Você sabe com quem está falando? - Considerações sobre sujeito do direito da psicanálise

25/05/2015

Por Maíra Marchi - 25/05/2015

“Eu sou as coisas da vida / Eu sou o medo de amar / (...) Eu sou o seu sacrifício / A placa de contra-mão / O sangue no olhar do vampiro / E as juras de maldição / (...) Você me tem todo dia / Mas não sabe se é bom ou ruim / Mas saiba que eu estou em você / Mas você não está em mim / (...) Eu sou os olhos do cego / E a cegueira da visão”

Raul Seixas

 

Este escrito pretende estabelecer algumas, sabendo-se ser muitas as possíveis, considerações a respeito do sujeito do Direito e do sujeito da Psicanálise. Com referência a “considerações”, não se intenciona legitimar um diálogo de cavalheiros/damas (que se define pelo “acordo”), ou, em outros termos, uma interdisciplinaridade que objetivaria complementar quantitativamente o saber de cada disciplina, obedecendo a um ideal de completude. Espera-se justamente demarcar as rupturas trazidas pela Psicanálise que bem se mostram quando se põe a dialogar com o Direito. Além disto, pretende-se dar lugar aos vazios que restam da aproximação entre estes dois saberes.

Ainda que se reconheça os ganhos recíprocos dessa interlocução (desse postar-se lado a lado com o diferente), destacar-se-á uma possível crítica psicanalítica a alguns conceitos operados pelo Direito. Refiro-me à ideia segundo a qual, mesmo reconhecendo que ambas as áreas possuem diferentes regimes de discursividade, a desconsideração pelo Direito de alguns aspectos que definem/constituem o humano inviabiliza ou pelo menos prejudica que, por meio dele, se alcance a justiça.

A propósito, talvez a desconsideração do inconsciente pelo Direito seja uma das vias pelas quais se exerce a falácia moderna da redução da justiça ao Direito. Ou, mais sinceramente, se manifesta a eficácia do projeto político-econômico moderno de disciplinar as práticas de justiça, por meio da ciência do Direito.

Em termos mais específicos, porque tratando do Direito Penal, parece que a Psicanálise pode colaborar advertindo ao Direito a perda de sua função simbólica e de sua dimensão ética quando se acredita reduzido a um aparato coercitivo. Assim, não se trata de uma precariedade de sua inscrição como Lei, apesar do aparato coercitivo (leia-se: leis repressivas). Mas de uma Lei que não encontra lugar numa subjetividade justamente por esta ser avassalada por leis. A lei, quando orientada para a exclusão do outro e não para a mediação do contato, ameaça a civilização. E, como se verá mais adiante, ameaça a própria subjetividade, haja vista ser o exercício do descentramento que possibilita viver/conviver com alguém.

São várias as possibilidades de se problematizar o estatuto do sujeito do Direito e da Psicanálise. Porém, a opção por abordar as concepções de livre-arbítrio e responsabilidade se deve por parecer que tais concepções fundamentam-se em outras que são igualmente basais no diálogo entre Direito e Psicanálise: as noções de consciência e inconsciente, de bom e mau, de bem e mal, e de bondade e maldade.

O império da consciência: algo sobre o sujeito do Direito

Inicia-se com uma menção aos princípios que são fonte do Direito Positivo: a dogmática jurídica. Assim, muito mais que nos ater às jurisprudências, ou à lei em si, compreende-se como fundamental analisar a racionalidade envolta na própria fundação da ciência jurídica moderna. Ou, em outros termos, o enunciado que sustenta as enunciações manifestas em leis e em suas interpretações. Escreve Gusso (2011, p.44) a respeito:

O sujeito de direito, tal como requerido pelas construções da dogmática jurídica no século XIX e boa parte do século XX, está encerrado nos aportes da filosofia transcendental, ou seja, está situado em um espaço-tempo determinado por uma consciência racional. A razão é a unidade delineadora de todas as possibilidades subjetivas construídas no limiar da modernidade, que acaba por formatar a noção de sujeito de direito penal como o “homem do livre-arbítrio”.

