Você tem nome de quê?: considerações a propósito do diagnóstico psi no Direito

28/09/2015

Quem seríamos?

Veio um instante, partiu de novo,
Leve, sem nome…
Para que nomes? Era azul e voava…
No véu das horas punha o seu motivo.
Partiu. E nem
Ficou sabendo
Como eu, acaso, me chamava…
(Mário Quintana. Apontamentos de história sobrenatural)

 

A rotina de um psicólogo em suas relações com o Direito frequentemente caracteriza-se por produção de documentos em resposta a portarias de autoridades policiais, requisições ministeriais, e mesmo questionamentos em audiências realizados por diversos atores jurídicos a respeito do diagnóstico psicológico/psiquiátrico apresentado pelos sujeitos mencionados nos procedimentos policiais ou autos.

Em alguns casos, chegam a perguntar a respeito dos alegados “transtornos”; por exemplo, se o referido quadro tornaria o sujeito incapaz de compreender a ilicitude da ação e/ou incapaz de se dirigir de acordo com tal conhecimento, ou se o sujeito encontrar-se-ia numa condição de vulnerabilidade por portar o transtorno. São ocasiões interessantes para que o psicólogo explique ao operador do Direito, por exemplo, que não interessa ao Direito se aquele transtorno traz ou não prejuízos da cognição e volição, mas se no momento da ação o sujeito encontrava prejudicadas tais funções, sendo ele ou não portador do dito transtorno.

Em outros casos, no entanto, a solicitação por parte do operador do Direito é ainda mais ingênua (ou rasteira?): indagam simplesmente se o sujeito porta ou não algum transtorno e, em caso afirmativo, qual seria. Nestas ocasiões, espera-se que o psicólogo não seja ingênuo (ou necessite ser seduzido, numa espécie de Don Juan às avessas) a ponto de responder a tal questionamento nestes termos, sem considerar os possíveis usos que os operadores do Direito fazem dos nomes que o psicólogo dá ao sujeito avaliado.

Neste sentido, mostra-se pertinente iniciar por algumas considerações a propósito do diagnóstico psicológico. Dentre elas a distinção entre diagnóstico psicológico e psiquiátrico. Ainda que se reconheça que alguns psicólogos orientam-se por abordagens epistemologicamente fundadas nos mesmos alicerces que a Psiquiatria biológica e, portanto, utilizem das classificações propostas pela Organização Mundial de Saúde (conforme prevê a Classificação Internacional de Doenças – CID) e Sociedade Americana de Psiquiatria (Manual Diagnóstico e Estatísticos de Transtornos Mentais – DSM), neste espaço pretende-se trazer pelo menos uma outra concepção sobre diagnóstico: a psicanalítica. Concepção esta que norteia a atuação de alguns psicólogos.

Uma primeira crítica que se pode fazer ao diagnóstico psiquiátrico (que, como acima se disse, muitas vezes é utilizado por psicólogos) é a de que “Esse movimento de fixar-se na descrição dos sintomas (nosografia) em detrimento da lógica da doença que dá corpo e organiza os sintomas (nosologia) leva, inclusive, ao questionamento se o DSM se constitui realmente como uma psicopatologia ou como uma classificação de sintomas” (Kyrillos Neto; Santos, 2014, p.69). Está-se referindo a uma restrição ao campo do imaginário, e um rechaço ao campo do simbólico. Ou, em outros termos, a uma postura profissional reduzida ao olhar, e acometida por surdez. Uma postura não compreensiva(médica), mas julgadora(penalista?).

Tal posicionamento não é sem interesses, como explicam Kyrillos Neto & Santos (2014, p.67): “a partir do momento em que o conceito de transtorno mental torna-se o princípio organizador da lógica diagnóstica da psiquiatria, o que se vê é uma valorização das possibilidades de sofrimento que podem levar os sujeitos à clínica, sem uma reflexão acerca da natureza daquilo que os estaria levando a sofrer“. Há, portanto, uma reserva de mercado buscada por meio deste pretenso abarcamento de tudo o que indique sofrimento. O questionamento a propósito do que subjaz ao sofrimento poderia acarretar a conclusão que, por exemplo, não é na medicina que o sujeito obteria suas respostas. Algo de quê se afastam alguns profissionais psis e aqueles sujeitos sofredores que ainda não puderam estancar o gozo que lhe traz gota a gota, e às vezes de maneira bem invasiva, a dor.

