Voto Divergente no Processo Disciplinar contra o juiz federal Sérgio Moro

25/09/2016

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na última quinta-feira decidiu que a "Operação Lava Jato" não precisa seguir as regras dos processos comuns, porque os processos "trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas" e que a lava jato escapa ao regramento genérico.

Desta forma, a Corte Especial do TRF 4, arquivou a representação contra o juiz Sérgio Moro, por 13 votos a 1, por ter divulgado a conversa entre os ex- Presidentes Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva.

O processo é de relatoria do desembargador federal Rômulo Pizzolatti, que não viu nenhum indício de infração disciplinar. Contudo, o  Desembargador Federal ROGERIO FAVRETO, foi voto divergente.

Segue o Voto  do eminente Desembargador a respeito do caso.   VOTO ­VISTA Peço vênia para divergir do eminente Relator.

De início, entendo não ser adequada a invocação da teoria do estado de exceção, sustentada por Eros Roberto Grau tanto em sede doutrinária quanto em alguns votos no Supremo Tribunal Federal. A propósito do tema, bem observam os professores Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto:

Em diversos votos proferidos no STF pelo Ministro Eros Grau, empregou­-se a teoria do estado de exceção para justificar a não aplicação de regras constitucionais a casos em que, pelo seu texto, deveriam incidir, mas nos quais a presença de circunstâncias excepcionais justificariam o respectivo afastamento. Algumas dessas decisões poderiam ser explicadas por meio do recurso à ideia de equidade, ao invés da teoria do estado de exceção. Não nos parece apropriado (...) atribuir ao STF o "poder soberano", no sentido de Carl Schmitt, de suspender a força de normas jurídicas para instaurar a exceção. Esta linha argumentativa, além de desnecessária, pode revelar­-se perigosa, se manejada por quem não tenha os mesmos compromissos democráticos do Ministro Eros Grau (SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 1ª edição. p. 545­546).

Vale dizer que o Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais, sobretudo naquilo em que consagram direitos e garantias fundamentais. Sua não observância em domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser temerária se feita por magistrado sem os mesmos compromissos democráticos do eminente Relator e dos demais membros desta Corte.

Pois bem. Compreendo que a análise da deflagração ou não de processo de índole disciplinar no caso passa por dois momentos. Num primeiro momento, cabe verificar se o ato que constitui o cerne da representação ­ o levantamento de sigilo de conversas telefônicas interceptadas ­ foi legal ou ilegal. Num segundo momento, se concluído que o ato foi ilegal, impõe­-se apreciar se a ilegalidade e as circunstâncias em que se deu são aptas à instauração de processo disciplinar.

Inicialmente, pois, cabe assinalar o entendimento ­ a esta altura, acredito, amplamente consolidado ­ de que o magistrado incorreu em transgressão à literalidade da lei ao determinar o levantamento do sigilo de conversas captadas em interceptações telefônicas. No que aqui interessa, a Lei 9.296/1996 dispõe:

Art. 8° A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-­se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.

Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada (grifei).

Como se vê, a lei não autoriza ­ ao contrário, veda expressamente ­ a divulgação do teor de diálogos telefônicos interceptados. Ante o regramento explícito, não cabe evocar o interesse público ou a prevenção de obstrução à justiça como fundamentos para publicizar conversas captadas. Na mesma esteira, também se descumpriu normativa do Conselho Nacional de Justiça, expressada na sua Resolução nº 59, que assim dispôs, em seu art. 17:

Art. 17. Não será permitido ao magistrado e ao servidor fornecer quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão de comunicação social, de elementos contidos em processos ou inquéritos sigilosos, sob pena de legislação nos termos da legislação pertinente.

Entre as razões da referida regulação pelo CNJ, está a "imprescindibilidade de preservar o sigilo das investigações realizadas e colhidas, bem como a eficácia da instrução processual", em apreço aos fundamentos da Lei 9.296/1996, em especial a obrigação de sigilo da diligência e o conteúdo das comunicações interceptadas, em consonância com o sistema de garantias processuais da Constituição Federal.

Diante de tal arcabouço legal e regulamentar, não vislumbro hipótese de relativização do sigilo, direito fundamental do cidadão inscrito na Carta Federal. Releva notar, além disso, que a drástica decisão de levantamento do sigilo foi prolatada sem oportunização de prévio contraditório, que, assim como o sigilo das comunicações telefônicas (art. 5º, XII), é direito com fundamento constitucional (art. 5º, LV).

