuloso.

Destarte, dada a relevância da matéria, far-se-á um breve histórico do Município e da sua autonomia, desde a época do Brasil-colônia até os dias atuais, enfatizando os altos e baixos do municipalismo, para, em momento posterior, se verificar o conceito e abrangência da autonomia municipal.

Dadas essas diretrizes, passar-se-á, então, à análise da competência dos Municípios para legislar sobre os assuntos de “interesse local”, onde serão demonstrados os principais conceitos adotados pela doutrina, as técnicas que visam delimitar o seu conteúdo e os problemas de ordem prática enfrentados pelo referido ente da federação.

O trabalho será encerrado por uma sucinta sistematização de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF acerca do tema. Anote-se, todavia, que esta análise será limitada, meramente complementar, com vistas a subsidiar uma futura investigação prática mais aprofundada do tema em âmbito jurisprudencial.

Ainda que sem o intuito de concluir o assunto, até por conta das limitações intrínsecas de um simples artigo, espera-se que algumas das reflexões que aqui serão ventiladas possam contribuir de alguma forma para o avanço do tema.

1. Breve histórico do Município e da sua autonomia

O Município brasileiro, no início, ainda no Brasil-colônia, herdou a mesma organização e atribuições políticas, administrativas e judiciais que possuía no Reino. Élcio REIS relata que “sob a vigência das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, as municipalidades brasileiras foram dirigidas por um residente, três vereadores, dois Almotacéis e um Escrivão.”[1] Além disso, possuíam mais um Juiz de Fora vitalício e dois Juízes comuns, eleitos com os vereadores.

Veja-se, conforme observa Itiberê de Oliveira RODRIGUES, como o município foi um transplante português, para que, nomeado o poder local pela Coroa, pudesse controlar os fatos político-econômicos.[2] Assim, não se constituiu na sua origem em uma forma espontânea de organização político-administrativa, diferentemente de seus similares alemães, ingleses e franceses, que surgiram como núcleos de oposição à monarquia.[3]

Neste período colonial, a expansão dos municípios foi restringida pela idéia centralizadora das Capitanias[4], que se desenvolveram mais pelo amparo da Igreja que pelo apoio dos donatários.[5] E, apesar da influência que já exercia na sociedade, as atividades tinham seu foco voltado para questões ainda muito diferentes das que se esboçariam nas constituições.

Com a independência e a Constituição Imperial de 1824, os municípios sofreram modificações em sua estrutura. Foram instituídas Câmaras Municipais em todas as cidades e vilas (art. 167)[6], presididas pelo vereador mais votado.[7] De acordo com RODRIGUES, a lei de 01.10.1828[8], que regulamentou o art. 169 da Constituição,[9][10] o qual tratava da administração e economia das províncias, “reduziu drasticamente a autonomia dos municípios”[11], e, como acentua Raymundo FAORO, “ficou aquém da palavra constitucional e dos vivos sentimentos despertados na quadra gloriosa”.[12]

Ainda sob a égide da Constituição Imperial, dois novos diplomas fortaleceram a autonomia municipal: o Código de Processo Penal, “a mais avançada obra liberal e a mais duramente criticada nos dez anos seguintes”, e o Ato Adicional, arrancado não às convicções mas ao medo dos moderados, que procurou “organizar um feixe de poderes, concentrados nas províncias, de cuja aliança se formaria o império”.[13]

No entanto, em 12 de maio de 1840, surgiu a Lei de Interpretação do Ato Adicional, conforme previa o seu art. 25, que veio açoitar ainda mais a autonomia municipal, pois se antes a legislação local a cargo da Assembléia Provinciana observava as demandas de cada localidade, a Lei de Interpretação uniformizou a legislação, nos dizeres de Urbano Vitalino de MELO FILHO.[14]

Registre-se, assim, que, devido ao centralismo provincial, “poucos foram os atos de autonomia praticados pelas Municipalidades, que, distantes do poder central, e desajudadas pelo governo da Província, minguavam no seu isolamento.”[15]

A Constituição de 1891 instaura não só a República, mas também a federação. As antigas Províncias, agora Estados da federação, ganham um amplo leque de poderes. Os municípios começaram a criar traços diferentes, ao menos juridicamente. O art. 68[16] da referida Carta determinou que os Estados se organizassem de forma a assegurar a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.[17] Na maioria dos Estados, foram as Câmaras Estaduais que elaboraram as leis orgânicas dos Municípios, exceto os Estados de Goiás, Pará e Rio Grande do Sul, que permitiram que cada Município votasse sua própria lei orgânica.[18]

Assim, dada a ampla gama de poderes conferida aos Estados, não se pode falar, na prática, em uma mudança significativa no tocante à autonomia municipal. RODRIGUES afirma que é quase uma unanimidade entre autores que inexistiu, na prática, a autonomia municipal.[19] MEIRELLES narra com clareza a questão da autonomia municipal nesse período:

Durante os 40 anos em que vigorou a constituição de 1891, não houve autonomia municipal no Brasil. O hábito do centralismo, a opressão do coronelismo e a incultura do povo transformaram os Municípios em feudos de políticos truculentos, que mandavam e desmandavam nos “seus” distritos de influência, como se o Município fosse propriedade particular e o eleitorado um rebanho dócil ao seu poder.[20] 

Após o período inicial da República, onde se deu o primeiro lineamento da autonomia, pode-se dizer que a Constituição de 1934 inovou, passando a discriminar as rendas pertencentes ao Município (art. 13, §2º, I a IV), e começou a preencher as lacunas do conceito amplo de autonomia. Isto porque, para assegurar o princípio autonômico, não basta que o Município possua “governo próprio”, mas também “rendas próprias”.[21]

