A ATIPICIDADE DO CAMBISMO EM EVENTOS NÃO ESPORTIVOS

29/06/2023

A origem do termo "cambismo" não é clara, mas é provavelmente uma referência à prática ilegal de câmbio monetário. Assim como no câmbio ilegal, o cambismo envolve a compra e venda de algo por um valor diferente do estabelecido oficialmente, significando um mercado paralelo, onde se negociam mercadorias à margem da lei, irregularmente, no mais das vezes por valores muito acima daqueles estabelecidos.

No caso do cambismo de ingressos em eventos, os revendedores obtêm os ingressos a preços regulares e os revendem a um valor muito mais alto, aproveitando-se da escassez e da alta demanda.

Essa prática é frequentemente associada a eventos esportivos, nos quais os torcedores estão dispostos a pagar valores elevados para assistir a jogos importantes ou finais de campeonatos. Os revendedores de ingressos geralmente lucram consideravelmente, explorando a paixão dos torcedores e a falta de opções legítimas de compra.

Vale ressaltar que a criminalização do cambismo varia de acordo com a legislação de cada país ou estado. Muitas legislações proíbem explicitamente a revenda de ingressos acima do valor original ou em mercados paralelos não autorizados. A intenção é proteger os consumidores de práticas desleais e garantir que os ingressos sejam acessíveis a um preço justo.

As penalidades para o cambismo também podem variar, mas geralmente incluem multas, apreensão dos ingressos, proibição de entrada nos eventos e até mesmo prisão, dependendo da gravidade da infração e da legislação local.

Até a entrada em vigor do antigo Estatuto do Torcedor, não havia no Brasil norma penal específica punindo a prática do cambismo, sendo utilizada, em vários precedentes jurisprudenciais, a antiga tipificação constante do art. 2º, inciso IX, da Lei nº 1.521/51 (Lei de Economia Popular), do seguinte teor: “IX - obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ("bola de neve", "cadeias", "pichardismo" e quaisquer outros equivalentes)”.

A tipificação do cambismo como venda de ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete somente ocorreu no Estatuto do Torcedor, sendo mantida na nova Lei Geral do Esporte, se referindo tão somente a “ingressos de evento esportivo”, deixando de fora todos os demais tipos de ingressos, como os de shows em geral, eventos artísticos, eventos carnavalescos, apresentações de artistas e músicos nacionais e internacionais, festas populares, dentre outros.

A nova Lei Geral do Esporte – Lei n. 14.597/23 - foi recentemente sancionada pelo Presidente da República, regulamentando a prática do esporte no País e consolidando a atividade em um grande arcabouço jurídico.

A nova lei reúne dispositivos de outras normas que tratam do esporte e revoga várias delas, como o Estatuto do Torcedor (Lei n. 10.671/03) e a Lei do Bolsa-Atleta (Lei n. 10.891/04), criando novos marcos para o setor.

O crime de cambismo, que já vinha previsto no revogado Estatuto do Torcedor, no art. 41-F, foi mantido na Lei Geral do Esporte, no art. 166, com descrição típica um tanto semelhante à anterior e com a mesma pena.

Na nova descrição do crime, ao lado da conduta típica “vender”, que já existia, foi acrescentada a conduta de “portar para venda”, se referindo ao objeto material “ingressos de evento esportivo”.

O novo tipo penal assim estabelece:

“Art. 166. Vender ou portar para venda ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.”

Mas deve ser ressaltado que a atual tipificação do cambismo se refere apenas à comercialização de “ingressos de evento esportivo”.

Nesse aspecto, é muito comum encontrar cambistas que comercializam ingressos de outros tipos de eventos, tais como eventos culturais ou de entretenimento, fora dos guichês, bilheterias ou pontos de venda. Esses cambistas, tal como ocorre em eventos esportivos, adquirem ingressos pelo preço normal de venda em guichês, bilheterias ou congêneres e, depois, geralmente minutos antes dos espetáculos, os revendem a quem queira pagar, cobrando valor acima daquele gasto com a aquisição originária.