O quadro torna-­se ainda mais grave diante da informação de que parte das conversas divulgadas foi captada ilegalmente, após a ordem de interrupção da interceptação. Isso implicou a publicização de diálogo ­ interceptado ilegalmente, reitere­-se ­ entre o ex­-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a então Presidente Dilma Rousseff, com consequências sérias no cenário político brasileiro.

Cabe acentuar, ainda, que o levantamento do sigilo contemplou conversas que não guardam nenhuma relação com a investigação criminal, expondo à execração pública não apenas o investigado, mas também terceiras pessoas.

De mais a mais, a decisão emanou de juízo incompetente, porquanto constatados diálogos com pessoas detentoras de foro por prerrogativa de função, o que deveria ter ensejado a imediata remessa do feito ao Supremo Tribunal Federal, conforme reiterada orientação daquela Corte.

O próprio Supremo Tribunal Federal, na Reclamação 23.457, reconheceu a ilegalidade do ato de levantamento do sigilo. Confira­-se trecho de decisão proferida pelo Ministro Teori Zavascki: São relevantes os fundamentos que afirmam a ilegitimidade dessa decisão.

Em primeiro lugar, porque emitida por juízo que, no momento da sua prolação, era reconhecidamente incompetente para a causa, ante a constatação, já confirmada, do envolvimento de autoridades com prerrogativa de foro, inclusive a própria Presidente da República.

Em segundo lugar, porque a divulgação pública das conversações telefônicas interceptadas, nas circunstâncias em que ocorreu, comprometeu o direito fundamental à garantia de sigilo, que tem assento constitucional. O art. 5º, XII, da Constituição somente permite a interceptação de conversações telefônicas em situações excepcionais, \'por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal\'.

Há, portanto, quanto a essa garantia, o que a jurisprudência do STF denomina reserva legal qualificada. A lei de regência (Lei 9.269/1996), além de vedar expressamente a divulgação de qualquer conversação interceptada (art. 8º), determina a inutilização das gravações que não interessem à investigação criminal (art. 9º). Não há como conceber, portanto, a divulgação pública das conversações do modo como se operou, especialmente daquelas que sequer têm relação com o objeto da investigação criminal.

Contra essa ordenação expressa, que ­ repita­-se, tem fundamento de validade constitucional ­ é descabida a invocação do interesse público da divulgação ou a condição de pessoas públicas dos interlocutores atingidos, como se essas autoridades, ou seus interlocutores, estivessem plenamente desprotegidas em sua intimidade e privacidade (Rcl 23457, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, julgado em 13/06/2016, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe­124 DIVULG 15/06/2016 PUBLIC 16/06/2016).

O Ministro Teori Zavascki fez menção, ainda, a precedente do Supremo Tribunal Federal, demonstrando que aquela Corte já tinha orientação sobre o tema. Confira-­se parte de decisão proferida pelo Ministro Sepúlveda Pertence, chancelada pelo plenário:

62. [A] garantia do sigilo das diversas modalidades técnicas de comunicação pessoal ­ objeto do art. 5°, XII ­ independe do conteúdo da mensagem transmitida e, por isso ­ diversamente do que têm afirmado autores de tomo, não tem o seu alcance limitado ao resguardo das esferas da intimidade ou da privacidade dos interlocutores. (...)

64. Desse modo ­ diversamente do que sucede nas hipóteses normais de confronto entre a liberdade de informação e os direitos da personalidade ­ no âmbito da proteção ao sigilo das comunicações, não há como emprestar peso relevante, na ponderação entre os direitos fundamentais colidentes, ao interesse público no conteúdo das mensagens veiculadas, nem à notoriedade ou ao protagonismo político ou social dos interlocutores (Pet 2702 MC, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 18/09/2002, DJ 19­09­2003 PP­ 00016EMENT VOL­02124­04 PP­00804).

Em suma, o ato de levantamento do sigilo de conversas telefônicas interceptadas encontra­-se inquinado pelas seguintes ilegalidades: a) houve transgressão aos arts. 8º e 9º da Lei 9.296/1996 e ao seu fundamento constitucional (art. 5º, XII); b) não foi observado o prévio contraditório, com infração ao art. 5º, LV, da Constituição Federal; c) parte das conversas divulgadas foi captada ilegalmente, após a ordem de interrupção da interceptação; d) a decisão emanou de juízo incompetente.

Desse modo, assentada a ilegalidade do ato, cabe avaliar se ela é apta à deflagração de processo de índole disciplinar.