Oliveira (2010, p.288) afirma explicitamente que, seja na vertente jus naturalista ou na positivista, o que sobressai na dogmática e ciência jurídica é este atributo consciente do sujeito, que, proprietário de suas ações, poderia responder por elas. E, por assim ser, o sujeito poderia adentrar no jogo jurídico. Contudo, parece também que uma vez dentro o sujeito não consegue sair. Isto porque sua subjetividade é reduzida às previsões e tipificações legais, e ainda mais: sua subjetividade é reduzida àquilo que pode ser visto (o comportamento, a imagem). Então, a subjetividade é enclausurada em sua dimensão imaginária, bem como a uma certa apropriação normativa desta dimensão.

Nada adentra o Direito que não seja por esta transmutação objetivadora que procura integrar, no final das contas, um fato a uma norma, pela lógica da subsunção, e um sujeito a ambos, para fazer crer que, no plano da racionalidade jurídica, nada que é do comportamento humano escapa ao controle do seu regramento, seja para prescrever ou punir condutas.

O discurso jus naturalista, conforme o autor, estabelece direitos naturais de caráter universal e preconiza o método racional de dedução das ideias verdadeiras. Tal discurso compôs o projeto político burguês de legitimação da tomada de poder do Estado. O positivismo jurídico, por sua vez, por mais que não recorra a elementos metafísicos (“natureza humana”, por exemplo), propõe a cidadania como pacto estabelecido entre sujeitos livres, iguais e também racionais. A intenção propagada, em certo território estatal, é a legitimação de direitos, pleno exercício das ações políticas e regulação jurídico-estatal do comportamento humano.

Oliveira (2010, p.288) lembra que foi a partir da construção de uma entidade abstrata como “sujeito do Direito”, constituída por noções de igualdade e consciência (presente em ambos os discursos acima citados), que a subjetividade foi inserida no discurso jurídico, construção discursiva que serve a quem institui práticas políticas que necessitam de certa homogeneidade dos indivíduos, a fim de dissolvê-los numa ficção totalitária de igualdade formal que nega as diferenças e alteridades […], escamoteando as prescrições normativas de caráter coercitivo e moral no discurso da igualdade e universalidade dos dispositivos jurídicos assimilados pela ótica da cidadania e soberania política.

De maneira mais “aplicada”, podem ser assim resumidas as enunciações nas quais o enunciado do Direito concebe o sujeito como universal e consciente:

O sujeito de que o direito nos fala é o sujeito de direitos e de deveres. Ele tem sua descrição dada pela via da instância do eu, imaginária, consciente, moldado segundo o ordenamento jurídico vigente. É a pessoa que via de regra é capaz, tem pleno gozo de suas faculdades mentais, é consciente, entende o caráter criminoso ou não de seus atos e é capaz de determinar-se de acordo com este entendimento (Silva, 2002, p.14).

Pode-se ver que já neste momento se inicia a contribuições psicanalíticas. O autor explica que esse sujeito é proposto como normatizável (e, antes disso, regulável) e passível de proteção. Esta proteção se daria pela oferta, em nome do cumprimento de modelos de ações genéricas e idealizadas, de significantes mestres que o representariam e que dariam conta do seu gozo. Uma clara demonstração disso seria a ideia de “o que não está nos autos, não está no mundo”, que impõe ao sujeito como condição de sua existência a adequação à listagem de significantes mestres, sendo as leis, doutrinas e jurisprudências os significantes de saber por excelência.

Outra seria a imensidão de legislações, tentando tudo prever, reprimir o contingente, regular o factível, mantendo no Outro do Direito um saber inesgotável. O Direito tenta “migrar o gozo para os significantes do saber, não do saber do gozo, mas do saber que, paradoxalmente, dele não quer saber, pretendendo regulá-lo com leis escritas, ignorando o impossível do gozo. Quando não é isto que ocorre, dá-se a foraclusão[1] da questão” (Silva, 2002, p.15).

Interessante é a concepção de verdade associada a esta redução do sujeito a sua consciência. Para o autor, o ordenamento jurídico reduz a vida à ordem ficcional dos autos, e desconsidera que, apesar de sempre ter estrutura de ficção, a vida nunca é plena. Assim, nunca é toda dita. É sempre, de alguma maneira, mal-dita.