Essa conduta seria criminosa? Seria possível a responsabilização criminal do cambismo que não envolvesse “ingressos de evento esportivo”?

A premissa da qual se deve partir é a de que as simples condutas de “vender ou portar para venda” ingressos de “evento esportivo” por preço superior ao estampado no bilhete configura o crime do art. 166 da Lei Geral do Esporte (Lei n. 14.597/23), enquanto a venda ou o porte para venda de ingresso para qualquer outro tipo de evento caracterizaria, em tese, o crime previsto no art. 2º, IX, da Lei de Economia Popular (Lei n. 1.521/51).

Ocorre que, para a caracterização do crime previsto na Lei de Economia Popular, é necessário que o cambista obtenha ou tente obter “ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos”.

Alguns questionamentos, então, devem ser feitos: os ganhos obtidos pelo cambista são ilícitos? O simples fato de comprar algo por um valor menor e vendê-lo por um valor maior caracteriza “ganho ilícito” mediante “especulação ou processo fraudulento”?

Cremos que não.

Os cambistas visam o lucro, obviamente, prestando um serviço de conveniência ou comodidade àqueles que não se dispõe a enfrentar filas ou permanecer muito tempo à espera da compra direta do bilhete de ingresso aos shows ou eventos culturais ou de entretenimento.

Inclusive, são muito difundidas, hoje em dia, na maioria dos meios de comunicação e principalmente na “internet”, em sites e redes sociais, empresas e, até mesmo, aplicativos, que vendem ingressos de shows e eventos diversos, cobrando as denominadas “taxas de conveniência”, que nada mais são que uma espécie de cambismo disfarçado de atividade empresarial, fazendo com que os bilhetes custem valores muito acima daqueles comercializados diretamente nos guichês ou bilheterias.

Qual a diferença entre os cambistas e essas empresas que comercializam ingressos cobrando as denominadas “taxas de conveniência”, por valor final bem acima daquele estampado no bilhete?

A resposta é: nenhuma.

Não estamos aqui a falar dos cambistas que empregam fraudes, que enganam as pessoas, que falsificam bilhetes, que utilizam documentos falsos para adquirir ingressos e que empregam toda sorte de artifícios e meios fraudulentos. Esses são criminosos que devem ser punidos com o rigor da lei penal.

Atentando apenas ao disposto no art. 2º, inciso IX, da Lei nº 1.521/51, percebe-se que, nessa prática do cambismo em eventos não esportivos, considerando apenas a venda de ingressos por valor superior ao estampado no bilhete, não há “ganhos ilícitos” e nem “processos fraudulentos”. Compra do cambista quem quer; quem, por conveniência, se dispõe a pagar mais pela comodidade de ter acesso aos ingressos ou bilhetes imediatamente. Há, obviamente, uma “especulação”, mas que, a nosso ver, não pode ser considerada aprioristicamente ilícita, lesiva ou fraudulenta.

Portanto, a nosso ver, é totalmente inadequada e equivocada a tipificação do cambismo em eventos não esportivos no art. 2º, inciso IX, da Lei nº 1.521/51.

Ainda que se reprove moralmente esse tipo de cambismo, o que seria discutível, cumpre às autoridades e aos organizadores de eventos esportivos adotar estratégias para combater essa prática, incluindo, dentre outras providências, a implementação de sistemas de venda de ingressos com tecnologia avançada, a limitação do número de ingressos vendidos por pessoa e a conscientização do público sobre os riscos e desvantagens de comprar ingressos de cambistas.

Portanto, até que haja uma lei tipificando o cambismo em eventos não esportivos, nos mesmos moldes do que ocorre na Lei Geral do Esporte com os eventos esportivos, a venda de qualquer outro tipo de ingresso ou bilhete que não seja de evento esportivo por preço superior ao comercializado nos guichês ou bilheterias, configura-se fato atípico, desde que, como já ressaltamos, não haja fraude ou ilicitude na aquisição e posterior comercialização, arcando os interessados com os custos de sua conveniência e com o lucro lícito obtido pelo cambista.

 

Imagem Ilustrativa do Post: infinite // Foto de:  // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/enki22/8015069551

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura