Por Samuel Silva - 26/07/2015
"Eu não tenho um carcereiro dentro de min e quem o tiver arranje um jeito de aboli-lo em si próprio. E só há um jeito de abolir um carcereiro dentro de você: é abolindo o castigo. […] O Louk Hulsman, um abolicionista que eu gosto muito, dizia que o abolicionismo penal é saudável porque ele começa em você. É fácil você falar do castigo aplicado sobre os outros. O duro é você abolir o castigo dentro de você.”
Edson Passetti
Você que é contra a redução, possivelmente tem pelo menos um conhecimento mínimo sobre o sistema penal:
- suspeita que ele é seletivo, atuando apenas sobre alguns crimes (por exemplo, quase 3/4 dos presos em prisões masculinas foram presos por tráfico de drogas, furto e roubo) atingindo mais intensamente os grupos mais vulneráveis da sociedade, que se conformam com o estereótipo criminal do país: pobre, negro, da periferia, entre outras minorias sociais;
- provavelmente não acredita que o cárcere brasileiro sirva muito mais do que para infligir um sofrimento estéril, símbolo da cultura punitiva, estando longe de qualquer característica ''ressocializadora'';
- deve duvidar que o encarceramento possua caráter preventivo pessoal (afinal, qualquer pessoa deve se deteriorar na prisão e sair pior), e preventivo geral (se quanto mais se expandisse o sistema penal menos crimes se cometessem, o Brasil estaria entre as sociedades mais pacíficas do mundo, não é?)
Em suma, você que é contra a redução clama que ela não é a solução para o problema da violência em nosso país. Você refuta a tese de que a expansão do sistema penal terá caráter protetor da sociedade. Você afirma que é ingênuo dividir a sociedade de forma maniqueísta entre cidadãos de bem e bandidos - sabe que o mundo é mais complexo, que todas as pessoas cometem infrações à lei praticamente diariamente: a imagem de nobres vítimas e maléficos agressores é muito simplista[1].
Mas você que é contra a redução, é a favor de prender homofóbicos? De punir estupradores e feminicidas? De enjaular racistas? Fundamentalistas, CEOs, políticos corruptos entre outros grupos de elite também teriam seu lugar? Sua solução para a seletividade penal seria uma democracia penal? Em que todas classes, raças e gêneros fossem igualmente massacrados? Ou mais que isso, seria uma inversão punitiva, onde só opressores, privilegiados e VIPs terão como morada o cárcere?
Eu tenho algumas perguntas para você que é contra a redução, mas a favor da criminalização de opressões e/ou de VIPs:
Como você espera convencer alguém que é a favor da redução para proteger pessoas de bem, prevenir crimes, punir criminosos, reduzir a impunidade do que ela considera socialmente intolerável (tráfico de drogas, sequestro, latrocínios e etc.) a partir do sistema penal se você também argumenta proteger minorias, prevenir opressões, punir opressores e reduzir a impunidade do que você considera socialmente intolerável (LGBTfobia, sexismo, fundamentalismo e etc.) a partir do sistema penal?
Resumidamente, como se quer dizer em um momento que o sistema penal não protege direitos humanos, mas sim os viola, e em outro momento se afirmar que sim, o sistema penal existe e deve ser usado em "favor" de grupos oprimidos?
Apesar da semelhança entre a direita e a esquerda punitiva, é preciso pontuar que a esquerda costuma apoiar medidas preventivas junto às repressivas, enquanto a direita se contenta com apenas esta última. Além disso, claramente não há equivalência entre os grupos que se pretende defender e de quem se pretende defender. "Cidadãos de bem" costumam ser apenas componentes da família patriarcal, capitalista, heteronormativa, racista e eurocêntrica, enquanto grupos oprimidos são no geral vitimizados justamente por essas estruturas de poder.