Por fim, fundamental apresentar o questionamento de Silva (2002, p.16) a propósito do próprio estatuto de uma ciência como o Direito, que aborda o sujeito como objeto previsível e controlável, e que foraclui tanto a divisão do sujeito (que é efeito de sua alienação e separação do Outro) como o gozo que não encontra sentido algum (inclusive na letra da lei). Para o autor, assim se distancia o direito da dimensão ética, e o aproxima de uma moral ou ideologia “onde se supõe um saber sem furo, do que seria bom para todos. Está aí a própria ética dos bens, em que o seu bem é o que assim é pensado para você, tendo como paradigma o bem do Mestre, o do detentor do poder”.

Associada a isto, conforme ele também lembra, tem-se a ideologia utilitarista, em que se busca o maior número de felizes, sendo a felicidade aqui compreendida, a partir de uma lógica de consumo de bens. Daí, como exemplos citados, tem-se as desresponsabilizações dos consumidores e toxicômanos, que sempre são inocentes ou doentes.

O inconsciente retirando o sujeito de si: algo sobre sujeito da Psicanálise

Segundo Birman (1994), o anúncio do sujeito do inconsciente como realizado pela Psicanálise abalou precisamente os pilares kantianos e cartesianos das filosofias da consciência tão inerentes à modernidade ocidental. Isto se deu por duas vias:

1) a proposta de que o psiquismo não se reduz à consciência (aqui entendida como razão) e, antes disso, de que o psiquismo não é uma unicidade;

2) a concepção de que o sujeito humano não pode ser dissociado entre corpo e espírito. O corpo, aliás, aqui é entendido como a presença que, uma vez no sujeito, legitima-o como sujeito. O ser só é humano porque é habitado [pelo corpo].

Não menos significativo é questionamento, também protagonizado pela Psicanálise, da abordagem a-histórica (porque essencialista) do sujeito típica do modelo de cientificidade não apenas majoritário mas também definidor da modernidade ocidental. Está-se falando da rígida separação entre exterior e interior; ou, em outras palavras, entre o mundo das coisas e o mundo do sujeito, separação feita pelo mundo da causalidade mecânica. A distinção entre exterior e interior é associada ao princípio da causalidade, posto dividir, e também polarizar.

Esta discussão parece significativamente pertinente para demarcar o equívoco de algumas interpretações sobre a Psicanálise. Interpretações que, inclusive, são usadas por alguns que se põem a criticá-la. Refiro-me aqui, em particular, à ideia segundo a qual o inconsciente seria a sede de desejos egoístas.

Para a Psicanálise, a vida poderia ser definida como a tentativa de inscrição sempre conflituosa dos universos pulsional e simbólico no corpo. E tal inscrição dar-se-ia pelo olhar, toque e voz do Outro. Melhor dizendo: pelas diversas formas com que nos marca o discurso que nos antecede (Birman, 1994).

Nesta direção, a individualidade não estaria na interioridade/introspecção ou reflexão, mas no campo intersubjetivo onde se dá o discurso. Até porque a consciência não existe antes do encontro com o Outro, mas se constituiria a partir das demandas alheias, e o inconsciente, por seu lado, seria os registros da intersubjetividade e alteridade. Para Gusso (2011, p.48) não é possível “pensar a partir do exterior as categorias de sujeito e de cultura, uma vez que a constituição do sujeito implica uma relação estrutural com o Outro (representado pela cultura), sendo o sujeito radicalmente definido pela alteridade do campo social”.

Merece menção o fato de aqui se tratar da relação vertical, se assim se pode dizer, estabelecida pelo sujeito com aquilo que além de exterior o precede. De qualquer forma, mesmo a relação de ordem mais horizontal que o sujeito também estabelece com o exterior (com o outro, seu semelhante) também demonstra como o sujeito não apenas estrutura, mas é estruturado pelo exterior. Assinalam Souza & Moreira (2014) que, ao lado da compreensão da tragicidade da problemática edípica e do desamparo como uma marca irreparável (problematizado a partir do conceito de angústia e do signo da pulsão de morte), os textos freudianos ativeram-se à inevitabilidade e imprescindibilidade do outro na relação com o eu. Se o Outro se faz presente na constituição do sujeito desde o primeiro momento, o desamparo humano sinaliza a importância da presença do outro como estrutura estruturante[2].

