“White Bear” ou o espetáculo da prisão - Por Leonardo Isaac Yarochewsky

09/12/2017

1- “White Bear”: o episódio[1] 

White Bear" é o segundo episódio da segunda temporada da série inglesa de ficção científica “Black Mirror”. No episódio escrito por Charlie Brooker, criador da série, uma mulher (Lenora Crichlow) acorda com amnésia - sem se lembrar de quem ela é - em um lugar onde quase todo mundo é controlado por um misterioso sinal de televisão.

A mulher se vê cercada por imagens de uma menina pequena (Imani Jackman) – que ela assume como sua filha -, bem como fotos de si mesma e de um homem (Nick Ofield).

Ao sair de casa a mulher se depara com várias pessoas gravando-a em seus telefones, mas, essas pessoas, por sua vez, ignoravam seus pedidos de ajuda.

Logo um homem mascarado chega e começa a atirar na desesperada mulher com uma espingarda. A mulher foge e encontra Jem (Tuppence Middleton) e Damien (Ian Bonar). Jem e a mulher escapam do homem mascarado que acaba mantando Damien. Jem explica que um sinal misterioso começou a aparecer nas televisões e na internet, transformando a maioria da população em espectadores passivos que não fazem nada além de gravar tudo ao seu redor. A mulher e Jem não foram afetadas, mas também são um alvo para os "caçadores", seres humanos também não afetados mas que agem sadisticamente. Jem planeja ir até um transmissor chamado "White Bear" para destruí-lo e parar o efeito do sinal na área.

Enquanto viajam, um homem chamado Baxter (Michael Smiley), que também não foi afetado, consegue capturá-los. No entanto, ele as conduz até uma floresta onde as mantém sob a mira de uma arma. Quando a mulher está prestes a ser torturada por ele, Jem mata Baxter. Eles continuam viajando para o transmissor, enquanto a mulher tem visões de eventos passados ​​e futuros. Quando chegam ao transmissor, dois caçadores as atacam. A mulher luta com um dos caçadores que está armado com uma espingarda e, imediatamente após conseguir posse da arma, atira em seu atacante, só que a munição era apenas confete.

As paredes se abrem e revelam uma audiência aplaudindo depois de observar toda a fuga; Jem, Damien, e os caçadores são revelados como sendo atores. A mulher está amarrada a uma cadeira, e Baxter aparece para explicar tudo: seu nome é Victoria Skillane, e a menina na foto era realmente uma menina de seis anos chamada Jemima Sykes, a quem Victoria e seu noivo, Iain Rannoch, sequestraram a poucos quilômetros de sua casa. Iain torturou e matou a menina e depois queimou seu corpo, enquanto Victoria gravou suas ações em seu telefone celular. O "White Bear", originalmente o ursinho da vítima, tornou-se um símbolo da investigação nacional do assassinato, enquanto o símbolo presente nas televisões era idêntico à tatuagem que identificou Iain, que se suicidou em sua cela antes do julgamento. Insistindo que estava "sob o feitiço de Iain", Victoria foi sentenciada a sofrer uma experiência em que sentiria os mesmos sentimentos de terror e desamparo que fez a vítima, repetidamente todos os dias. Victoria, que ainda não tem uma lembrança clara desses acontecimentos, é levada de volta para o complexo, passando por uma multidão que a ataca arremessando pedras e alimentos (sob encorajamento da equipe) e retorna para onde ela acordou. Victoria é colocada de frente para uma televisão e assisti as imagens de Jemima, enquanto Baxter coloca eletrodos em sua cabeça para limpar sua memória dos eventos que aconteceram no dia. Ao longo dos créditos finais, os eventos de um novo dia são vistos do ponto de vista do pessoal do "White Bear Justice Park" e os visitantes que desempenham o papel de filmar Victoria.[2] 

2- A prisão e o processo penal do espetáculo: 

Desgraçadamente, a prisão, na sociedade midiática e no processo penal do espetáculo, também se transformou em uma epécie de espetáculo onde os espectadores gozam diante do sofrimento alheio.                                             

