WHO DO YOU THINK YOU ARE?

29/11/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

O que se pretende neste texto é comparar duas realidades distintas: a brasileira e a americana. Em razão dos limites deste estudo, será feita a comparação especificamente com relação aos hábitos que brasileiros e americanos têm no trato de outras pessoas.

Desde logo, é importante registrar que a comparação a ser feita não pretende realizar um juízo de valor sobre os hábitos a serem comparados. Nada se concluirá no sentido de que os hábitos brasileiros são melhores ou mais justos que os hábitos americanos – ou vice-versa. O propósito não é esse.

Objetiva-se, em verdade, somente ressaltar as diferenças existentes. É certo que a comparação entre as duas realidades poderia ser feita destacando os pontos em comum ou as suas semelhanças. Mas não é essa a opção feita neste momento.

Muito ao contrário, levando em conta justamente as diferenças apresentadas entre as duas realidades é que se pretende evidenciar como os hábitos são desenvolvidos e passam a dominar o dia a dia de brasileiros e de americanos.

Em verdade, há uma expressão – sabe com quem está falando? – que diz muito sobre a realidade brasileira. A referida expressão é comumente utilizada por aqueles que pretendem um tratamento especial em razão da função que ocupam, seja pública, seja privada.

Quando os brasileiros utilizam a expressão mencionada, em verdade, eles deixam clara a hierarquia social que existe no Brasil, assim como evidenciam que, no caso concreto, eles merecem um tratamento diferenciado.

Tal característica é facilmente perceptível sob dois aspectos: com relação ao tratamento formal que existe em certas realidades e com relação ao tratamento informal que se adota na vida cotidiana.

No que se refere ao tratamento formal, tem-se um recente episódio que muito bem evidencia tal característica brasileira. No dia 7 de novembro de 2019, durante uma sessão do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Marco Aurélio interrompeu a sustentação oral que vinha sendo feita pela Advogada Daniela Borges, a qual tratou os Ministros da Suprema Corte usando o pronome de tratamento “você”, e não o pronome de tratamento “Vossa Excelência”.

É certo que o art. 16, parágrafo único, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, garante aos Ministros que o compõem o tratamento de “Excelência”. Seguindo a mesma linha, com pequena diferença redacional, o art. 29, § 1º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, garante o mesmo tratamento aos Ministros que o compõem.

O curioso do episódio é que, embora tenha sido respeitosa com os Ministros durante a sua sustentação, a mencionada Advogada acabou sendo admoestada pelo desrespeito a um dispositivo do Regimento Interno do STF que, a rigor, em nada influencia o julgamento do caso. O que verdadeiramente ocorreu foi a manifestação do Ministro Marco Aurélio que, mesmo não havendo qualquer efetivo desrespeito por parte da Advogada, entendeu ser imprescindível o uso do correto pronome de tratamento.

Aliás, outro episódio recente envolvendo o Ministro Marco Aurélio igualmente revela o formalismo existente na realidade brasileira. No dia 23 de outubro de 2019, Sua Excelência devolveu um ofício que lhe foi dirigido por um funcionário do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina registrando que “integrante de cerimonial não se dirige diretamente a ministro do Supremo”.

Não se pretende criticar tais posturas do Ministro Marco Aurélio neste momento, mas sim relevar o apego que Sua Excelência tem pelo formalismo que, na realidade brasileira, efetivamente existe.

Sob o ponto de vista prático, ou seja, levando em conta o que ordinariamente ocorre no dia a dia brasileiro, também é possível constatar a hierarquia que existe na sociedade do nosso país, o que se verifica nas coisas mais corriqueiras.

As preferências existentes nos assentos dos meios de transportes públicos – algumas delas sequer se relacionando com algum problema médico que porventura mereça um tratamento diferenciado – e os chamados locais VIPs em festas e eventos sociais, que se destinam a separar um lugar diferenciado para as pessoas “especiais”, são bons exemplos brasileiros.

Tudo isso – seja o formalismo, sejam as práticas do dia a dia –, ajuda a estabelecer uma sociedade cada vez mais hierarquizada, na qual gerações de pessoas crescem e vivem com a crença no sentido de que, realmente, alguns poucos devem merecer um tratamento privilegiado em detrimento do tratamento dispensado às outras pessoas.

De outro lado, não é isso que se vê na realidade americana.

Um bom exemplo disso foi lembrado pelo Professor Lenio Streck, na sustentação que fez perante o Supremo Tribunal Federal, por oportunidade dos julgamentos das ADCs 43, 44 e 54, as quais se destinaram a examinar a constitucionalidade do art. 283, caput, do CPP.

O caso teve grande repercussão porque se discutiu se o acórdão condenatório de segunda instância deve, ou não, impor a prisão aos condenados, sem a análise dos fundamentos do art. 312, caput, do CPP, enquanto se aguardam os julgamentos de eventuais recursos especial e extraordinário, a serem realizados, respectivamente, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Nesse ponto, não custa lembrar que, modificando o entendimento até então vigente, a Suprema Corte, por apertada maioria, decidiu que a prisão antes do trânsito em julgado só tem lugar quando presente algum dos fundamentos do art. 312, caput, do CPP.

Nesse contexto, no julgamento realizado no dia 7 de novembro de 2019, o Professor Lenio Streck, instando o Supremo Tribunal Federal a fazer a “coisa certa”, lembrou um episódio da série americana The good doctor, no qual o personagem principal não atendeu às pressões que vinha sofrendo para “furar a fila” de transplante para favorecer um político americano.

Em verdade, na realidade brasileira, é comum o uso da seguinte expressão: você sabe com quem está falando? Mas a indagação feita na realidade americana é outra: Who do you think you are? Muda-se, portanto, radicalmente o ponto de vista.

No dia a dia americano, isso também é perceptível quando as pessoas observam a ordem de chegada nos locais, não tentam ultrapassar as outras pessoas, não se acham mais importantes do que as outras pessoas, não exigem um tratamento diferenciado em razão da função que ocupam e não buscam dar “um jeitinho”, ao contrário do que muitas vezes ocorre no Brasil.

Então, no fundo, o que se pretende destacar, na comparação entre as realidades brasileira e americana, é justamente a razão de existir dessa diferença tão acentuada que está presente na relação desenvolvida entre as pessoas.

Não se trata de resposta simples. Mas o que se pode verificar, com alguma clareza, é justamente o fato de os brasileiros serem tratados como pessoas, enquanto os americanos são tratados como indivíduos.

Em outras palavras, o brasileiro acostumou-se a tratar e a ser tratado como pessoa, impondo-se a observância das suas características pessoais em quase tudo que envolve a sua realidade, ou seja, a sua origem, a função que exerce, a sua condição financeira.

Como a vida em sociedade é complexa e as pessoas, em certos momentos, estão em posição social hierarquicamente superior e, depois, em outras situações, elas estão em posição social hierarquicamente inferior, há uma certa acomodação no que se refere à mudança de tal realidade, já que as pessoas, em geral, acabam usufruindo, ao menos em certos aspectos, de tal hierarquia social.

De outro lado, sob um enfoque absolutamente distinto, quando se diz que o americano é tratado como indivíduo, e não como pessoa, se pretende enfatizar que as pessoas, na realidade americana, são tratadas de maneira mais igualitária, sem atenção às suas características pessoais, seus cargos e seus outros predicados.

Enfim, os brasileiros perguntam você sabe com quem está falando? para receberem um tratamento diferenciado. De outro lado, os americanos perguntam who do you think you are? para terem um tratamento igualitário.

 

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