Esta Carta previu, ainda, de forma expressa, a eletividade dos prefeitos e vereadores. Ressalta-se esse ponto, pois, sob a égide da Constituição anterior, algumas Constituições Estaduais chegaram a prever que os prefeitos seriam nomeados pelo governador, e, como menciona Pinto FERREIRA, naquela época o Supremo Tribunal Federal vacilou na solução legítima do problema.[22]

Devido à brevíssima vigência da Constituição de 1934, não foi possível apreciar os resultados do modelo implementado, que poderia ser considerado aquele que reconheceu de modo definitivo a autonomia municipal.[23]

Já a Constituição de 1937 engessou a autonomia que vinha adquirindo o Município. MEIRELLES afirma, com precisão, “sem vislumbre de erro, que, no regime de 1937, as Municipalidades foram menos autônomas que sob o centralismo imperial, porque lá os interesses locais eram debatidos nas Câmaras de Vereadores [...]”.[24]

Esta Constituição caracterizou-se pela concentração de poderes no Executivo. Feriu a autonomia municipal, cassando a eletividade dos prefeitos, para só conceder aos vereadores.[25] Deste modo, como dito acima, esta Carta fez com que a autonomia municipal quase desaparecesse. Segundo RODRIGUES, “a Constituição ‘polaca’ de 37 não foi mais que a instituição ‘semântica’ de uma realidade que se desenhava há praticamente sete anos sob o domínio varguista”.[26]

Para Raul Machado HORTA, a “Constituição de 1937 conservou o título de federal apenas no nominalismo da apresentação exterior (art. 3º). Constituição Federal no nome, mas Constituição unitária na realidade”.[27]

Na Constituição de 1946, com a deposição do governo ditatorial, novos delineamentos foram dados, e passou a se aproximar do modelo de autonomia que temos hoje, apresentando o tríplice aspecto político, administrativo e financeiro. O movimento municipalista e o trabalho inovador do STF fizeram com que isso acontecesse, “e, isto sim, foi algo novo”.[28]

Com a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969, o Município, mais uma vez, teve seu processo retardado, fruto do golpe de 1964, que visava coibir os desmandos nas três esferas estatais. Encarregaram-se, elas, assim como “os Atos Institucionais e normas subderivadas, de, tanto no plano formal quanto substancial, amarrar os municípios ao poder central”, conforme assinala RODRIGUES.[29]

Embora a existência de restrições de cunho político neste período, houve a instituição de uma competência financeira definida e melhor distribuída entre os três entes da federação, e permaneceu, mesmo durante a vigência dos governos militares, a cláusula do “peculiar interesse” dos municípios a dar contorno das autonomias legislativa e administrativa.[30]

A Constituição Federal de 1988 veio a consagrar, após todo esse período, a autonomia municipal, reconhecendo o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo (arts. 1º e 18). De acordo com RODRIGUES, este texto constitucional “foi minucioso no trato da matéria municipal, e talvez inexistam precedentes no direito constitucional comparado”.[31] Neste sentido, Paulo BONAVIDES acrescenta:

Não conhecemos uma única forma de união federativa contemporânea onde o princípio da autonomia municipal tenha alcançado grau de caracterização política e jurídica tão alto e expressivo quanto aquele que consta da definição constitucional do novo modelo implantado no País com a Carta de 1988, a qual impõe aos aplicadores de princípios e regras constitucionais uma visão hermenêutica muito mais larga tocante à defesa e sustentação daquela garantia.[32]

No plano político, o art. 29[33] dispõe que o Município será regido por lei orgânica própria, e não mais estadual como até então. Quanto ao aspecto financeiro, a específica competência tributária está lado a lado com as demais entidades federais (art. 145)[34]. Outra inovação presente na nova Carta constitucional é a modificação da expressão “peculiar interesse” por “interesse local”, fato este que receberá atenção especial no item 3 infra, pois objeto central deste trabalho.

Assim, visto o desenvolver histórico do Município e da sua autonomia, ainda que brevemente, desde o Brasil colônia até o texto constitucional vigente, impende analisar a autonomia municipal e as formas como a mesma se apresenta, a fim de que, num momento seguinte, possa-se adentrar à competência do Município para legislar sobre os assuntos de “interesse local”.

2. Autonomia municipal e suas formas de expressão

Adilson de Abreu DALLARI já afirmava em 1971 que “o princípio da autonomia das unidades políticas locais é um dos pontos basilares da organização do Estado brasileiro”[35]. Naquela época, já alertava para os problemas que, em maior ou menor grau, sofriam os Municípios brasileiros:

Mas se se podem considerar encerrados os problemas inerentes à existência dessa autonomia, é também verdade que também está em efervescência a questão do exercício dessa autonomia, pois dia a dia se avolumam os textos legais editados por outras esferas de governo, por alguns de seus órgãos e até mesmo por entidades da administração descentralizada, pretendendo impor obrigações ao Município.[36]

Disso, não se pode esquecer que o exercício da autonomia municipal é problema que persiste em determinadas questões até os dias atuais, mesmo com a ampliação conferida pela Constituição Federal de 1988.

Nas palavras de MORAES, a autonomia municipal configura-se pela tríplice capacidade de auto-organização e normatização própria, autogoverno e autoadministração.[37] A classificação dessas capacidades que configuram a autonomia municipal pode variar, dependendo do autor. SILVA, por exemplo, as classifica em quatro, separando a auto-organização da administração própria.[38]

Contudo, o que releva saber é que a autonomia municipal compreende a autonomia administrativa, que é o poder de se autoadministrar, organizar os serviços públicos locais e ordenar o seu território, a autonomia financeira, que traduz o poder de o Município decretar tributos e aplicar as rendas, e a autonomia política, que engloba o poder de auto-organização, a eletividade do prefeito, vice-prefeito e vereadores (autogoverno), bem como legislar sobre os assuntos de interesse local (normatização própria).[39] Basicamente, pode-se encontrá-las nos arts. 29 e 30 da Constituição de 1988.