É necessário mencionar que não se está tratando de toda a Psiquiatria, mas de uma Psiquiatria biológica, que, duvidosa de seu próprio valor, segue o que primeiro se coloca em sua frente como um bom caminho a seguir: a medicina moderna. “Um manual supostamente ateórico, mas que é revisado por conta de conhecimentos em áreas fortemente ligadas ao campo da medicina, sendo dessa forma bastante influenciado por elas. Essa afirmação corrobora a tendência de aproximar psiquiatria e saberes de bases biológicas, de modo que a escolha pelo ateoricismo mostra-se como uma questão estratégica” (Kyrillos Neto; Santos, 2014, p.67-68).

Uma Psiquiatria biológica parece ser aquela que se posiciona como Patinho Feio. É uma Psiquiatria que sofre precisamente por não admitir que o problema não é o que ela é, mas suas fantasias sobre o que deveria ser. São tais fantasias as correntezas que lhe arrastam a lugares em que ela fica deslocada e a mercê de estranhos que, com seu suposto acolhimento, sufocam-na com abraços. A tal ponto de fazer ela acreditar que é melhor que ela seja aquilo que não é. O calor das asas da medicina moderna talvez seja o que, tão procurado pela Psiquiatria, a mantém insatisfeita com o que é: um campo de saber que trabalha com humanos.

Caso tenha a hombridade de ser o que é, inicialmente a Psiquiatria deveria parar de camuflar as penas que tem de si por meio do adjetivo “biológica”. Despida de fantasias de uma outra pele, a Psiquiatria inicialmente admitiria que não se pode desconsiderar a subjetividade ao se trabalhar com humanos. “internamente, as proposições dos DSM’s acabam sempre tocando em noções próprias à dimensão do sujeito, mesmo que a neguem explicitamente” (Calazans; Lustoza, 2014, p.16).

A discussão dos autores pode ser transposta para o posicionamento do próprio profissional que diagnostica. Mais diretamente, da ética do profissional que deixa de ser clínico (algo supostamente inerente à profissão que trabalha com sofrimento humano) para ser catalogador, etiquetador, carimbador, marcador, etc. Em seus termos: “o campo de problemas da clínica do psíquico, por incluir inevitavelmente o sujeito, deve pautar o diagnóstico por métodos eminentemente clínicos (e não estatísticos), assim como deve incluir procedimentos que sejam da ordem da fala. . . se trata de uma questão que parte de princípios éticos, mesmo que no discurso manifesto tenhamos afirmações de que se trata de uma questão científica” (Calazans; Lustoza, 2014, p.17).

Poder-se-ia pensar inclusive no crime de atuar profissionalmente de maneira diversa daquela a que se propõe, por interesses mercadológicos. Um médico que, chegando mais perto, mostra-se não (só)médico, mas monstro. E cabe aqui lembrar: a conduta daquele que busca o saber médico exclusivamente para dele receber um nome para aquilo que lhe acomete e/ou algo (um “remédio”) que cesse o que lhe faz duvidar daquilo que sabe de si, não deveria autorizar o profissional a agir desta forma. Afinal, a conduta da vítima não deveria torná-la autora, mas apenas ser um critério para compreensão do fato, não é?

A Psicanálise compreende que a frequência de ocorrência dos fenômenos não deve ser o único critério observado no estabelecimento de um diagnóstico, e que o clínico deveria se preocupar principalmente com os motivos da significativa frequência dos fenômenos em questão. “A falta de contexto clínico leva a uma confusão na elaboração do diagnóstico. Se, para os promotores dos DSM’s, a confusão entre os clínicos seria proveniente de utilizarem nomenclaturas diferentes, podemos dizer que para nós a confusão maior reside em outro lugar: o uso exacerbado de definições fenomênicas conduz à impossibilidade de diferenciar uma psicose do que ela não é” (Calazans; Lustoza, 2014, p.21). Os autores, nesta obra, focam no quadro da psicose, mas sua análise transcende o quadro em si e alcança a crítica psicanalítica sobre o diagnóstico psiquiátrico em si.