O sujeito para a Psicanálise, como explica Silva (2002), surge no intervalo da cadeia de significantes. Naquele espaço que um remete a outro. Para tanto, ele inicialmente se alienaria ao Outro até poder se separar. Sua condição (para não se utilizar as modernas expressões “natureza, “essência”) seria a de divisão, a de (des)ser. Portanto, o sujeito não apenas é dado de início, como também não é entificável. “Sua categoria é de suposto, é de desaparecimento, divisão entre vir e ir, instantaneamente, deixada sua notícia pelas formações inconscientes, pelos lapsos, pelos atos falhos, pelos sintomas, pelos sonhos” (Silva, 2002, p.13-14).

Reprovar o mal não implica no dever de ser bom

Também é necessário dizer que nenhuma destas estruturantes modalidades de relação com o outro, como representante do Outro, é simétrica. Ainda assim, sabe-se que a materialização do mútuo reconhecimento é uma conquista posterior, posto que as relações de reciprocidade, conforme explica Birman (2003), dão-se a partir da apresentação do sujeito à lei e resolução do complexo edípico.

Daí que, para a Psicanálise, a expectativa do Direito de que o humano viva harmoniosamente com o outro, ainda que condizente com sua proposta de que a civilização se sustente a partir da limitação dessa dificuldade em conviver com a diferença, não pode recair numa espécie de “elogio ao altruísmo”. Ou, talvez mais honestamente falando, numa espécie de concepção cristã da relação entre o humano e o outro. Uma concepção normativa e não analítica da relação que o humano estabelece com o outro. Uma concepção sobre o dever viver com o outro, e não uma concepção de como ele pode viver com o outro.

A respeito, Gusso (2011, p.49) cita o “homem médio” do Direito Penal, presente nas definições jurídico-legais próprias das filosofias da consciência: um homem que, além de livre e racional, seria igual. E, sendo igual, a relação intersubjetiva seria, por essência, harmoniosa. “Esse homem ‘idealizado’ pelo Direito é definido pela ‘lei’ social como ‘super-responsável’ e obediente a um princípio de ‘culpação’, servindo bem à tentativa de encobrimento da violência predatória contra outros sujeitos” (Gusso, 2001, p.49).

Assim, a Psicanálise parece convocar os operadores do Direito a uma suportabilidade da dificuldade do sujeito perante a relação intersubjetiva, o que não implica, evidentemente, não responder às manifestações humanas que ameaçam a civilização. A questão está na diferença entre uma resposta jurídica na qual a reprovação se fundamenta numa concepção ideal/cristã/moderna do humano, e a função do Direito de constituição/manutenção de uma civilização.

Para além de conceber a possibilidade de que na relação com o outro o humano seja mau e habitado pelo mal, a Psicanálise concebe que a responsabilidade pelo quê o sujeito é e faz transcende-o. A responsabilidade do sujeito sempre existe, mas os méritos e fracassos civilizatórios são compartilhados. E aqui se chega à outra questão, associada às problematizações dos conceitos de livre-arbítrio e responsabilidade: a culpa. O sujeito, na relação com o outro, sempre age apenas como pode agir. E suas possibilidades de existência são aquelas em que ele existe. No entanto, o Direito parece ater-se a como o sujeito deveria agir e existir.

Para além do sujeito consciente, de vontade autônoma, expõe Fagúndez (2006, p.250), o sujeito do Direito é o mesmo da ciência: um sujeito ético. E, assim sendo, chama para si a responsabilidade não apenas por seus atos, mas por tudo o que lhe acomete. “É o sujeito positivista, implicado num sistema de ordem, dentro de um modelo normativo lógico, que determina os seus passos e que pune as condutas consideradas negativas”. Mas o autor faz a seguinte ressalva:

Muito embora se faça referência ao sujeito kantiano, dotado de autonomia da vontade, o que se vislumbra é alguém dependente, subjugado ao “imperativo categórico”, protegido pelo Estado e amparado por Deus. Enfim, um sujeito irresponsavelmente posto na vida.

[O sujeito da modernidade] é uma peça de uma engrenagem e que imagina ser Deus. É um homem que busca em todo lugar e que não busca dentro de si mesmo.