E não é demais frisar que a Constituição Federal de 1988 ampliou o conteúdo da autonomia municipal, ou tornou-a plena, justamente porque conferiu aos Municípios maior autonomia política, que os caracteriza, inclusive, como entes da federação.[40] No tocante ao assunto, CARRAZA afirma:

Neste momento, nota-se que a autonomia dos Municípios é insofismável, já que elegem livremente seus Prefeitos e têm um Poder Legislativo capaz de prescrever, por direito próprio, normas jurídicas obrigatórias, obedecidos, apenas, os princípios da Constituição, aos quais, de resto, todas as pessoas devem submeter-se.[41]

Necessário se faz, então, verificar como se apresenta o verdadeiro conteúdo da autonomia municipal, de acordo com a classificação feita acima em administrativa, financeira e política, em que muito mais não há de se acrescentar.

A autonomia administrativa assim se diz porque os Municípios possuem administração própria (e não de outro ente da federação), organizam os próprios serviços e ordenam os respectivos territórios, tendo por base as suas leis.[42]

A tarefa de prestar serviços e empreender as obras públicas é fundamental no governo municipal, mesmo porque a vida em comum nas cidades e até mesmo nas zonas rurais apresenta imperativos que impõem uma atuação superior do poder público, que, nestes casos, estará mais próximo dos beneficiários.

Não menos importante, a ordenação do território visa, para ACKEL FILHO, “à disciplina da ocupação urbana e das atividades que se desenvolvem no espaço do Município para que a urbe possa constituir um todo harmônico propiciante de bem-estar aos Munícipes”.[43] E esse ordenamento é feito através do Plano Diretor, que contém os fundamentos da política urbanística segundo o solo urbano é ocupado. Visa-se, com isso, ademais, eliminar por meios preventivos os problemas da ocupação indiscriminada do solo urbano e a falta de estética que empobrece o visual da cidade.

Por autonomia financeira, tal qual prevista no art. 30, inciso III, da Constituição Federal de 1988, deve-se entender o poder para “instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei”[44]. A relevância da autonomia financeira para uma plenitude da autonomia municipal é evidente. Na maior parte da história dos municípios, como se viu, estes se viram engessados pela falta de recursos, haja vista que da competência legislativa decorrem incumbências executivas.[45]

Por sua vez, a autonomia política consiste na auto-organização, na eletividade do prefeito, vice-prefeito e vereadores, e na competência para legislar sobre os assuntos de interesse local.

A capacidade de auto-organizar-se vem expressa no art. 29, caput, da Constituição Federal de 1988, que permite ao Município elaborar sua própria Lei Orgânica, o qual atinge, assim, o ponto mais alto de sua autonomia política, conforme menciona MEIRELLES.[46] Para confirmar a assertiva, basta que se recorde que antes o Município era organizado pelos Estados.

No ano de 1982, quando o Município ainda não possuía tal capacidade de auto-organização, HORTA já alertava sobre essa necessidade:

O desenvolvimento das peculiaridades locais, que a Constituição Federal considera uma variável da organização municipal (art. 14, parágrafo único), recomenda que se confira ao Município brasileiro, no atual estágio de sua evolução, a competência de auto-organização no plano autônomo da legislação municipal. [...]. É desejável que, ingressando no domínio político da auto-organização, possa a autonomia municipal encontrar novas inspirações para o modelo organizatório do Município.[47] 

Inegável, assim, o avanço trazido pela Carta Política de 1988 neste aspecto.

A eletividade do prefeito, vice-prefeito e vereadores é regra constitucional asseguradora da autonomia política do Município, conforme assevera MEIRELLES. Afirma, o autor, que se a autonomia é a “direção própria daquilo que lhe é próprio”, a direção própria, para o Município, começa na escolha de seus dirigentes.[48] E, com a Constituição Federal de 1988, inexiste a nomeação de prefeito em qualquer Município, fato que fortalece ainda mais a autonomia municipal.

Por fim, também compreendida na autonomia política, tem-se a competência legislativa do Município no que concerne aos assuntos de interesse local. Porém, por ser de suma importância, e por ter sido escolhido como tema central do estudo, é merecedor de atenção especial, e, por isso, será trabalhado no item seguinte.

3. O “interesse local”

O fato de o Município, no Brasil, possuir competência para legislar sobre os assuntos de interesse local está consagrado na Constituição Federal de 1988, em seu art. 30, inciso I.[49] Esta é uma questão superada há tempos, ao menos teoricamente. O que, todavia, está longe de ser superado é a (in)definição daquilo que venha a ser o “interesse local”, seja simplesmente por se tratar de uma expressão cujo conceito é indeterminado, seja porque a insistência de alguns autores em tentar definir critérios objetivos para delimitar essa competência não atende ao espírito da Constituição, como também não vêm alcançando resultados práticos. Assim, há de verificar mais detidamente a questão.

Diga-se, inicialmente, que não há como falar do “interesse local”, inserto na Magna Carta de 1988, sem que antes se estude o “peculiar interesse”, que vigeu até então, desde 1891, com a primeira Constituição da República.

Mencionou-se, no item 3.1, que a Constituição de 1891 estabeleceu que os Estados deveriam se organizar de modo que ficasse assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto dissesse respeito ao seu “peculiar interesse”, cláusula esta que se manteve nas Constituições subsequentes. Desde aquela época, os problemas para compreender em que consistiria esta competência, assim como para aplicá-la, encontram-se presentes.

COLLAÇO diz que, face à vagueza da referida cláusula, ela marca, “em termos jurídicos, as misérias e grandezas do municipalismo brasileiro, porque sendo a Constituição pouco explícita quanto ao discrímen das competências municipais quase tudo há que ser extraído do conceito de ‘peculiar interesse local’.”[50]

CRETELLA JÚNIOR, sobre o peculiar interesse, escreve:

Se Município é a pessoa jurídica de direito público interno encarregado da Administração local, é claro que a regra do “peculiar interesse” vai fixar a competência daquele sujeito de direito público. Sabendo-se que “peculiar interesse” é predominância, prevalência, primazia e não exclusividade (porque não há assunto local que não seja ao mesmo tempo assunto geral), impõe-se a conclusão lógica e jurídica de que a competência do Município, em regular determinado assunto, é fixado pela “peculiaridade”, “singularidade”, “prevalência” ou “primazia” da matéria regulada.[51]

Cita-se, também, a conceituação de Sampaio DÓRIA, muito utilizada na doutrina:

Peculiar não é nem pode ser equivalente a privativo. Privativo, dizem dicionários, é próprio de alguém, ou de alguma coisa, de sorte que exclui a outra da mesma generalidade, uso, direito. A diferença está na ideia de exclusão: privativo importa exclusão, e peculiar, não. A ordem pública de um Estado é seu interesse peculiar, mas é também interesse da Nação. Logo, não é privativo do Estado. Uma escola primária que certo Município abra é seu interesse peculiar, mas não exclusivo, não privativo, porque a instrução interessa a todo o País.

O entrelaçamento dos interesses dos Municípios com os interesses dos Estados, e com os interesses da Nação, decorre da natureza mesma das coisas. O que os diferencia é a predominância, e não a exclusividade.[52]

Das definições acima transcritas, o restante da doutrina não difere substancialmente. Ou seja, por “peculiar interesse” entendem, os autores, ser a predominância do interesse do Município sobre os interesses da União e dos Estados, não significando, o termo “peculiar”, exclusividade. Contudo, notou-se que, na prática, mesmo a partir desta noção, o Município se viu amarrado para legislar sobre os assuntos de seu “peculiar interesse”.

Com a Constituição Federal de 1988, restou alterada a expressão “peculiar interesse” por “interesse local”. Mas essa modificação implica, também, em alteração do critério definidor do interesse? ALMEIDA afirma que, na espécie, “a mudança da letra não equivale a uma mudança no espírito da Constituição”.[53] Para MEIRELLES, observa-se, o “interesse local” também quer traduzir a mesma idéia de “peculiar interesse”, tanto é assim que nas suas obras publicadas após a Carta de 1988 nada se alterou nos conceitos, apenas substituiu-se a expressão. Diz o administrativista, tão somente, que o denominado “interesse local” é mais técnico e mais preciso.[54]

Diverso é o entendimento de Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO:

O texto em estudo refere-se a ‘interesse local’ e não mais a ‘peculiar interesse’. Forçoso é concluir, pois, que a Constituição restringiu a autonomia municipal e retirou de sua competência as questões que, embora de seu interesse também, são do interesse de outros entes.[55] 

Há de se discordar, neste ponto, da conclusão de FERREIRA FILHO, pois, conforme BASTOS, “interesse exclusivamente municipal é inconcebível, inclusive por razões de ordem lógica: sendo o Município parte de uma coletividade maior, o benefício trazido a uma parte do todo acresce a este próprio todo”.[56]

O que se vê, destarte, é que realmente não houveram modificações com a alteração da expressão, e isso também quer significar que as mesmas dificuldades de mais de um século atrás ainda permanecem.

Como se isso fosse insuficiente para a (in)aplicabilidade da competência municipal para legislar sobre os assuntos locais, alguns autores tentaram, de forma objetiva, estabelecer critérios para definir o “interesse local”. Veja-se, por exemplo, Carlos Ari SUNDFELD, que, ao mesmo tempo em que afirma que o referido conceito “não é fechado, admitindo uma interpretação construtiva, a variar de acordo com o momento histórico e as características do Município envolvido”, assevera a impossibilidade de serem havidos como de “interesse local” as matérias cujo tratamento legislativo a Constituição atribuiu à União ou aos Estados de forma privativa ou concorrente. Afirma, SUNDFELD, que não se pode considerar como de “interesse local” algo que a Constituição tenha outorgado a outro ente.[57][58]

Indaga-se, contudo, se, quando a Constituição Federal atribuiu aos Municípios a competência para legislar sobre os assuntos de interesse local, não excluiu ou restringiu as competências privativas e concorrentes da União e dos Estados. Uma, porque não há hierarquia entre os entes da federação para que se possa supor a referida exclusão. Duas, porque, segundo DALLARI, a predominância do interesse varia e tem efetivamente variado no tempo e no espaço, como, por exemplo, no que diz respeito à educação primária, trânsito urbano, fornecimento de energia, etc.[59] E três, porque a própria indeterminação do termo pode levar ao raciocínio inverso: se sobre o assunto a ser legislado prevalecer o interesse local, exclui-se a competência da União, pois ambas as competências possuem a mesma fonte de validade e devem ser interpretadas conjuntamente.

Observe-se, a título de exemplo, que o art. 22 da Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu inciso XI, competir privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte. Porém, vêem-se os Municípios, por extrema necessidade – leia-se interesse local – legislar sobre trânsito. Exemplo disso está no caso do Município de Criciúma – SC, que regulou por lei própria a circulação das carroças. Pergunta-se, então: Não está presente neste caso o “interesse local”? Deveria, a União, editar norma geral para os Municípios brasileiros acerca da circulação das carroças?