Com efeito, decisões proferidas em desacordo com a lei ou a Constituição não constituem, por si só, infração disciplinar, sob pena de amesquinhar-se a independência dos juízes, garantia que se reveste de alto significado num Estado Democrático de Direito.

A propósito do tema, o Eminente Corregedor Desembargador Federal Celso Kipper, anotou, em decisão proferida neste expediente: Se um juiz decide de forma diferente do esperado ou por modo que não representa o pensamento de outros magistrados em casos assemelhados, isso não traduz uma conduta funcional ilícita.

Aliás, o contrário disso revela afronta direta à própria essência daquilo que sustenta o exercício jurisdicional, assentado na ideia de independência do juiz para decidir, isento de qualquer possibilidade de influências externas.

Em outro trecho, o Eminente Corregedor bem sintetizou a situação excepcional em que ato jurisdicional de magistrado autoriza a instauração de processo disciplinar: (...) este [o juiz] somente se mostra passível de ser acionado quando os limites da decisão são extrapolados, apresentando-­se como verdadeiro ato não-­jurisdicional tomado no ambiente jurisdicional.

Neste caso, não se trata puramente de uma decisão judicial, mas de algo que se disfarça de sentença ou despacho ou qualquer outro ato privativo do juiz. Da mesma forma e de um modo geral, a pessoa do juiz não dará motivo a qualquer inconformismo. Se o juiz gosta ou não disso ou daquilo não representa em princípio qualquer relevância para o conteúdo da decisão que profere. Exceção será o uso da jurisdição movido por motivação de ordem externa ao processo, demonstrado que agiu tomado por sentimentos outros que não a interpretação e aplicação da lei (grifei).

Pois bem. Na espécie, entendo que fatores externos ao processo e estranhos ao procedimento hermenêutico podem ter motivado a decisão de levantamento do sigilo de conversas telefônicas interceptadas. Observo, desde já, que essa hipótese, mesmo não sendo um juízo definitivo, decorre não só da ilegalidade praticada, mas de outros indicativos da atuação do magistrado. De qualquer modo, cuidando-­se de decisão proferida em investigação inserida na denominada Operação Lava Jato, a qual possui alto significado no enfrentamento a delitos de corrupção, lavagem de dinheiro e outros graves crimes praticados em altas esferas políticas e econômicas do país, impõe­-se, num esforço pela própria preservação da validade das decisões e medidas levadas a efeito na Operação, que mesmo as autoridades judiciais tenham seus atos submetidos a rigoroso escrutínio pelos órgãos correcionais.

No caso, um primeiro fator externo ao processo e estranho ao procedimento hermenêutico que pode ter motivado a decisão tem natureza doutrinária. Reitere­se que isso é uma hipótese, e não um juízo definitivo. Como é sabido, o magistrado Sérgio Fernando Moro tem forte produção doutrinária (o que é elogiável) e, entre suas teses, sustenta:

A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como de fato, foi tentado. Há sempre o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado. Cabe aqui, porém, o cuidado na desvelação de fatos relativos à investigação, e não a proibição abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios. As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite (grifei). (MORO, Sérgio Fernando. Considerações sobre a Operação Mãos Limpas. Revista CEJ. Brasília, n. 26, p. 56­62, julho/setembro de 2004).

O magistrado, como se vê, defende posição contrária à proibição em abstrato da divulgação de dados colhidos em investigações. Todavia, essa tese, conquanto possa ser sustentada em sede doutrinária, não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio no tocante a conversas telefônicas interceptadas, cuja publicização é vedada expressamente pelos arts. 8º e 9º da Lei 9.296/1996.

O debate doutrinário é saudável. Todavia, não pode, porém, converter em decisão judicial, com todos os drásticos efeitos que dela decorrem, uma tese que não encontra fundamento na legislação nacional. Ao assim agir deliberadamente, pode o magistrado ter transgredido o art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Outrossim, a tentativa de justificar os atos processuais com base na relevância excepcional do tema investigado na comentada operação, para submeter a atuação da Administração Pública e de seus agentes ao escrutínio público, também se afasta do objeto e objetivos da investigação criminal, mormente porque decisão judicial deve obediência aos preceitos legais, e não ao propósito de satisfazer a opinião pública.