Oscilando entre o bem e o mal, o sujeito imagina obter a salvação, muito embora seja ignorado pelo Deus da modernidade (Fagúndez, 2006, p.249)

O estatuto da responsabilidade para a Psicanálise, portanto, é de outra ordem que não a da culpabilização. “(...) sujeito e responsabilidade se equivalem, para a Psicanálise – um termo não pode ser concebido sem o outro. Considera-se, assim, a responsabilidade no sentido de uma resposta, que é sempre de um sujeito” (Salum, 2012, p.169). Nesta direção, Reymundo (2002) explica que responsabilizar alguém é convocar o sujeito a comparecer como responsável. E ele é responsável pelos outros, pela comunidade, pelo seu desejo e gozo.

Cabe ainda dizer que somente sendo responsável o sujeito assume uma posição ética – e esta, conforme lembra o autor apoiado no ensino de Lacan, seria o freio ao gozo. O limite que o sujeito impõe-se para se libertar do desprazer e mal-estar. A responsabilidade aqui é entendida como resposta a ser dada com fins de preservação e defesa do estatuto de ser falante do sujeito. “Quer dizer, em suma, que é a resposta a ser dada para não sucumbir ao imperativo de gozo do supereu, ou se quiserem, para não afundar no silêncio irreversível, sob o peso mortificante do ideal nos seus efeitos irrealizantes” (Reymundo, 2002, p.110-111).

Portanto, como nos explica Oliveira (2010), a responsabilidade para a Psicanálise não é aquela do cumprimento das ordens e dos deveres impostos a partir do Outro, ou da racionalidade moderna ocidental de um eu cognoscente e senhor de si. “Responsabilidade” aqui se refere à apropriação que faz dos significantes fornecidos pelo Outro. É a autoria do sujeito na separação que faz em relação ao desejo do Outro.

Esta concepção de responsabilidade que se aproxima mais de uma responsabilização que de uma culpabilização também questiona as noções de livre-arbítrio e causalidade linear. Assim, o sujeito deve ser escutado no que ele possui de singular, ainda que com isto não se compreenda que ele é essencializado e/ou interiorizado, bem como que ele poderia ter agido de maneira diversa daquela que agiu.

Souza & Moreira (2014, p.197), nesta direção, propõem que a Psicanálise contribui com os espaços do jurídico, da regulação social, porque através da escuta sinalizar-se-ia a responsabilização subjetiva. “É a partir da infração que o sujeito pode, no encontro com o profissional que irá acompanhá-lo, enfrentar seu abandono em um ato, não de infração, mas de subjetivação, que implica a construção de novas saídas”.

Ainda que a passagem acima se refira a sujeitos adolescentes, compreende-se que a proposta de interação entre Psicanálise e Direito, nos termos expressos, pode ser dirigida a sujeitos adultos também. E, ainda mais, mesmo se as autoras se refiram à atuação de um profissional que não seja operador do Direito na escuta dos sujeitos, pode-se questionar se mesmo a resposta propriamente jurídica não pode ter um estatuto de subjetivação, e não apenas de punição. Nesta direção, pode-se retomar o que elas dizem:

Muito embora essas medidas tenham um caráter socioeducativo e ao mesmo tempo sancionatório, sua operacionalização pode se dar a partir de ações embasadas na concepção de que o adolescente é um sujeito único e singular. É por meio da escuta de sua história de vida que as intervenções de âmbito universal, podem ter um alcance frente à particularidade de cada caso (Souza; Moreira, 2014, p.197)

Sobre a função da lei, aliás, Birman (2003) diz que seria, através de sua inscrição simbólica na subjetividade (supereu[3]), não apenas limitar a satisfação pulsional, mas fazer transitar o destino pulsional entre o polo alteritário (ideal de eu[4]) e narcísico (eu ideal[5]). A partir do delineamento das regras de permissão, o sujeito reconheceria a imprescindibilidade do outro, inclusive para a realização do próprio desejo. Daí que a concepção de altruísmo parte de um pilar narcísico. Seria assim, na busca de possibilidades de satisfação, sempre parcial, que se forma o sujeito, sempre do desejo.

Para Oliveira (2010), a Psicanálise lacaniana denuncia justamente as receitas de felicidade e serviços de bens que se propõem a garantir ao sujeito o encontro com o seu bem. Há ainda um alerta para os significantes que ocupam o lugar de mandatário do Outro que barra, por meio da promessa de satisfação, o acesso ao campo do desejo radical. Ou o acesso ao campo do inominável, e por isso conflituoso e doído, do desejo.