Acerca do tema, João Lopes GUIMARÃES afirma: 

O Município tem competência para legislar sobre questões de ‘interesse local’, compreendendo-se por ‘interesse local’ toda matéria que seja de preponderante relevância para o Município, em relação à União e ao Estado. Pois bem, ocorre que trânsito, na área municipal, é tipicamente matéria de interesse local. (Justitia, São Paulo, 59 (vol.181/184), jan./dez., 1998, p. 94-118)[60]

De outro lado, o mesmo art. 22 da Constituição vigente dispõe, em seu inciso XXIII, que é também competência privativa da União legislar sobre a seguridade social. Porém, é comum ver os Municípios legislar sobre a seguridade social de seus servidores.

Assim, é preciso desmistificar certos conceitos e regras presentes em nosso ordenamento jurídico. Não é possível compreender em que consiste o “interesse local” fora de um contexto. Não basta buscar nos dicionários o significado de “interesse” e de “local”. A verdadeira tradução da expressão deve levar em conta todo o conteúdo constitucional, assim como a realidade dos Municípios brasileiros.

Deve-se lembrar que o ente federativo mais próximo das pessoas é o Município. É ele quem sabe das necessidades e das peculiaridades existentes, sendo ele quem pode resolvê-las de maneira mais eficiente, melhorando a qualidade de vida dos munícipes. O “interesse local” deve ser visto sob o enfoque municipal, pois, caso contrário, se correrá o risco de dificilmente encontrá-lo, e sobrará aos Municípios a árdua tarefa de executar as diretrizes estabelecidas pelos outros entes da federação.

Sem a pretensão de chegar a uma resposta certa, mesmo porque esta resposta certa não existe, e ciente de que a matéria não está esgotada, verifica-se que se está longe de chegar a um consenso acerca do tema, a uma definição de “interesse local”. Resta, assim, apenas o alerta para que se veja com outros olhos a competência inserta no art. 30, inciso I, da Constituição Federal, que muito pode auxiliar os Municípios no seu desenvolvimento.

4. O STF – Supremo Tribunal Federal e o “interesse local” do Município

Por derradeiro, será exposto o posicionamento do Supremo Tribunal Federal – STF no tocante à competência do Município para legislar sobre os assuntos de interesse local acerca de algumas matérias. Devido à existência de inúmeros julgados sobre o tema, optou-se por sistematizar apenas alguns, indicando a matéria debatida.

Alerta-se, ainda, que este breve apanhado jurisprudencial não é exaustivo. Busca-se apenas, após a exposição que se fez sobre o “interesse local”, verificar como, em alguns casos, foi tratada esta competência municipal de suma importância.

A questão das competências constitucionais é bastante presente no STF, inclusive no que toca ao presente estudo – competência municipal decorrente do interesse local. Nesse rumo, não é incomum julgamentos quanto à (in)constitucionalidade de leis que tratam de matérias afetas (a) aos estabelecimentos bancários, (b) aos estabelecimentos comerciais, (c) a certas questões ambientais, urbanísticas e de serviços cartorários, bem como as que envolvem (d) trânsito. De regra, discutem a usurpação de competência de outro ente federativo ou a violação de princípios constitucionais.

No tocante aos estabelecimentos bancários, os temas mais comuns são aqueles relativos à competência para (a.1) a fixação do horário de funcionamento das agências bancárias, (a.2) tempo de espera em fila em estabelecimentos bancários, (a.3) a segurança por eles oferecida, assim como a instalação de sanitários e bebedouros.

O Supremo Tribunal Federal – STF, neste aspecto, já se manifestou no sentido de que a competência para a fixação do horário de funcionamento das agências bancárias é da União. Aliás, esse entendimento há muito estava consolidado no Superior Tribunal de Justiça – STJ, por meio da Súmula nº 19[61]. Porém, não se pode confundir o horário de funcionamento do estabelecimento bancário com o tempo de espera em fila, pois, neste caso, o STF disse ser matéria de competência municipal, pois não envolve atividades fim das instituições bancárias, mas de nítido interesse local e de proteção ao consumidor. Já no que tange às questões de segurança e de comodidades – instalação de sanitários e bebedouros – o STF assentou ser também de competência dos Municípios legislar a respeito.

Quanto ao horário de funcionamento das agências bancárias, frisa-se o que já se estudou anteriormente acerca da preponderância do interesse, pois um dos principais fundamentos para excluir a competência municipal, neste ponto, é o interesse maior da União em regulá-la. Isso porque as atividades bancárias não se cingem ao atendimento dos clientes, mas também às operações entre as próprias instituições do ramo, o que revela a predominância do interesse geral nestes casos.

Destarte, a averiguação do “interesse local” muitas vezes transcende o plano teórico, e só se torna possível mediante a investigação de todos elementos que envolvem o caso concreto.

De outro lado, no que diz respeito à exigência de instalação de sanitários e bebedouros nas agências bancárias, entendeu, o Supremo Tribunal Federal – STF, que os Municípios possuem competência para tanto, uma vez que o assunto não interfere na essência dos serviços financeiros, que é competência exclusiva da União. Aqui, diferentemente, não se vislumbra qualquer interesse maior da União ou dos Estados, pois, como se extrai da ementa supra, a exigência de instalação de bebedouros e banheiros em agências bancárias não interfere na essência dos serviços financeiros, como nos casos das normas de segurança. Deste modo, não há invasão de competência da União.

