Voltamos às eleições indiretas

18/04/2016

Por Enos Eduardo Lins de Paula - 18/04/2016

No dia da mentira de 1964, na cadeira da Presidência da Câmara dos Deputados onde hoje senta um corrupto, àquela época sentava um mentiroso. À mentira de que João Goulart havia abandonado o cargo e à declaração de vacância da Presidência da República, Tancredo Neves irrompeu o plenário com dedo em riste e aos gritos: - Canalha! Canalha!

Hoje também mentem.

Tento imaginar se daria mais amargor à Tancredo perceber a quantidade de canalhas que povoam aquele mesmo plenário ou saber que alguém que usa seu nome politicamente votará pela derrubada de um governo legítimo, e participará de um governo ilegítimo.

Não é despropósito falar de 1964. Os momentos de vilipêndio à democracia são semelhantes. As épocas de golpes são parecidas. Hoje os tanques foram trocados por bonecos infláveis, os coturnos foram trocados por mocassins, mas ainda assim se tenta tomar o poder com conspirações e sem votos.

Lá também aconteceu com enorme apoio das famílias cristãs e dos jornais. O ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, que estava no Rio de Janeiro no abril do golpe das fardas, conta em um de seus livros  que das ruas, nas varandas e janelas, viam-se velas acesas em apoio à trama golpista. Quando FHC foi ao Leblon visitar seu pai, encontrou no prédio apenas duas janelas escuras: a de seu pai e a de Carlos Drummond de Andrade.

Nem Drummond, nem o pai de Fernando Henrique, eram algum dos inocentes do Leblon sobre os quais escreveu o poeta. Hoje, o apoio das velas cristãs nas varandas foi substituído pela retransmissão de piadas ruins em imagens nos telefones. E Fernando Henrique hoje apoia a derrubada de uma Presidente que não cometeu crime algum para apoiar o eventual futuro governo sem votos.

Em outro momento, no golpe dentro do golpe de 1968, na reunião que estabeleceu o Ato Institucional n. 5 , num surto de honestidade disse o coronel Jarbas Passarinho: - Às favas todos os escrúpulos de consciência. Também hoje não têm escrúpulos. Pedro Aleixo, Vice-Presidente de Costa e Silva, foi o único naquela reunião com a coragem de ser contra a autorização das arbitrariedades. Disse: - O problema [de aprovar o AI-5] é o guarda da esquina.

Eu comecei a pensar o que diria hoje , já esperando a tristeza e a dificuldade, jantando ontem à noite em um bar. À frente do bar parou uma viatura da polícia. Um dos PMs desceu, cumprimentou o gerente, foi ao banheiro, passou no caixa (não para pagar), e saiu em caminho ao bar vizinho. Quando o primeiro policial voltou à viatura, o segundo veio ao bar, e saiu com um guaraná em cada mão.

O problema da corrupção, legitimada pela atuação vingativa de Eduardo Cunha contra os que não lhe protegeram, também é o guarda da esquina.

Esses são tempos de corrupção, mas também são tempos de investigação, são tempos de fortalecimento das instituições. São tempos de independência do Ministério Público e do Judiciário, e estes fatos são inegáveis. É também para ir contra o fortalecimento das instituições que os donos de sempre estão tentando tomar o poder.

Governo ruim não se retira em eleição indireta. Quem decidiu isso foi a população, quando no plebiscito de 1993 escolheu, nas urnas, o sistema presidencialista. Eu não acredito que era a melhor opção, como também não acho que Dilma era a melhor opção em 2014. Mas tanto em 1993 quanto em 2014, prevaleceu a vontade das urnas.

É de eleição indireta que aqui se trata, e não de impeachment. Eleição de um Vice-Presidente oportunista que discursa como eleito e trama golpe na residência oficial. Hoje foi o primeiro turno da eleição de Michel Temer, que nunca terá capacidade conquistar poder por escolha popular.

É um dia histórico, mas não pelas razões que os que estão comemorando imaginam. Daqui a 30 anos, quando os livros de história nas escolas já passarem vídeos, a única escusa de consciência possível aos que aplaudem as tristes imagens de hoje será dizer que não sabiam o que acontecia.

Mas os que estão lá sabem o que fazem, sabem o porquê fazem, não se importam em fazer do Brasil um país menor, desde que seja um país deles. O que não sabem é o que é democracia, o que é legalidade, o que é Estado Democrático de Direito.

Quem não sabe o que faz são vocês que os apoiam.

Impeachment é um julgamento por crime de responsabilidade. E crime, seja comum ou de responsabilidade, exigirá, sempre, lei anterior e estrita. Atraso de pagamento a bancos não é financiamento. Chamar atraso de pedalada não faz mudar o fato, faz as pessoas não entenderem sobre o que estão falando. Façam as analogias que quiserem até encontrarem problemas jurídicos, civis ou administrativos, mas não se cria crime por analogia.

Eles, os corruptores da Constituição, da legalidade e da democracia, venceram hoje. E como Darcy Ribeiro, eu detestaria estar no lugar dos que venceram.


Notas e Referências:

[1]    CARDOSO, Fernando Henrique. O improvável presidente do Brasil. São Paulo, Civilização Brasileira: 2013.

[2] Íntegra da transcrição do áudio da reunião disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/reuniao/index.html#transcricao, acessado dia 18/04/2016.

[3]    Escrito domingo, 17 de abril, após a votação da Câmara dos Deputados que inaugurou o processo de impedimento da Presidente da República.


Enos Eduardo Lins de Paula. Enos Eduardo Lins de Paula é estudante do último ano da graduação em Direito na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, foi monitor bolsista de Direito Processual Penal, é diretor de ensino da LigaAcadêmica de Ciências Criminais - LACCRIM.. .


Imagem Ilustrativa do Post: Briança - Holy Ghost Feast (with portrait of Dacosta) - Júlio Pomar (1926) // Foto de: Pedro Ribeiro Simões // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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