O autor lembra que, para Lacan, o Bem Supremo é uma invenção filosófica e teológica do Ocidente, nominado de diversas maneiras desde Aristóteles (Deus, a razão, as leis, a cidade, a natureza humana, o logos, etc.). Tal invenção erigiu, ou erige, um ideal humano ao qual o sujeito deve atingir ou respeitar. E aqui surge uma outra construção filosófica inevitavelmente associada: a da vontade própria e consciente. Só por meio dela o sujeito elevaria imaginariamente algum objeto de prazer de modo a supostamente subsidiar o alcance de sua felicidade/completude libidinal.

Sabe-se que esta compreensão é deveras estranha ao Direito, posto que este discurso apresenta significativa dificuldade em alcançar a concepção de “inconsciente” própria à Psicanálise. Refere-se ao fato de não prever a possibilidade de um sujeito ser movido também por forças inconscientes, que têm suas leis próprias de funcionamento, sempre de algum modo em choque com a consciência, com a qual estabelece relações de compromisso, jamais de conciliação. Faz-se referência apenas a uma suposta ação não movida pelo consciente, traduzindo-se pelo “desconhecimento”[6] – portanto, permanecendo tudo centralizado na consciência.

Talvez daí advenha a dificuldade de se escutar sujeitos que cometeram atos cruéis, com motivação torpe, de maneira premeditada e sem oferecer condições de defesa à vítima. Escutando-os, ou sabendo suas histórias, corre-se o risco de constatar que não são loucos. Logo, tinham conhecimento da ilicitude da ação. E, ao mesmo tempo, se corre o risco de perceber que esses “normais” não poderiam ter se conduzido de outro modo. Então, que todos nós só podemos nos conduzir pela maneira com que nos conduzimos.

É necessário, além de admitir que se é movido pelo inconsciente, reconhecer que disso só se pode ser responsável. Não se pode ser culpado, porque não se tem livre-arbítrio perante o próprio inconsciente. Até porque em nosso inconsciente encontram-se muitas vozes, e não apenas a nossa dizendo o que/como ouviu. Em outros termos, até porque a autoria de nosso inconsciente não é apenas nossa.

Parece que alguns operadores do Direito, no anseio de culpabilizar, desresponsabiliza, justamente por não suportarem escutar o que o outro tem a dizer de si. Reprime-se. E se reprime tanto mais quanto mais se precisar acreditar que esse outro é diferente de si.

Na tentativa de se manter cego, surdo, e incapaz de se provar, cheirar e tocar, estabelece-se concepções generalizantes do que seja o humano. Não se admite a singularidade, como maneira de se manter excluída de si a própria singularidade. Normatiza-se, como forma de só detectar as repugnâncias alheias.

Enfim, talvez a dificuldade de alguns operadores do Direito em escutar o “pavoroso” decorra da insuportabilidade de admitir que se é o que se odeia. A estes, que acham feio o que é espelho, resta quebrar tudo/todos que refletem sua imagem. Bela tentativa de reduzir num caco seus “preso-arbítrios”, seus “pensamentos cegos”. Bela tentativa de acabarem com suas trincas.


Notas e Referências:

[1] Aguiar e Gomes, em artigo inédito intitulado “’Então você também quis?’ – considerações psicanalíticas a propósito de crimes sexuais contra adolescentes”, tecem algumas ponderações sobre o francês “forclusion”. Lembram que n dicionário Petit Robert (1989, p.806) encontra-se, além de um sentido figurado na didática “exclusion forcée; impossibilité d'entrer, de participer” (exclusão forçada; impossibilidade de entrar, de participar), outros dois sentidos. Tais sentidos são, aliás, um próprio ao Direito (“Déchéance d'un droit non exercé dans les délais prescrits” - perda de um direito não exercido nos prazos determinados -) e outro à Psicanálise (“Mécanisme psychique par lequel des représentations insupportables sont rejetées avant même d'être intégrées à l'inconscient du sujet” - mecanismo psíquico pelo qual representações insuportáveis são rejeitadas antes mesmo de ser integradas no inconsciente do sujeito -). Aguiar e Gomes também mencionam que no dicionário Aurélio (1986, p.1380) também há registro do termo “preclusão”, e ali como “Perda de uma determinada faculdade processual civil, ou pelo não exercício dela na ordem legal, ou por haver-se realizado uma atividade incompatível com esse exercício, ou ainda por já ter sido ela validamente exercitada”.