Sobre os referidos temas, trazem-se os seguintes julgados[62]:

Competência do município para legislar em matéria de segurança em estabelecimentos financeiros. Terminais de autoatendimento.” (ARE 784.981-AgR, rel. min. Rosa Weber, julgamento em 17-3-2015, Primeira Turma, DJE de 7-4-2015.) 

"Atendimento ao público e tempo máximo de espera na fila. Matéria que não se confunde com a atinente às atividades fim das instituições bancárias. Matéria de interesse local e de proteção ao consumidor. Competência legislativa do Município." (RE 432.789, rel. min. Eros Grau, julgamento em 14-6-2005, Primeira Turma DJ de 7-10-2005.) No mesmo sentidoRE 285.492-AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 26-6-2012, Segunda Turma, DJE de 28-8-2012; RE 610.221-RG, rel. minEllen Gracie, julgamento em 29-4-2010, Plenário, DJE de 20-8-2010, com repercussão geral. 

“ESTABELECIMENTOS BANCÁRIOS - COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO PARA, MEDIANTE LEI, OBRIGAR AS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS A INSTALAR, EM SUAS AGÊNCIAS, SANITÁRIOS PÚBLICOS E BEBEDOUROS - INOCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA FEDERAL - RECURSO IMPROVIDO. - O Município dispõe de competência, para, com apoio no poder autônomo que lhe confere a Constituição da República, exigir, mediante lei formal, a instalação, em estabelecimentos bancários, de sanitários ou a colocação de bebedouros, sem que o exercício dessa atribuição institucional, fundada em título constitucional específico (CF, art. 30, I), importe em conflito com as prerrogativas fiscalizadoras do Banco Central do Brasil. Precedentes.” (AI-AgR 614510/SC - Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO - Julgamento:  13/03/2007 - Órgão Julgador:  Segunda Turma).

Há leis, ainda, que afetam estabelecimentos comerciais, geralmente porque podem eventualmente violar o princípio da livre concorrência. O STF já se manifestou em diversas oportunidades sobre o assunto, editou súmulas e, por fim, converteu algumas delas em súmulas vinculantes. O entendimento da Corte é de que “os Municípios têm competência para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas” (Súmula nº 419) e de que “é competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial” (Súmula nº 645, convertida na Súmula Vinculante nº 38). Não obstante, também entende que “ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área” (Súmula nº 646, convertida na Súmula Vinculante nº 49).

Conforme visto, o Município não possui competência para legislar e impedir a instalação de estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área. No entanto, insta destacar aqui o entendimento no tocante à instalação de postos de combustíveis, em que o STF decidiu que o Município detém competência para estabelecer a distância mínima entre um e outro.

Sobre o tema:[63]

“(...) o acórdão recorrido está em harmonia com a pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmada no sentido de que o Município tem competência para legislar sobre a distância mínima entre postos de revenda de combustíveis.” (RE 566.836-ED, voto da rel. min. Cármen Lúcia, julgamento em 30-6-2009, Primeira Turma, DJE de 14-8-2009.) Vide: RE 235.736, rel. min. Ilmar Galvão, julgamento em 21-3-2000, Primeira Turma, DJ de 26-5-2000. 

Ainda, outros temas envolvendo questões ambientais, urbanísticas e de serviços prestados por cartórios já foram apreciados pelo Supremo Tribunal Federal – STF. Pode-se citar, por exemplo, a competência dos Municípios para legislar sobre questões que respeitem a edificações ou construções realizadas no seu território, assim como sobre assuntos relacionados à exigência de equipamentos de segurança, em imóveis destinados a atendimento ao público (AI 491.420-AgR). Também são competentes os Municípios para legislar acerca da instalação de torres de telefonia celular, pois lhe compete, ademais, disciplinar o uso e a ocupação do solo urbano (RE 632.006-AgR). Em semelhança ao caso dos estabelecimentos bancários, em se tratando da prestação de serviços por cartórios, os Municípios também detém competência para fixação de tempo razoável de espera dos usuários dos serviços.

Nesse sentido:[64] 

"Os Municípios são competentes para legislar sobre questões que respeitem a edificações ou construções realizadas no seu território, assim como sobre assuntos relacionados à exigência de equipamentos de segurança, em imóveis destinados a atendimento ao público." (AI 491.420-AgR, rel. min. Cezar Peluso, julgamento em 21-2-2006, Primeira Turma, DJ de 24-3-2006.) No mesmo sentidoRE 795.804-AgR, rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 29-4-2014, Segunda Turma, DJE de 16-5-2014. 

“Interpretação da Lei municipal paulista 14.223/2006. Competência municipal para legislar sobre assuntos de interesse local. (...) O acórdão recorrido assentou que a Lei municipal 14.223/2006 – denominada Lei Cidade Limpa – trata de assuntos de interesse local, entre os quais, a ordenação dos elementos que compõem a paisagem urbana, com vistas a evitar a poluição visual e bem cuidar do meio ambiente e do patrimônio da cidade.” (AI 799.690-AgR, rel. min. Rosa Weber, julgamento em 10-12-2013, Primeira Turma, DJE de 3-2-2014.) 

"Distrito Federal: competência legislativa para fixação de tempo razoável de espera dos usuários dos serviços de cartórios. A imposição legal de um limite ao tempo de espera em fila dos usuários dos serviços prestados pelos cartórios não constitui matéria relativa à disciplina dos registros públicos, mas assunto de interesse local, cuja competência legislativa a Constituição atribui aos Municípios (...)." (RE 397.094, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 29-8-2006, Primeira Turma, DJ de 27-10-2006.)