Um segundo fator externo ao processo e estranho ao procedimento hermenêutico que pode ter motivado a decisão tem índole política. Mesmo sem juízo definitivo, posto que se está diante de elementos iniciais para abertura de procedimento disciplinar, entendo que seria precipitado descartar de plano a possibilidade de que o magistrado tenha agido instigado pelo contexto sócio­-político da época em que proferida a decisão de levantamento do sigilo de conversas telefônicas interceptadas. São conhecidas as participações do magistrado em eventos públicos liderados pelo Sr. João Dória Junior, atual candidato à Prefeitura de São Paulo pelo PSDB e opositor notável ao governo da ex­Presidente Dilma Rousseff. Vale rememorar, ainda, que a decisão foi prolatada no dia 16 de março, três dias após grandes mobilizações populares e no mesmo dia em que o ex­-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi nomeado para o cargo de Ministro da Casa Civil.

Além disso, a decisão, no quadro em que proferida, teve o condão de convulsionar a sociedade brasileira e suas disputas políticas. Aliás, no dia dos protestos contra o Governo da Ex­-Presidente Dilma (13/03/2016), o próprio magistrado enviou carta pessoal à Rede Globo e postou nota no seu blog, manifestando ter ficado "tocado" pelas manifestações da população e destacando ser "importante que as autoridades eleitas e os partidos ouçam a voz das ruas". Ora, esse comportamento denota parcialidade, na medida em que se posiciona politicamente em manifestações contrários ao Governo Federal e, ao mesmo tempo, capta e divulga ilegalmente conversas telefônicas de autoridades estranhas à sua competência jurisdicional. O Poder Judiciário, ao qual é própria a função de pacificar as relações sociais, converteu­-se em catalizador de conflitos. Não é atributo do Poder Judiciário avaliar o relevo social e político de conversas captadas em interceptação e submetê­-las ao escrutínio popular. Ao -, o Judiciário abdica da imparcialidade, despe­-se da toga e veste­-se de militante político.

Com efeito, o resultado da divulgação dos diálogos ­ possibilitada sobretudo pela retirada do segredo de Justiça dos autos ­ foi a submissão dos interlocutores a um escrutínio político e a uma indevida exposição da intimidade e privacidade. Mais ainda, quando em curso processo de impedimento da Presidenta da República, gerando efeitos políticos junto ao Legislativo que apreciava o seu afastamento. Penso que não é esse o papel do Poder Judiciário, que deve, ao contrário, resguardar a intimidade e a dignidade das pessoas, velando pela imprescindível serenidade.

Nesse sentido, o Estatuto da Magistratura prescreve que, dentre os deveres do magistrado, está o de "cumprir e fazer cumprir, com independência serenidade e exatidão, as disposições legais e atos de ofício" (art, 35, I, da LC nº 135/79).

Em complemento, o Código de Ética da Magistratura Nacional assevera que é vedado ao juiz comportamentos que denotem favoritismos, predisposições a endossar a versão de uma das partes ou que expressem preconceitos, bem como que é dever atuar com cautela e atento às consequências dos seus atos decisórios:

Art. 8º. O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das aprtes, e evita todo tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição e preconceito. (...)

Art. 25. Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado atuar de forma cautelosa, atento as consequencias que pode provocar. Essa disciplina, editada pelo Conselho Nacional de Justiça, posiciona a imparcialidade e a serenidade do magistrado como atributo necessário e inseparável do exercício da jurisdição, em perfeita consonância com o preceito basilar do devido processo legal, integrante e estruturador do Estado Democrático de Direito, nos termos da nossa Constituição Federal.

Mais que o dever de imparcialidade e cautela do magistrado no exercício jurisdicional, a divulgação aos meios de comunicação (no caso, efetivada pela quebra do sigilo das conversas gravadas) também afronta o Código de Ética, visto que cumpre ao magistrado "comportar­-se de forma prudente e equitativa, e cuidar especificamente (...) para não sejam prejudicados direitos e interesses legítimos de partes e seus procuradores" (art. 12, I).

Aliás, esse dever de cautela resta redobrado pelo destaque da Operação Lava Jato e pela repercussão que as mídias reproduzem na sociedade, mormente quando alguns magistrados e membros do Ministério Público se apresentam mais como atores globais e midiáticos, quando deveriam prezar pela discrição e serenidade em sua atuação. Exemplo mais recente de menosprezo aos preceitos basilares do processo penal foi a apresentação de denúncia contra o Ex­Presidente Luiz Inácio Lula da Silva por Procuradores da República, acompanhada de apresentação em Power Point em rede nacional de TV e rádio.