A observação dos autores parte da lembrança de que, no Direito, preclusão é a palavra em português correspondente à francesa forclusion. Quanto à opção pelo neologismo “foraclusão” nas produções psicanalíticas, decorreria de uma desconsideração pelos tradutores da opção do próprio definidor da noção (Lacan) pelo termo jurídico. Ademais, ter-se-ia desrespeitado a tradição psicanalítica, iniciada já em Freud, de só formular um conceito mediante empréstimos de outras disciplinas caso seja viável e útil à construção da Psicanálise.

[2] Num texto como o presente, que pretende fazer dialogar Direito e Psicanálise, cabe lembrar que a partir desta discussão os autores apontam como centrais, na abordagem do desamparo, as temáticas da alteridade, do reconhecimento e da responsabilidade.

[3] “Uma das instâncias da personalidade tal como Freud a descreveu no quadro da sua segunda teoria do aparelho psíquico: o seu papel é assimilável ao de um juiz ou de um censor relativamente ao ego. Freud vê na consciência moral, na auto-boservação, na formação de ideais, funções do superego.

Classicamente, o superego é definido como o herdeiro do complexo de Édipo; constitui-se por interiorização das exigências e das interdições parentais.

Certos psicanalistas recuam para mais cedo a formação do superego, vendo esta instância em ação desde as fases pré-edípicas (Melanie Klein) ou pelo menos procurando comportamentos e mecanismos psicológicos muito precoces que seriam precursores do superego (Glover, Spitz, por exemplo)” (Laplanche; Pontalis, 1998, p.497-498).

[4] “Expressão utilizada por Freud no quadro da sua segunda teoria do aparelho psíquico. Instância da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos. Enquanto instância diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-se” (Laplanche; Pontalis, 1998, p.222).

[5] “Formação intrapsíquica que certos autores, diferenciando-a do ideal do ego, definem como um ideal narcísico de onipotência forjado a partir do modelo do narcisismo infantil” (Laplanche; Pontalis, 1998, p.139).

[6] Não é de se desconsiderar a associação entre saber e conhecer, tão própria em áreas de conhecimento como o Direito contemporâneo de origem romana.

BIRMAN, Joel. Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. _____. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. FAGÚNDEZ, Paulo Roney Ávila. A psicanálise, a ciência e o sujeito do direito. Seqüência, n.52, p. 243-256, jul. 2006. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. GUSSO, Luana de Carvalho Silva. O sujeito de direito entre a transcendência e o desejo: uma leitura psicanalítica de poder e resistência. Revista de Direito da Univille - Universidade da Região de Joinville, Joinville, v.1, n.1, p. 44 a 51, dez.2011. LAPLANCHE, Jean; Pontalis, Jean-Bertrand. Vocabulário de psicanálise. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. OLIVEIRA, Assis da Costa. Sujeito, Direito e desejo: aproximação entre Direito e Psicanálise. Captura Críptica: direito, política, atualidade. Florianópolis, n.3., v.1., jul./dez. 2010. P.285-322. REY, A.; REY-DEBOVE (dir.). Dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française (Le Petit Robert 1). Paris: Dictionnaires Le Robert, 1990. REYMUNDO, Oscar. Psicanálise e segregação. In: PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi (Org.). Legalidade e subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p.105-113. SALUM, M. J. G. O adolescente, o ECA e a responsabilidade. In Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade (6), 162-176, 2012. SILVA, Cyro Marcos da. Do direito ao desejo: subjetividade e legalidade. In: PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi (Org.). Legalidade e subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p.13-19.

SOUZA, Juliana Marcondes Pedrosa de; MOREIRA, Jacqueline de Oliveira. Psicanálise e Direito: escutar o sujeito no âmbito das medidas socioeducativas. Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 182-200, 2014. Recuperado em 14 jun. 2013, de <http://periodicos.uniban.br/index.php?journal=RBAC&page=article&op=view&path%5B%5D=297path%5B%5D=236>


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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  Facebook (aqui)                                                                                                                                                                                                                                                                                                


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