Por fim, o Supremo Tribunal Federal – STF também definiu que a matéria relativa a trânsito é de competência da União. Em 2011, o STF, em julgamento com repercussão geral, afastou a competência do Município em caso que envolvia sanção mais gravosa, já que nesse caso não havia interesse local predominante:[65] 

É incompatível com a Constituição lei municipal que impõe sanção mais gravosa que a prevista no Código de Trânsito Brasileiro, por extrapolar a competência legislativa do Município.” (ARE 639.496-RG, rel. min. Presidente Cezar Peluso, julgamento em 16-6-2011, Plenário, DJE de 31-8-2011, com repercussão geral.) 

Porém, não se pode confundir – destacando o já exposto no item anterior – a competência da União para legislar sobre trânsito com a dos Municípios para legislar acerca da organização da cidade, ainda que envolva questões afetas ao trânsito:[66]

Competência do Município para proibir o estacionamento de veículos sobre calçadas, meios -fios, passeios, canteiros e áreas ajardinadas, impondo multas aos infratores. Lei 10.328/ 1987 do Município de São Paulo/SP. Exercício de competência própria – CF/1967, art. 15, II; CF/1988, art. 30, I – que reflete exercício do poder de polícia do Município.” (RE 191.363AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 3-11-1998, Segunda Turma, DJ de 11-12-1998.)

Poder-se-ia abordar aqui diversos temas. Salienta-se, todavia, que o trabalho não tem por objetivo esgotar a análise jurisprudencial, que foi abordada a fim de realçar o estudo proposto.

Ainda assim, percebe-se que embora alguns temas venham se assentando de forma mais pacífica, ainda não há um amadurecimento completo, a exemplo de boa parte da doutrina, quanto à competência dos Municípios para legislar sobre os assuntos de interesse local. O tema vem caminhando a passos lentos.

O que se encontra na jurisprudência, salvo raras exceções, são “permissões” para que este ente federado legisle sobre matérias de menor relevância, e não aquelas que realmente influenciem de maneira expressiva na vida dos munícipes.

Conclusão

A importância de se debater não só a competência legislativa municipal no que concerne aos assuntos de “interesse local”, de que trata o art. 30, inciso I, da Magna Carta, mas também o próprio Município e a sua autonomia no Estado federal brasileiro é inegável.

Pinto FERREIRA escreveu, há mais de quarenta anos, que “a verdadeira unidade original e primária é o município. Foi dali que se partiu sempre na história de tôdas as liberdades e ela ficará sendo a base de um gôverno livre. O departamento (ou província), o Estado são os seus múltiplos”.[67]

Todavia, é cediço, também, que a complexidade do tema e a natureza deste estudo impedem que se extraia mais do que algumas considerações, porque apesar de vários anos de estudos acerca do tema, longe estão de um consenso a doutrina e a jurisprudência.

Este trabalho preocupou-se essencialmente com a autonomia municipal e a competência do Município para legislar sobre os assuntos de “interesse local”. Neste prisma, a história do Município e da sua autonomia permitiu que se verificasse as dificuldades enfrentadas pelo ente federativo desde o Brasil-colônia até os dias atuais, como, por exemplo, a precariedade dos recursos financeiros a ele destinados e da autonomia.

Com a visualização do conteúdo da autonomia municipal, pôde-se verificar que a competência legislativa a integra, demonstrando, destarte, a importância de se ter a devida compreensão do que constitui o chamado “interesse local”.

No que diz respeito à referida expressão, tratada nas constituições anteriores como “peculiar interesse”, observou-se que, para a maioria dos autores, a essência é a mesma, o que se leva a concluir que os problemas também. A dificuldade de se definir a competência derivada de um conceito indeterminado ficou evidente, assim como as regras objetivas que tentam delimitá-la mostram-se inadequadas e ineficazes.

Com a abordagem de alguns julgados do STF – Supremo Tribunal Federal, foi possível perceber que a doutrina e a jurisprudência evoluíram, mas caminham a passos lentos, sendo importante um maior amadurecimento acerca das necessidades dos Municípios, para que se atenda ao espírito da Constituição.

Por fim, é de se anotar que, apesar dessas considerações, há muito que ser estudado e debatido sobre o assunto, que, amadurecido, poderá contribuir de maneira significativa para uma melhor efetividade das normas materiais constitucionais e para a qualidade de vida dos munícipes.


Notas e Referências:

[1] REIS, Élcio. Organização municipal variável. Revista de Direito Público, nº 79, p. 217-223. São Paulo: RT, 1986, p. 217.

[2] RODRIGUES, Itiberê de Oliveira. A competência e a autonomia municipal. Trabalho não publicado. p. 2.

[3] Itiberê de Oliveira RODRIGUES classificou os municípios no Brasil e em Portugal como “tentáculos do poder central”.

[4] REIS, Élcio. Op. Cit., p. 217.

[5] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 34.

[6] “Art. 167. Em todas as cidades e vilas ora existentes e nas mais que o futuro se criarem, haverá Câmaras, às quais compete o governo econômico e municipal das mesmas cidades”. BRAZIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 23 fev. 2016.

[7] REIS, Élcio. Op. Cit., p. 217.

[8] MEIRELLES descreve que essa lei surgiu “disciplinando o processo da eleição dos vereadores e juízes de paz e catalogando todas as atribuições da novel corporação, mas, com surpresa para os que tinham lobrigado a autonomia municipal nos dispositivos constitucionais, trouxe ela para as Municipalidades a mais estrita subordinação administrativa e política aos presidentes das Províncias. Assim, as franquias locais, que repontavam na Carta Imperial, feneciam na lei regulamentar”. Ver MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 35.

[9] “Art. 169. O exercício de suas funções municipais, formação das suas posturas policiais, aplicação das suas rendas e todas as suas particularidades e úteis atribuições serão decretadas por uma lei regulamentar.” Op. Cit.