Contudo, mesmo que em um primeiro caso se trate de se defender os de "cima" (que concentram poder social) contra os de "baixo" (que são mais socialmente vulneráveis) pelo sistema penal, no segundo caso ainda se fortalece o sistema penal visando proteger os de baixo contra os de cima. O problema mais ignorado aqui é que, sendo o sistema penal inerentemente seletivo, na prática, o que se alimentará na melhor das hipóteses é um fogo cruzado[2], em que oprimidos que também oprimem serão punidos, por exemplo: homem pobre machista e capacitista, negro LGBTfóbico e fundamentalista, mulher racista e elitista etc.. O vilão ideal da esquerda, o homem branco, cishet e rico continuará imune ao sistema penal que não se voltará contra seu criador senão apenas esporadicamente para se relegitimar enquanto mantém suas engrenagens seletivas e desumanizantes[3].
Assim sendo, como se pretende refutar a lógica punitiva para o caso de infrações de adolescentes enquanto nós, de esquerda, encampamos essa mesma lógica com tanto vigor? Ou, ainda, colocar a criminalização da homofobia como prioridade de uma campanha ''progressista'' e comemorar penas altíssimas para feminicídios, dois fenômenos muito presentes neste ano, assim como apoiar a proposta da redução, não se enquadra como punitivismo?
Existirá será um punitivismo do bem e um punitivismo do mal? Dividir a sociedade entre cidadãos de bem e bandidos é simplismo, mas a divisão entre Os Opressores e Os Oprimidos é adequada? É possível separar de fato os de "cima" dos de "baixo" em questão de poder, como se houvesse tal cisão nítida? E do que falamos quando falamos sobre poder? Poder econômico? Racial? De gênero? Sendo os indivíduos complexos e ambíguos, assim como as sociedades, não sabemos que pessoas que estão situadas em posições subalternas também exercem poder sobre outras? As opressões não são interseccionais? E o que é esse Poder? Algo que pessoas e grupos detém como se coisa fosse, ou se trata de um fenômeno relacional, um exercício de uns sobre outros? Quem escapa do poder?
Será que "a redução não é solução", mas a criminalização de opressões é?
O que é que se busca afinal ao se procurar a tutela do direito penal para um grupo específico face uma opressão - que é sempre sistêmica? Proteção, prevenção geral, prevenção individual? Todos mitos já há muito demonstrados pela Criminologia Crítica, sobretudo os abolicionistas, que não podem ser conquistados pelo poder punitivo. A Vontade de Punir, forma específica de exercer poder social, é a que resta como motivo legitimante. Isto pois, esta não pode ser desmentida como falsa ou ineficiente, pois independe dessas avaliações: basta atender o anseio de retribuição de danos que tal objetivo foi atingido. Anseio este comum aos que apoiam a redução.
Um dos problemas que eu sempre tento ressaltar é que o processo de criminalização é sempre individualizante, centrado no binômio crime e castigo e na relação Estado e Indivíduo. Isso quer dizer que por mais que um comportamento socialmente danoso seja profundamente arraigado por toda uma sociedade, como são as opressões - sempre estruturais e sistêmicas - o sistema penal sempre focará em punir alguns indivíduos selecionados para tal, funcionando como cortina de fumaça para os problemas sociais do qual a violência opressora é o sintoma, não a causa. Em outras palavras, o recorrer ao direito penal é investir na lógica de responsabilizar indivíduos, e não as estruturais sociais nas quais eles estão inseridas e foram socializados, como resposta à comportamentos socialmente danosos.
Ou seja, tudo que a tutela penal pode oferecer para grupos oprimidos é a punição de algumas pessoas pelos seus crimes. O sistema penal pode vez ou outra prender alguém por violências opressoras - feminicídios, estupros, injúrias raciais - mas ela nunca irá problematizar a natureza do sexismo e do racismo, nunca lidará com as causas desses fenômenos e, mais ainda, nunca fará a autocrítica necessária. Afinal, o que há de mais racista no Brasil do que o Sistema Penal? O que há, simultaneamente, de mais hipócrita do que a criminalização do racismo em nossa sociedade, em que as instituições encarregadas desse processo - as Polícias, o Judiciário e as Prisões - são as mais estruturalmente racistas?