Para eles, desconsiderar as noções de estrutura clínica e de sujeito num diagnóstico tem efeitos danosos. Inicialmente, o próprio diagnóstico pode ser equivocado, já que alguns sinais não são exclusivos de determinado quadro, e nem seu definidor. A diferença entre os quadros estaria no ordenamento dos sinais, e isto apenas as concepções de sujeito e estrutura clínica permitiria acessar. “O erro diagnóstico está ligado também a uma concepção equivocada de tratamento, já que o descritivismo está amparado numa perspectiva biologizante. O resultado é a aplicação de medicamentos em situações que necessitariam de uma dimensão de elaboração subjetiva” (Calazans; Lustoza, 2014, p.24).

A lembrança que a Psicanálise faz pode ser resumida como o alerta à Psiquiatria de que o humano só pode ser apreendido a partir da subjetividade. E isto porque ele não pode/deveria ser tomado pelo discurso médico como objeto, mas sujeito. Tal alerta serve, inclusive, para lembrar aos psiquiatras de que eles não podem/deveriam ser tomados pelo saber médico como objetos, e que deveriam/podem se apropriar do saber médico, subjetivando-o. Mais ou menos como o sujeito que usa psicofármacos deveria acreditar: que não é a substância que lhe permite viver, mas que é só seu desejo pela vida que pode se servir beneficamente da mesma.

Do reconhecimento da subjetividade dos profissionais é que inclusive se admite que “os psiquiatras raramente confundem os diagnósticos acima citados. Isso demonstra que é a sua sensibilidade clínica o que os previne de cometer erros grosseiros e não os princípios ordenadores desse manual” (Calazans; Lustoza, 2014, p.22). Realmente o Patinho Feio (aqui representado pelo médico alienado ao saber da Psiquiatria biológica) tem seu valor; seu sofrimento vem de sua crença delirante de que deveria ser outro. Uma crença que tem seus efeitos sobre o outro, já que cria subterfúgios para que quem lhe avista alucine que ele não é o que é. “É a exclusão das posições subjetivas do médico e do paciente o alicerce dessa relação. A partir dessa premissa, o médico intervém e fala como instrumento do discurso médico. Tem-se, assim, uma anulação do médico como sujeito, pois sua prática deve ser pautada na objetividade científica” (Kyrillos Neto; Lemos e Silva; Pederzoli; Hernandes, 2014, p.83)

Há uma insuportabilidade por parte da Psiquiatria-Patinho Feio em aceitar que não é nela que está a verdade do sujeito, ainda que a ela ele recorra. Lembremos que o pato, por não se bastar com o que era, idealizava ser cisne (alguém bem maior). Daí é que a semiologia médica própria à Psiquiatria biológica desconsidera que sintoma é apenas aquilo de que o sujeito se queixa. Logo, que “sintoma” não é uma categoria definida pelo profissional, mas pelo sujeito. “A semiologia médica tende a identificar cada vez mais o signo recolhido com a realidade da doença. O sintoma fica redutível a algo que não vai bem, algo anormal, uma alteração de função ou alerta de doença, sendo tomado como signo, como sinal. Para o médico, cabe decifrar e ligar o sintoma, ou sinal mais apropriado dizer, a algo objetivável estabelecendo relações fixas entre os signos e as coisas que representam (Santos, 2013, p.92).

Também há, também por parte desta Psiquiatria, uma insuportabilidade em admitir que as verdades subjetivas nem sempre podem ser nominadas, inclusive pelo próprio sujeito. Há um real no sintoma que não poderá ser abarcado pelo simbólico. As verdades nem sempre são verdadeiras, no campo do humano. Nesta direção é que se compreende que