[10] Dalmo de Abreu DALLARI ensina que o art. 169 aparece como o primeiro fator de restrição da autonomia municipal.. Neste sentido, ver DALLARI, Dalmo de Abreu. Auto-organização do Município. Revista de Direito Público, nº 37-38, p. 297-305. São Paulo: RT, 1976, p. 298.

[11] Op. Cit., p. 4.

[12] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. vol. 1 / 10ª ed. São Paulo: Globo; Publifolha, 2000, p. 345.

[13] FAORO, Raymundo. Op. Cit., p. 345-347.

[14] MELO FILHO, Urbano Vitalino de. Direito Municipal em Movimento. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 27.

[15] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 35.

[16] “Art. 68. Os Estados organizar-se-ão de modo que fique assegurada a autonomia dos municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”. BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 14 nov. 2004.

[17] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 37.

[18] FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 302.

[19] Op. Cit., p. 7.

[20] Op. Cit., p. 37.

[21] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 38.

[22] FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 302.

[23] RODRIGUES, Itiberê de Oliveira. Op. Cit., p. 9. Neste sentido, ver, também, MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 38.

[24] Op. Cit., p. 39.

[25] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 39.

[26] Op. Cit., p. 9.

[27] HORTA, Raul Machado. Posição do Município no Direito Constitucional Federal Brasileiro. Revista de Direito Público, nº 63, p. 13-27. São Paulo: RT, 1982, p. 16.

[28] RODRIGUES, Itiberê de Oliveira. Op. Cit., p. 10.

[29] RODRIGUES, Itiberê de Oliveira. Op. Cit., p. 10.

[30] Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 42; e RODRIGUES, Itiberê de Oliveira. Op. Cit., p. 11.

[31] Op. Cit., p. 11.

[32] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 347.

[33] “Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:” Op. Cit., p. 34.

[34] “Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:” Op. Cit., p. 93.

[35] DALLARI, Adilson de Abreu. Organização Municipal. Revista de Direito Público, nº 16, p. 298-301. São Paulo: RT, 1971, p. 298.

[36] Op. Cit., p. 298.

[37] MORAES. Alexandre de. Direito Constitucional. 9ª ed. atual. com a EC n.º 31/00. São Paulo: Atlas, 2001, p. 263.

[38] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 621.

[39] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 88-108.

[40] Em que pese posições contrárias de reconhecidos autores, como José Afonso da SILVA e Roque Antônio CARRAZA, boa parte da doutrina afirma ser inegável que, ao menos com a Constituição Federal de 1988, o Município foi elevado à categoria de ente federado. Neste sentido, ver MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 45; FERREIRA, Pinto. Op. Cit., p. 306; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 310-311; ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Op. Cit., p. 112;  SANTANA, Jair Eduardo. Op. Cit., p. 77.

[41] Op. Cit., p. 145.

[42] VELLOSO, Carlos Mário. Estado Federal e Estados Federados na Constituição Brasileira de 1988: Do Equilíbrio Federativo. Revista de Direito Administrativo, nº 187, p. 1-36. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 18.

[43] ACKEL FILHO, Diomar. Município e Prática Municipal: à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 46.

[44] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 88.

[45] É Flávio Roberto COLLAÇO quem alerta sobre as incumbências executivas derivadas da autonomia legislativa. Ver: COLLAÇO, Flávio Roberto. O Município na Federação Brasileira. Florianópolis: Editora da UFSC, 1982, p. 80.

[46] Op. Cit., p. 89.

[47] Op. Cit., p. 23.

[48] Op. Cit., p. 89.

[49] “Art. 30. Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local; […]”. Op. Cit., 36.

[50] Op. Cit., p. 76.

[51] CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Municipal. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 1975, p. 71.

[52] DÓRIA, Sampaio apud MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit., p. 104.

[53] ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 115.

[54] Op. Cit., p. 104.

[55] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves apud ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Op. Cit., p. 114.

[56] Op. Cit., p. 311.

[57] SUNDFELD, Carlos Ari. Sistema Constitucional das Competências. Revista Trimestral Direito Público, nº 1, p. 272-281. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 272-273.

[58] Entendimento, este, aceito por Itiberê de Oliveira RODRIGUES. Op. Cit., p. 21.

[59] DALLARI, Adilson de Abreu. Op. Cit.,. 299.

[60] Citação extraída do acórdão nº 2002.010323-9, de Araranguá (ACMS). Relator: Des. Nilton Macedo Machado. Decisão: 26 de agosto de 2002. In: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA - TJSC. Jurisprudência Catarinense. Florianópolis: TJSC, vol. 5, 2003. CD-ROM.

[61] Súmula nº 19. A fixação do horário bancário, para atendimento ao público, é da Competência da União.

[62] Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. Supremo Tribunal Federal. 4ª ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011, p. 775-778.

[63] Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. Supremo Tribunal Federal. 4ª ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011, p. 775-778.

[64] Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. Supremo Tribunal Federal. 4ª ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011, p. 775-778.

[65] Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). Op. Cit., p. 775.

[66] Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). Op. Cit., p. 777.

[67] FERREIRA, Pinto. A autonomia política dos Municípios. Revista de Direito Público, n.º 7, 157-167.São Paulo: RT, 1969, p. 158.

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Daniel Thiago Oterbach. Daniel Thiago Oterbach possui graduação em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (2004) e pós-graduação em Direito Civil pela mesma instituição (2007). Atualmente é advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB/SC 20.801), assessor jurídico e colaborador de entidade(s) não governamental(is). Tem experiência nas áreas de Direito Civil, Administrativo, Constitucional, do Trabalho, Previdenciário, dentre outras.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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