Com a revogação expressa da Lei n. 9.437/97 pelo art. 36 da Lei n. 10.826/2003, operou-se a descriminalização do uso de arma de brinquedo para o fim de praticar crimes.
A Lei n. 10.826/2003, denominada Estatuto do Desarmamento, embora, no aspecto geral, tenha apresentado inegáveis pontos positivos, não cuidou dessa delicada questão envolvendo a utilização, cada vez mais frequente, de simulacros de arma de fogo para a prática de crimes. Nesse sentido, o art. 26 da citada lei proíbe expressamente a fabricação, a venda, a comercialização e a importação de brinquedos, réplicas e simulacros de armas de fogo, que com estas se possam confundir.
É certo que os criminosos não adquirem armas de fogo em lojas ou casas de armas, tendo fácil acesso a poderoso armamento por meio do desenfreado contrabando que assola o País.
Ante a fragilidade da fiscalização em nossas zonas de fronteira, onde as autoridades estão mais preocupadas com a apreensão de cigarros, CDs e DVDs “piratas”, o comércio clandestino de armas de fogo e munições passa quase despercebido, incrementando um nocivo mercado clandestino, que abastece abundantemente as facções criminosas e o crime organizado em geral.
Nesse aspecto, também ingressam no País as chamadas armas de brinquedo, simulacros de armas de fogo capazes de atemorizar alguém.
Sob a égide da antiga Lei n. 9.437/97, o emprego ou utilização de tais artefatos, com o fim de praticar crimes, era conduta equiparada ao porte ilegal de arma de fogo, punida com detenção de 1 a 2 anos, e multa.
Com o lamentável cancelamento da Súmula 174 do STJ (“No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento de pena”), em 24 de outubro de 2001, no julgamento do REsp 213.054-SP, maior vulto ganhou a discussão acerca da absorção ou não da utilização de arma de brinquedo, simulacro de arma de fogo capaz de intimidar alguém, pelo crime mais grave com ela praticado.
Surgiram entendimentos sustentando a ocorrência de um só delito (com absorção), e posições contrárias batendo-se pela existência de concurso (material ou formal) de infrações, em que o crime mais grave (na maioria das vezes roubo ou extorsão) seria combinado, àquela época, com o disposto no art. 10, § 1º, II, da Lei n. 9.437/97.
Entretanto, com a revogação expressa da Lei nº 9.437/97 pelo Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/2003), operou-se verdadeira “abolitio criminis” em relação ao delito de uso de arma de brinquedo para o fim de cometer crimes, perdendo o legislador pátrio uma excelente oportunidade de criminalizar adequada e severamente essa conduta, geradora de intenso desassossego social.
O cancelamento da Súmula 174 do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, apenas indicou um posicionamento jurisprudencial, não vinculando o julgador a adotá-lo como razão de decidir.
Nesse sentido, a colenda 4.ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em venerando acórdão dando provimento a recurso de nossa lavra, em caso de roubo com “arma de brinquedo”, entendeu que “o que importa ao reconhecimento da qualificadora é o temor que impõe o uso da coisa, seja ela real ou de brinquedo”, acrescentando que o referido artefato teve “o poder de intimidar a vítima, anulando total e completamente sua capacidade reativa, dando mostras de que sem ela muito provavelmente inexistiria assalto”.
E conclui o venerando acórdão: “De forma que valendo à intimidação, como evidentemente valeu, impondo temor e subordinação, exerceu o artefato, seja real, seja de brinquedo, então, a mesma intimidação. Absolutamente despiciendo, então, questionar-se da potencialidade ofensiva da arma, porque o que se mede, em casos tais o presente, é a força psicológica que o porte do artefato representa contra as vítimas, aqui inegavelmente acontecido” (TJSP — Ap. 913.185.3/6 — Rel. Des. Luis Soares de Mello — 11-7-2006).
Da mesma forma, há dissenso jurisprudencial sobre a configuração da referida causa de aumento no emprego de arma desmuniciada, quebrada ou ineficaz.
“A arma desmuniciada é suficiente para configurar a intimidação própria da ameaça configuradora do tipo penal previsto no “caput” do art. 157 do Código Penal, contudo, não é mecanismo capaz de incidir a majorante do art. 157, § 2.º, inciso I, do Código Penal, que se refere ao emprego de arma da qual decorra situação de perigo real, sob pena de ofender o princípio da proporcionalidade” (STJ — REsp 657665/RS — Min. José Arnaldo da Fonseca — 5.ª T. — DJ, 7-3-2005, p. 335).
“É necessária a existência de potencial ofensivo da arma de fogo ao bem jurídico tutelado para a incidência da causa de aumento de pena prevista no art. 157, § 2.º, I, do CP, o que não se aplica à arma desmuniciada” (STJ — HC 143919/SP — Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima — 5.ª T. — DJe 5-4-2010).
“O emprego de arma ineficaz, com defeito fundamental, e não meramente acidental, carece de força para fazer incidir a majorante do inciso I do art. 157, § 2.º, do Código Penal. A total inocorrência de perigo real para a integridade física da vítima, em virtude do uso da arma, como tal, é incontornável. O uso de arma, intimidando o ofendido, configura o roubo, mas não possibilita a incidência de circunstância legal específica de aumento de pena (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ). Ordem concedida” (STJ — HC 131563SP — Rel. Min. Felix Fischer — 5.ª T. — DJe 31-8-2009).
Vale mencionar, também, que a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, pacificando a questão, decidiu não ser necessária a apreensão da arma e sua consequente perícia para a caracterização da causa de aumento do inciso I, desde que sua utilização no roubo possa ser comprovada por qualquer meio, como prova testemunhal, declarações da vítima etc. Nesse caso, não sendo apreendida a arma, incidirá a majorante, sendo certo que competirá ao réu o ônus de provar eventual alegação de que a arma é desprovida de potencial lesivo.
A saber: “Criminal. Embargos de Divergência no Recurso Especial. Roubo. Emprego de arma. Desnecessidade de apreensão e realização de perícia. Utilização de outros meios de prova. Incidência da majorante. Embargos conhecidos e rejeitados. I — Para a caracterização da majorante prevista no art. 157, § 2.º, inciso I, do Código Penal, prescinde-se da apreensão e realização de perícia em arma utilizada na prática do crime de roubo, se por outros meios de prova restar evidenciado o seu emprego. Precedentes do STF. II — Os depoimentos do condutor, da vítima, das testemunhas, bem como qualquer meio de captação de imagem, por exemplo, são suficientes para comprovar a utilização de arma na prática delituosa de roubo, sendo desnecessária a apreensão e a realização de perícia para a prova do seu potencial de lesividade e incidência da majorante. III — A exigência de apreensão e perícia da arma usada na prática do roubo para qualificá-lo constitui exigência que não deflui da lei resultando então em exigência ilegal posto ser a arma por si só — desde que demonstrado por qualquer modo a utilização dela — instrumento capaz de qualificar o crime de roubo. IV — Cabe ao imputado demonstrar que a arma é desprovida de potencial lesivo, como na hipótese de utilização de arma de brinquedo, arma defeituosa ou arma incapaz de produzir lesão. V — Embargos conhecidos e rejeitados, por maioria” (STJ — Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 961863/RS — 3.ª S. — DJe 6-4-2011).
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