Há um crescimento desmesurado do número de categorias diagnósticas que responde a uma demanda não apenas de medicamento e alívio, mas de sentido. Caberia assim à psiquiatria ao mesmo tempo tratar e produzir excesso de experiências improdutivas de determinação, a saber, a inflação nominalista da saúde mental sobre o sofrimento de pathos. Por outro lado, caberia à psicanálise ao mesmo tempo tratar e produzir uma espécie de déficit de experiências produtivas de indeterminação, a saber, a deflação da demanda de significação e ordem que acompanha o sofrimento de pathos (Dunker; Kyrillos Neto, 2011b, p.11)

Nesta direção, pode-se dizer que a Psiquiatria-Patinho Feio não reconhece sua impotência perante o sofrimento alheio, e muito menos que o próprio sujeito não pode se salvar [da vida]. Como lembra o pai da Psicanálise, “Tolerar a vida continua a ser, afinal de contas, o primeiro dever de todos os seres vivos” (Freud, 1915, p.309). A Psiquiatria quá-quá não admite que cada um tolera a vida como pode, e que é essa sua possibilidade de suportar a vida que o sujeito busca encontrar com seu sofrimento. A Psiquiatria quá-quá não compreende o sintoma como uma expressão de desejo, como uma solução frente aos impasses com o Outro, como portador da verdade do sujeito e que pode levar ao saber de si.

Para essa clínica [a psicanalítica], não se trata, como querem os “cientistas”, de crer em superstições ou de se lançar numa prática adivinha, mas de restituir ao sujeito seu próprio sofrimento e sua responsabilidade, abandonando assim as práticas do saber afirmado do Outro difundidas pelos manuais psiquiátricos. Do ponto de vista do sujeito, essas clínicas são um instrumento a mais na alienação do doente de sua própria doença, o que representaria, ao contrário do que pensam os que se autoproclamam científicos, retroceder e retomar a direção do passado histórico da psicopatologia (Pinto, 2012)

A busca de uma solução deste impasse estrutural entre sujeito e Outro muitas vezes é dirigida pelo sujeito ao exterior, incluindo o saber médico, mas precisaria ser dirigida para dentro. O sujeito precisa se engolir, e talvez busque engolir outras coisas para que não precise fazê-lo.

a psiquiatria ao se afastar da psicopatologia, reconhecendo nela um território demasiadamente ambíguo do sofrimento, do mal-estar e da significação, com sua polifonia de vozes e narrativas, aproxima-se perigosamente de uma prática mecânica de medicalização de massas. Dessa forma, a sua aspiração à universalidade decai em “totalidade operacional”, bem como sua capacidade para intervir na singularidade da clínica degrada-se em “generalidade particular” (Dunker; Kyrillos Neto, 2011b, p.11-12)

Cabe, neste sentido, explicar que no campo mental a lógica causal-linear encontra impasses. Não se sabe o que vem primeiro, se o ovo ou o pato, mas apenas que ovo e pato possuem uma íntima relação. Dever-se-ia, até por isso, colocar em primeiro plano o sofrimento do sujeito em particular, e não insistir para comprovar que o cérebro vem antes do psiquismo. Tanto o cérebro como o psiquismo são de alguém dolorido, que não deveria ser feito de pato, mas escutado. Sujeitos de asas quebradas (todos nós) não deveriam ser tratados como receptáculos de palavras e medicamentos, porque isto pode ser a sentença de que nossas asas não foram feitas para voar ou de que nosso vôo é inadequado porque não acompanha um certo bando (que muitas vezes nem existe, porque ideal e genérico).

o aparato biológico é totalmente transformado pela linguagem e pela cultura durante a constituição do sujeito. Assim sendo, não se trata de negar a presença do orgânico nessa problemática, mas, sim, de repensá-la, pois o sistema simbólico, modifica, à medida que perpassa, tanto o orgânico quanto o psiquismo. . . Dessa forma, pode-se inferir: diferentes posicionamentos subjetivos resultam em diferentes funcionamentos das funções psicológicas as quais, por sua vez, inscrevem-se de diferentes formas no funcionamento cerebral (Legnani, 2012, p.317)

Trata-se de uma espécie de ortopedia da dor de viver. E uma ortopedia que pretende um pleno amor à vida, por reconhecer as lágrimas (não as de crocodilo, mas as de humanos) como defeito de fábrica. Daí sua tentativa de ressecá-las de modo a não brotarem nos olhos que olham os psiquiatras, e de preferência antes que cheguem às bocas que lhe pedem algo. Uma expectativa de que as demandas sejam mudas é bem compatível com dar algo para na boca entrar. “Dentro da tradição médica há uma arraigada concepção, que guarda uma compatibilização com os primórdios do positivismo, de que o patológico deve ser normatizado e re-equilibrado, isto é, deve-se retirar o que está em excesso ou complementar o insuficiente” (Legnani, 2012, p.316-317).