Assim, meu mais forte argumento para não ser a favor de criminalização de opressões (e de qualquer coisa) é que ela é um grande cortina de fumaça que nos impede de buscar meios efetivos de emancipação social real, de resolver nossos problemas ao invés de selecionar bodes expiatórios para eles. As criminalizações têm tanto apoio pois se mostram como soluções fáceis e rápidas para problemas que, queiramos ignorar ou não, são muito mais complexos e demandam muito mais esforços, militância e políticas públicas para começarem a se resolverem. Criminalizar comportamentos socialmente danosos é tão estéril quanto enxugar gelo, só que a água desse gelo é o sangue de terceiros.
Eu tenho mais uma pergunta para você que é contra a redução mas a favor de criminalizar opressões:
Que posição vocês acham adequada para infrações graves cometidas por adolescentes, como espancamentos LGBTfóbicos, estupros e feminicídios, racismo entre outros comportamentos que qualquer pessoa de esquerda considera socialmente danoso e/ou intolerável?
Se nestes casos você defende o punitivismo típico das propostas e discursos a favor da criminalização das opressões, você não é contra a redução.
É, possivelmente, alguém a favor de uma "redução especial da maioridade" para apenas alguns crimes (neste caso, especificamente os de opressão), de certa forma análoga com essa aprovada recentemente no Congresso Nacional (no caso, especificamente para crimes hediondos). A semelhança é tal que crimes de opressão podem ser crimes hediondos - como é o caso do estupro. A punição severa do agressor, neste caso, é algo que provavelmente terá apoio entre ambos espectros políticos, progressistas e conservadores. E como todo ímpeto punitivo, terá consequências[4].
É preciso entender que o que Maria Lúcia Karam denominou de Esquerda Punitiva[5] é uma realidade: Esquerda e Direita podem sim compartilhar do punitivismo como reação social em busca de proteger os grupos e valores que defendem em detrimento daqueles que os ameaça.
Bem, é óbvio que as pessoas não começam a praticar comportamentos opressores e violentos apenas depois dos 18 anos: adolescentes podem, claramente, realizar atos terríveis. A pessoa que é efetivamente contra a redução provavelmente irá defender o Estatuto da Criança e do Adolescente e sua real efetivação como resposta para as opressões tornadas crimes (para adolescentes, atos infracionais). Também defenderá a responsabilização de quem cometeu os atos violentos e opressores, mas focará em um viés muito menos punitivo do que o reservado para adultos; defenderá que se dê uma nova chance à pessoa, focará em um viés de ressocialização que sabe ser inexistente no sistema prisional de adultos e estruturalmente deficiente nos centros socioeducativos. Enfim, utilizará uma lógica bastante diferente do que a utilizada nos momentos de pedir criminalizações e punições de opressores (adultos).
A questão aqui é: por que isso acontece? Só porque alguns têm menos de 18 anos de idade? Quando e por quê foi definido que a partir de 18 anos é legítimo que pessoas que cometam atos socialmente danosos sejam torturadas no cárcere? Por quê o encarceramento de um adolescente escandaliza tanto, mobiliza tanta gente do espectro de esquerda, enquanto o cárcere de adultos não é apenas ignorado pela vasta maioria: é inclusive estimulado pelos programas punitivistas de esquerda.
É por causa que adolescentes estão em fase de formação física e psicológica e por isso são mais vulneráveis? Mas essa maturação não é atingida, dizem algumas pesquisas mais recentes, apenas com 25 anos[6]? Não possuímos inclusive um estatuto que aponta que, na verdade, a juventude vai até 29 anos[7]? Não sabemos também que, estatisticamente, é justamente essa a população punidas no cárcere - jovens de 18 a 29 anos? Afinal, por mais característico que seja da adolescência e juventude a imaturidade e impulsividade, como é que inesperadamente este conceito se tornou o critério de quem pode ou não apodrecer no inferno carcerário brasileiro? Por que aceitamos nivelar esse debate por baixo? Por quê naturalizamos a existência do Sistema de Justiça Criminal tal qual algumas sociedades naturalizaram a Inquisição e a Escravidão?
Você que é contra o inferno para os adolescentes, está no caminho de um mundo mais livre e justo, mas a questão aqui é: você também é contra o inferno para adultos?