Sobre esse aspecto, lapidar a lição de José Renato Nalini, em sua obra Ética da Magistratura:

A independência perante a opinião pública é conquista espinhosa nesta era. Dificultada por uma invasiva e intensa perseguição da imprensa, movida rumo a todos os protagonistas envolvidos, em relação a fatos para os quais ela assume para si e passa a desempenhar, com desenvoltura e alarde, todas as tarefas cometidas pelo sistema e outros foros. Não é raro ­ ao contrário.cada vez mais freqüente ­ a mídia investigar, indiciar, instruir, julgar e executar ­ quando naõ execrar presumível infrator ­, sem qualquer das garantias constitucionais do devido processo legal. Inclemente em relação ao julgador que contrariar o seu prognóstico, a indústria da comunicação não raro consegue inibir a prática da mais adequada justiça concreta. Pois a tentação midiática não é perigo dos menores neste mundo da aparência narcisística e do espetáculo que não pode parar. (Ética da Magistratura. 3ª edição, São Paulo: ed. Revistra dos Tribunais, 2012, p.84).

Por isso, todo o desvio do atuar jurisdional do magistrado merece correição e a forma adequada e procedimental correta é promover a devida investigação, já que a condução do expediente judicial que autorizou a intercepação telefônica em apreço e sua posterior divulgação apresentam elementos que indicam afronta às previsões do Estatuto da Magistratura e do Código de Ética da Magistratura.

Enfim, no caso, pelo menos até esclarecimentos mais aprofundados, entendo que é duvidosa a imparcialidade do magistrado. Ademais, se o magistrado não teve o propósito de incursionar na disputa política, é fato que foi no mínimo negligente quanto às consequências político­-sociais de sua decisão, que provocou forte comoção. Ao assim agir, pode ter ofendido os arts. 1º, 8º, 12 e 25 do Código de Ética da Magistratura.

Cabe, ainda, observar que o fato questionado neste feito não é o primeiro episódio controverso do ponto de vista disciplinar em que o magistrado se envolve. Em 2013, assim se manifestou o Supremo Tribunal Federal quanto a decisão do Juiz Federal Sérgio Fernando Moro que, visando dar efetividade a prisão preventiva decretada, determinou o monitoramento dos voos dos advogados do réu:

Processo Penal. Habeas Corpus. Suspeição de Magistrado. Conhecimento. A alegação de suspeição ou impedimento de magistrado pode ser examinada em sede de habeas corpus quando independente de dilação probatória. É possível verificar se o conjunto de decisões tomadas revela atuação parcial do magistrado neste habeas corpus, sem necessidade de produção de provas, o que inviabilizaria o writ. 2. Atos abusivos e reiteração de prisões. São inaceitáveis os comportamentos em que se vislumbra resistência ou inconformismo do magistrado, quando contrariado por decisão de instância superior. Atua com inequívoco desserviço e desrespeito ao sistema jurisdicional e ao Estado de Direito o juiz que se irroga de autoridade ímpar, absolutista, acima da própria Justiça, conduzindo o processo ao seu livre arbítrio, bradando sua independência funcional. Revelam­-se abusivas as reiterações de prisões desconstituídas por instâncias superiores e as medidas excessivas tomadas para sua efetivação, principalmente o monitoramento dos patronos da defesa, sendo passíveis inclusive de sanção administrativa. 3. Atos abusivos e suspeição. O conjunto de atos abusivos, no entanto, ainda que desfavorável ao paciente e devidamente desconstituído pelas instâncias superiores, não implica, necessariamente, parcialidade do magistrado. No caso, as decisões judiciais foram passíveis de controle e efetivamente revogadas, nas balizas do sistema. Apesar de censuráveis, elas não revelam interesse do juiz ou sua inimizade com a parte, não sendo hábeis para afastar o magistrado do processo. Determinada a remessa de cópia do acórdão à Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região e ao Conselho Nacional de Justiça. Ordem conhecida e denegada. (HC 95518, Relator(a): Min. EROS GRAU, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 28/05/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe­ 054 DIVULG 18­03­2014 PUBLIC 19­03­2014)(grifei)

De fato, não pode o Poder Judiciário assumir postura persecutória. O Poder Judiciário "não é sócio do Ministério Público e, muito menos, membro da Polícia Federal", bem anotou o Ministro Gilmar Mendes no precedente citado. Não é sua atribuição, por exemplo, especialmente na fase investigatória, valorar a relevância social e penal de conversas telefônicas interceptadas e determinar o levantamento de seu sigilo. Daí porque soa incompatível com o sistema acusatório a posição revelada pelo magistrado Sérgio Fernando Moro em informações prestadas ao Supremo Tribunal Federal, às quais fez referência neste expediente. Confira-­se trecho:

Em cognição sumária, o ex­-Presidente contatou o atual Ministro da Fazenda buscando que este interferisse nas apurações que a Receita Federal, em auxílio às investigações na Operação Lava-jato, realiza em relação ao Instituto Lula e a sua empresa de palestras. A intenção foi percebida, aparentemente, pelo Ministro da Fazenda que, além de ser evasivo, não se pronunciou acolhendo a referida solicitação. O ex­-Presidente, aparentemente, tentou obstruir as investigações atuando indevidamente, o que pode configurar crime de obstrução à Justiça (art. 2º, §1º, da Lei nº 12.850/2013).