Esta postura de quem acha que tem tudo o que o sujeito precisa receber, e de que este tudo está numa medicação ou nome, talvez parta de quem precise se silenciar como sujeito. A questão, portanto, não é necessariamente ser um psiquiatra ou psicólogo quem o faz, mas ser alguém alienado a ideais da medicina moderna. Especialmente ao ideal de objetivação do humano, que, no caso da demanda médica, é um ideal que apaga o demandante e o demandado. Um diagnóstico que tem sua função em si, e não de ser um meio de mudança. O diagnóstico pelo diagnóstico. Palavra vazia. O único que é restaurado/curado/estancado/suturado com o diagnóstico e medicalização é o saber da medicina moderna. Médico e “paciente” são usados no modo e na dosagem que a isto interessar.

encontramos a pertinência das boas descrições psiquiátricas e psicanalíticas que são elaboradas com vistas a estratégias de intervenção e transformação. Se fossem simplesmente o neutro reflexo das coisas como tais, não seriam descrições de sujeitos. O diagnóstico em psicanálise além de ser estrutural é também sob transferência, o que exige do analista um trabalho de produzir certa fala que possa indicar algo da posição do sujeito na fantasia. Falamos de um endereçamento da fala, de uma ultrapassagem dos fenômenos que nos permite formular um diagnóstico como função terapêutica e concomitantemente nos afasta das caricaturas engendradas pelos manuais como padrões de sofrimento psíquico (Dunker; Kyrillos Neto, 2011a, p.623) (grifos meus)

Após esta crítica em relação à Psiquiatria, ou pelo menos uma tentativa de demarcar que ela não pode voar tão alto e rápido quanto em seus sonhos, voltemos a pensar sobre o que respinga desta revoada sobre o Direito. Eis que retornamos ao início deste escrito com a seguinte pergunta: o que o Direito espera quando pede o nome de um diagnóstico da Psiquiatria biológica ao psicólogo?

Na argumentação dos operadores do Direito que o solicitam, evidencia-se uma expectativa de que seja utilizado a seu bel-prazer, posto que, como já lembrado, juridicamente importaria apenas saber se o sujeito encontrava-se, no momento da ação, com integridade das funções de cognição e volição. Não importaria, portanto, que se dissesse algo além do que se passou com o sujeito no momento do ato, e muito menos importaria que se desse um nome ao que se passa com o sujeito em seus nados, vôos e rastejadas pela vida. Talvez seja insuficiente, a certos operadores do Direito, a etiqueta que eles dão aos sujeitos de criminoso ou vulnerável.

Sobre a busca de identificação de causas, motivos, e nomeações de razões para o mal-estar próprios a uma certa modalidade de estabelecer diagnóstico, pode-se dizer que sua maior função, no campo jurídico, é melhor punir os que figuram como autores, ainda que seja plausível a ideia de que também sirva para desresponsabilizar alguns que figuram como vítimas perante suas próprias vidas, convencendo-os de que é o saber jurídico que melhor os protegerá, bem como de que a vida só seria tolerável se não sofrêssemos mal algum. “a expansão da psiquiatria inspirada no DSM rumo a uma normalidade ideal aplica-se, sobretudo, aos delinquentes e criminosos, com o objetivo de controle dos riscos populacionais, visando uma suposta harmonia social. Parece-nos que a consequência da busca por uma normalidade ideal está no apagamento do sujeito, por intermédio dessas categorizações” (Rosário; Kyrillos Neto, 2014, p.411).