Michel Foucault já se referia ao suplício como forma de ritual para um grandioso espetáculo. “Na forma lembrada explicitamente do açougue, a destruição infinitesimal do corpo equivale aqui a um espetáculo: cada pedaço é exposto no balcão”.2 Mais adiante Foucault observa que “há também alguma coisa de desafio e de justa na cerimônia do suplício. Se o carrasco triunfa, se consegue fazer saltar com um golpe a cabeça que lhe mandaram abater, ele a mostra ao povo, põe-se no chão e saúda em seguida o público que o ovaciona muito, batendo palmas”.3 

Na seara do processo penal voltado para o espetáculo, como bem já salientou o magistrado e professor Rubens Casara

não há espaço para garantir direitos fundamentais. O espetáculo não deseja chegar a nada, nem respeitar qualquer valor, que não seja ele mesmo. A dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado Democrático de Direito (marcado por limites ao exercício do poder), desaparece para ceder lugar à dimensão de entretenimento... No processo espetacular desaparece o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir da atividade das partes, substituído pelo discurso dirigido pelo juiz: um discurso construído para agradar às maiorias de ocasião, forjadas pelos meios de comunicação de massa em detrimento da função contramajoritária de concretizar os direitos fundamentais... O caso penal passa a ser tratado como uma mercadoria que deve ser atrativa para ser consumida. A consequência mais gritante desse fenômeno passa a ser a vulnerabilidade a que fica sujeito o vilão escolhido para o espetáculo. [3] 

3- “White Bear”: de Sérgio Cabral à Rogério 157 

3.1- Sérgio Cabral

No dia 24 de novembro último, a imprensa noticiou que durante uma inspeção representantes do Ministério Público encontraram uma “série de irregualridades na galeria C, que reúne presos da Operação Lava jato”. Entre os presos o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Na cela, segundo a matéra, exibida, também, na televisão foram encontrados na cela alimentos congelados e in-natura, tais como bolinho de bacalhau e iogurtes. “Há também filtros de água instalados, o que, segundo o MP, demonstra clara distinção de políticos e empresários da Lava Jato em relação aos demais presos”.[4] 

3.2- Rogério 157

Na manhã de quarta-feira (6) Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157 - tido pela polícia e pela mídia como o “chefe do tráfico de drogas na Rocinha” – foi preso . Contudo, o que mais chamou a atenção foram as “selfies” postadas nas redes sociais pelos policiais, inclusive pelo delegado Gabriel Ferrando, que o capturaram. Dois dos principais jornais do país estamparam na primeira página foto dos policiais, alguns rindo, com Rogério 157. A Corregedoria de Polícia Civil afirmou que a situação será avaliada. 

4- Conclusão: 

Segundo a Constituição da República “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (art. 5º, XLIX). Diz, ainda, a Constituição que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III). 

No que pese a Constituição, o respeito ao acusado e ao preso são completamente ignorados e atropelados pelos representantes do Estado e pela mídia. 

Por seu turno, a sociedade do espetáculo, torna-se, facilmente, massa de manobra nas poderosas mãos da mídia. Os tentáculos do poder acusatório da mídia são capazes de acachapar todo e qualquer princípio de direito. Neste diapasão a presunção de inocência esculpida na Constituição da República no título que trata dos direitos e garantias fundamentais é completamente abandonada passando a ser letra morta em nossa lei maior. Como bem disse Nilo Batistaa imprensa tem o formidável poder de apagar da Constituição o princípio de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo”. [5] 

A imprensa na maioria esmagadora dos casos de repercussão amplifica a voz dos agentes da repressão (polícia e MP) e abate a voz, quase sempre, solitária da defesa. A transformação das causas penais em verdadeiro espetáculo na busca desenfreada pela audiência e pelo público que, sadicamente, vibra com a desgraça alheia, causa prejuízos inomináveis e irreparáveis ao acusado e ao processo penal democrático. 

Qualquer semelhança dos casos de Sérgio Cabral, de Rogério 157 e de tantos outros com “White Bear Justice Park” não é mera coincidência. 

 

[1] Contém spoiler

[2] Disponível em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/White_Bear

[3] CASARA, R. R. Rubens. Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

[4] Disponível em:< http://www.jb.com.br/rio/noticias/2017/11/27/cabral-desafia-promotora-que-fez-inspecao-em-sua-cela/ 

[5] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

 

Imagem Ilustrativa do Post: flash! // Foto de: Steven Lilley // Sem alterações

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