Mesmo sem eventual tipificação, condutas de obstrução à Justiça são juridicamente relevantes para o processo penal porque reclamam Assim, em princípio, não se pode afirmar que o referido diálogo interceptado não teria relevância jurídico­criminal. E se tem, não se pode afirmar que a divulgação afronta o direito à privacidade do ex­-Presidente.

Na fase de investigação, a análise da relevância criminal de conversas captadas em interceptação, para o fim de possível propositura de ação penal pela prática de crime de obstrução de Justiça, é função exclusiva dos órgãos persecutórios.

A atribuição do juiz na fase investigatória é, exclusivamente, a de tutela das liberdades públicas. Nesse sentido, afirmam Eugênio Pacelli e Douglas Fischer: Em um sistema acusatório, em que o juiz deve ficar afastado da fase pré­processual, ressalvada a tutela das garantias públicas (inviolabilidades pessoais ­ busca e apreensão domiciliar, prisão etc.), deve­se também evitar quaisquer manifestações judiciais que impliquem o exercício de atividades tipicamente investigatórios e/ou acusatórias (PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2015. 7. ed. p. 23).

Também reforça a necessidade de prosseguimento da investigação correcional do magistrado, para apuração de possíveis infringências às normas do Estatuto e ao Código de Ética da Magistratura, o Procedimento de Investigação Criminal do Ministério Público em face do juiz Sérgio Fernando Moro que tramita na 4ª Seção desse Tribunal (5019052­83.2016.404.0000).

Em conclusão, além de possíveis infrações disciplinares, penso que o caso em exame pode revelar uma subversão do sistema acusatório, a exemplo dos fatos apreciados pelo Supremo Tribunal Federal no HC 95.518, acima referido, envolvendo o mesmo magistrado. Cabe registrar que se reconhece a importante contribuição da denominada Operação Lava Jato no combate à macrocriminalidade e a uma lógica perversa que historicamente contamina a República, envolvendo altas autoridades e setores abastados do país.

Do mesmo modo, reconhece­-se a dedicação do Juiz Federal Sérgio Fernando Moro. Isso, no entanto, não imuniza ninguém ­ autoridades da magistratura, do Ministério Público e policiais ­ de um escrutínio rigoroso de seus atos por órgãos correcionais. Ao contrário, o zelo pela validade de tão virtuosa Operação exige esse escrutínio. É oportuno lembrar, uma vez mais, que as possíveis transgressões disciplinares aqui apontadas não são juízos definitivos e, portanto, merecem melhor apuração pelo devido processo disciplinar a ser instaurado.

Aliás, é oportuno parafrasear o próprio juiz Sérgio Fernando Moro, que, na decisão de recebimento da denúncia contra o Ex­-Presidente Lula, no dia 20 do corrente mês, alertou que nessa fase processual não há conclusões definitivas sobre as violações legais, visto que o "juízo de admissibilidade da denúncia não significa juízo conclusivo quanto à presença de responsabilidade criminal", sendo que "o processo é, portanto, uma oportunidade para ambas as partes".

Desse modo, o que se pretende nessa fase é apenas dar continuidade ao processamento da apuração de eventual transgressão funcional do magistrado, permitindo sua ampla oportunidade de defesa e, ao mesmo tempo, a demonstração das infrações alegadas pelos representantes da "acusação".

Enfim, por visualizar, no caso, possíveis infrações ao art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional e aos arts. 1º, 8º, 12 e 25 do Código de Ética da Magistratura, entendo que é precipitado o arquivamento do expediente, sendo o caso de instauração de processo administrativo disciplinar, nos termos do art. 26 e seguintes da Consolidação Normativa da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região.

Ante o exposto, voto por dar parcial provimento ao recurso e determinar a instauração de processo administrativo disciplinar.

 Desembargador Federal ROGERIO FAVRETO

Confira o voto aqui voto-vista-moro

Fonte: TRF4

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