Por fim, resta a observação de que, pelo menos aos psicólogos orientados pela Psicanálise, o questionamento a propósito da volição, a resposta sempre será de que o sujeito agiu como pôde agir, e que, se pudesse agir diferentemente, tê-lo-ia feito. Isto decorre do conceito fundamental à Psicanálise de inconsciente. Ao Direito moderno, assentado na concepção cartesiana de consciência e livre-arbítrio, é estranho compreender como alguém que conhece racionalmente as normas e as transgride possa ser responsabilizado por isto, sem que para isto se compreenda que ele escolheu livremente transgredi-la. Da mesma maneira, ao Direito em questão é impossível compreender que alguém que tenha íntegra a função de consciência pode, por exemplo, representar como violenta uma relação sexual na qual não tenha se comportado de maneira a resistir à abordagem do autor. Às vezes inclusive seu comportamento, tomado ao pé da imagem, poderia dizer que procurou a violência.

Evidentemente o Direito julga o ato, e talvez seja epistemologicamente equivocado esperar que considere o universo simbólico; porém, sabe-se que via de regra recai-se no Direito do autor, de acordo com os estereótipos e preconceitos marcados na subjetividade do operador do Direito. Já que inevitavelmente os operadores do direito pautam-se em análises das subjetividades pautados em aspectos que transcendem o comportamento, que pelo menos tais aspectos não sejam seus moralismos e interesses político-econômicos, mas a consideração da constituição inconsciente do humano.

A (des)humanidade destes operadores sempre está em sua atividade profissional. A aposta que a Psicanálise pode fazer talvez seja apenas a de que entender que o humano só pode ser o que é, e até que só deveria ser o que é, pode contribuir para que os principais atores das cenas jurídicas sejam as partes envolvidas, e não os operadores do Direito.

Que a autenticidade dos sujeitos tenha como custo uma repressão jurídica ou pelo menos um abandono por parte da lei, talvez também seja inevitável aos sujeitos. Isso não seria obstáculo, caso o operador do Direito entendesse sua função é responsabilizar, e não reprovar ou salvar.


Notas e Referências:

American Psychiatric Association. DSM-V: manual diagnóstico e estatísticos de transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2013.

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Dunker, Christian Ingo Lenz, & Kyrillos Neto, Fuad. (2011a). A crítica psicanalítica do DSM-IV: breve história do casamento psicopatológico entre psicanálise e psiquiatria. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental14(4), 611-626. Retrieved September 26, 2015, from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-47142011000400003&lng=en&tlng=pt.10.1590/S1415-7142011000400003.

Dunker, Christian Ingo Lenz, & Kyrillos Neto, Fuad. (2011b). A psicopatologia no limiar entre psicanálise e a psiquiatria: estudo comparativo sobre o DSM. Vínculo8(2), 1-15. Recuperado em 26 de setembro de 2015, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-24902011000200002&lng=pt&tlng=pt.

Freud, Sigmund. (1915). Reflexões para os tempos de guerra e morte. Obras Psicológicas Completas, v.XIV. Rio de Janeiro: Imago.

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Kyrillos Neto, Fuad; Silva, Carlos Lemes e; Pederzoli, Aquinoã Abigail; Hernandes, Maria Luísa Azôr.  (2014). Histeria e diagnóstico psiquiátrico na contemporaneidade: tensões com a psicanálise. Psicol. Argum., 32(77), 75-83.

Legnani, Viviane Neves. (2012). Efeitos imaginários do diagnóstico de TDA/H na subjetividade da criança. Fractal, Rev. Psicol., 24(2), 307-322.

Pinto, Tereza. (2012). Crítica do empirismo aplicado à psicopatologia clínica: da esterilidade do DSM a uma saída pela psicanálise. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica15(spe), 405-420. Retrieved September 27, 2015,fromhttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982012000300004&lng=en& tlng=pt.10.1590/ S1516-14982012000300004.

Rosário, Ângela Buciano do & Kyrillos Neto, Fuad. (2014). Abordagem da violência no sistema classificatório DSM na perspectiva psicanalítica. Fractal, Rev. Psicol., 26(2), 401-414.

Santos, Rosemary Jimenez Ventura dos Santos. (2013). A solução do sintoma ou o sintoma como solução? Do sujeito em questão para a Psicanálise, Medicina e Educação. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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