Última reflexão proposta para quem é contra a redução: você já aboliu o carcereiro dentro de você
Apesar do tom um tanto duro deste texto, claramente apoio toda a mobilização contra a redução da maioridade penal, tendo como intuito momentâneo tentar incentivar a reflexão da questão punitivista para além da problemática da adolescência, tentando mostrar também quão simplista é realizarmos esse debate pensando mais a convenção dos 18 e 16 anos do que do sistema penal como um todo.
Mais do que isso talvez, a ideia é problematizar a coerência interna da esquerda quando o tema envolve o sistema penal. Muitas pessoas estão crentes que "redução não é solução", frase que se tornou símbolo da campanha, contudo, quantos de nós experimentamos a nossa capacidade de responder problemas sociais sem o aparato penal? Quantos de nós reviramos as estruturas lógicas e semânticas utilizadas na hora de criticar a solução penal, vendo suas semelhanças com as utilizadas na hora de defender a solução penal[8]?
No fim das contas, a esquerda que é contra a redução já aboliu o carcereiro dentro dela?
Esta esquerda quer e está preparada para lidar de forma abolicionista com os atos socialmente danosos de adolescentes? Ou está acomodada com a existência de centros socioeducativos que foram construídos e funcionam como prisões para criminosos mirins? Pior do que isso, nessa esquerda contra a redução convive uma que aponta como alternativa o maior de tempo de internação de jovens (ainda pagando de progressista humanista)
Talvez a resposta seja de que a esquerda não quer nem está preparada para abolir o castigo e a sociedade do controle da qual a punição estatal é senão um fragmento, tal qual a direita que brada pela redução. Como lembrado por Edson Passetti, é claramente mais fácil criticar o punitivismo no outro, enquanto em nós continuamos propagando uma sanha de castigos contra aquilo que nos desagrada, ofende e violenta. Contudo, acredito ser esta a única de forma de ser efetivamente contra a redução da liberdade e da vida, colocadas debaixo do tapete prisional.
Todo preso é um preso político, pois toda criminalização nasce de uma demanda política e tem efeitos políticos. A existência da prisão, e sua naturalização por toda sociedade, nos espectros direitistas e esquerdistas, é uma das evidências da nossa incapacidade social de gerir nossos próprios conflitos, apoiando o mecanismo mais utilizado e mais ineficiente de todos: a seleção de bodes expiatórios de nossos problemas sociais.
Notas e Referências:
[1] Abordei de forma mais extensa os pilares do sistema prisional e suas refutações, fazendo ligações com o tema da maioridade penal, anteriormente aqui: http://petpol.org/2015/03/25/nem-pra-menor-nem-pra-maior-prisao-e-a-forma-mais-cara-de-tornar-pessoas-piores/
[2] Sou grato por essa reflexão à Aline Passos, cujo texto fortemente recomendo http://revistarever.com/2014/01/23/criminalizacao-das-opressoes-a-que-estamos-sendo-levados-a-servir/
[3] Para a compreensão dessa problemática este texto é valioso: http://emporiododireito.com.br/impunidade-o-desservico-das-dicotomias-rasas-de-front-por-guilherme-moreira-pires-e-fernando-henrique-cardoso/
[4] Triste exemplo da consequência lógica da criminalização das opressões: mais violência. Nesse caso, o adolescente que estuprou foi assassinado sob custódia do Estado. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/07/1656956-jovem-que-participou-de-estupro-em-piaui-e-morto-por-colegas-apos-delacao.shtml?cmpid=fb-uolnot
[5] Conceito do texto célebre da abolicionista Maria Lúcia Karam http://emporiododireito.com.br/a-esquerda-punitiva-por-maria-lucia-karam/
[6] http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/05/adolescencia-vai-ate-os-24-anos-dizem-medicos.html, http://www.bbc.co.uk/news/magazine-24173194
[7] http://juventude.gov.br/estatuto#.Va2jF_kSDIU
[8] Sobre a importância central da linguagem e sua relação com o abolicionismo, ver: http://emporiododireito.com.br/em-busca-de-linguagens-perdidas-quando-a-resposta-punitiva-e-um-cala-a-boca-por-patricia-cordeiro/
Samuel Silva é estudante de Ciência Política na UnB - Abolicionista, antiproibicionista e comunista.
Imagem Ilustrativa do Post: Children in Jail // Foto de: Filippo Cerulo // Sem alterações
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