Você precisa saber o que são Falsas Memórias

25/01/2016

Por Gustavo Noronha de Ávila e Alexandre Morais da Rosa - 25/01/2016

O fenômeno das falsas memórias deixou de ser uma novidade. Boa parte dos juristas que se atualizaram sabem que a memória não é um filme, nem muito menos uma fotografia do passado. As pesquisas com neurociência destruíram essa crença infantil, ingênua e sedutora. Sabe-se que a formação de memórias é dinâmica e depende de muitas variáveis.

Em uma sociedade complexa, acelerada, veloz e de valores indeterminados, promover garantias é um desafio cada vez maior. Ainda que saibamos de suas limitações[1], ainda constituem instrumento democrático na defesa de liberdade.

A mesma sociedade que clama por mais pena, mais punições e mais Estado, paradoxalmente, é aquela que não quer presídios ao lado de sua casa. Da mesma forma, acredita-se que "ninguém vai preso", em que pese nossos presídios estejam em regra superlotados.

Em um contexto de cifras ocultas significativas, no qual a punição torna-se excepcional, criando certo abolicionismo fático[2], o processo torna-se a arena de Kafka. A igualdade moderna não é mais do que uma promessa. Apesar de as cifras ocultas, especialmente para o delito de homicídio, serem consideradas altas em nosso país[3], é precisamente no ato formal da criminalização que uma segunda ruptura à pretensão de igualdade moderna[4] pode acontecer, pois nem todos serão punidos da mesma forma e é impossível imaginarmos tal possibilidade.

Quando do processo formal e sua (sempre) frustrada tentativa de reconstrução, teremos na excessiva confiança na memória um problema crucial.  Sabemos que a fenomenologia[5] identifica o quanto os referenciais são importantes no processo de descrição, porém da mesma forma sabemos que estas diferenças são inapreensíveis pela norma cujo conteúdo é invariavelmente universal.

Da (de)pendência da memória teremos duas provas fundamentais: o reconhecimento e a testemunhal. Ambas atuarão como auxiliares na tentativa de aproximação ao núcleo do fato ocorrido e que, por mais detalhistas sejam os atores do sistema penal, não volta mais.

Os estudos demonstram: nossa memória não funciona como um gravador de vídeo, que possa ser rebobinada e reprisada. Nossas memórias são cambiáveis e superpostas. Mais: Falsas Memórias das mais diversas têm sido implementadas. De abdução de aliens[6], beijos em sapos[7] a até mesmo um pedido de casamento feito a uma máquina de "latinhas" da Pepsi[8], não parece haver limite para as distorções.

Nossa memória trabalha com três processos básicos: aquisição, consolidação e evocação[9]. Entre essas fases podem surgir diversos fatores a alterar o que restará de lembranças. Não apenas dificuldades cognitivas podem influir no surgimento de falsas memórias, como também sugestões externas podem contribuir[10]. Aqui é preciso estar atento não apenas a distratores que atuam em nível micro como também os macro, dentre eles as mídias, incluídas aqui os compartilhamentos instantâneos das redes sociais[11].

Algumas ideias consolidadas no estudo da Psicologia do Testemunho podem auxiliar. Técnicas de entrevista cognitiva (EC), por exemplo, têm sido utilizadas com sucesso nos países do Reino Unido[12]. Tais conhecimentos serviram de base para a construção daquilo que conhecemos hoje como "Depoimento Especial" da criança, em situações possíveis de abuso sexual.  Ao procedimento existem diversas críticas[13] demonstrando que não é possível suplantar garantias em nome de novas técnicas.

Isso nos leva a um paradoxo: por um lado, entrevistas cognitivas podem melhorar a qualidade da informação, promovendo liberdades e, por outro, dependendo da forma como sejam conduzidas, violar garantias. Para além: as práticas judiciais podem estar absolutamente distantes daquilo recomendado na literatura mais atual sobre o tema. Quando pensamos na abertura de uma audiência de inquirição de testemunhas, normalmente o primeiro ato é protagonizado pelo Juiz, quando alerta sobre as penas previstas para o crime de falso testemunho. Começamos mal. Muito mal. Em um ambiente naturalmente opressor como os fóruns, tal aviso pode significar a necessidade inafastável de dizer algo. Ao custo de liberdades. Especialmente para não passar por mentiroso ou criminoso.

As pesquisas de Scoboria e Fisico[14] demonstraram que quando o entrevistador especifica a possibilidade de respostas do tipo "eu não sei" ou "não me lembro", a qualidade das informações trazidas tende a aumentar substancialmente.

Em uma extensa pesquisa[15], foi apontada uma maior eficácia do reconhecimento sequencial (suspeitos ao vivo ou por fotos mostrados de cada vez) e, também, que o “duplo cego” (policial nem testemunha sabem qual das pessoas é o suspeito) seria o mais recomendável, embora ainda com consideráveis chances de erro.

Um dos grandes objetivos da utilização da técnica da Entrevista Cognitiva (EC) é atenuar algumas das dez falhas mais comuns dos entrevistadores forenses: 1) não explicar o propósito da entrevista; 2) não explicar as regras básicas da sistemática da entrevista; 3) não estabelecer rapport (a empatia e confiança entre entrevistador e entrevistado); 4) não solicitar o relato livre; 5) basear-se em perguntas fechadas e não fazer perguntas abertas; 6) fazer perguntas sugestivas/confirmatórias; 7) não acompanhar o que a testemunha recém disse; 8) não permitir pausas; 9) interromper a testemunha, quando ela está falando; e 10) não fazer o fechamento da entrevista [16].

Vale a pena destacar outro ponto importante para discussão relativa ao artigo 212 do Código de Processo Penal. A partir do momento em que são vedadas perguntas indutivas é possível que as partes atuem ativamente no sentido de evitar questionamentos fechados (“qual é a cor do cavalo branco de Napoleão?”[17]), aqueles onde a sugestionabilidade causadora de Falsas Memórias pode estar presente.

Muitas delas são medidas simples que, quando adotadas na prática, podem qualificar as informações trazidas, promovendo liberdades e diminuindo dores[18]. De qualquer forma, cada vez mais, precisamos superar a visão de que alguém é capaz de apreender “toda” a realidade e depois reproduzir em um depoimento judicial ou mesmo na Entrevista Cognitiva, justamente porque pensar assim é estar, pelo menos, um século atrasado. Precisamos nos atualizar urgentemente sob pena de cometermos as mesmas atrocidades já demonstradas no protagonismo da prova testemunhal não problematizada.


Notas e Referências

[1] Cf. ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[2] Cf. HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. 2. ed. Rio de Janeiro: LUAM, 1997.

[3] FERRAZ, Taís. A investigação de homicídios no Brasil. Disponível em: < http://www.cnmp.mp.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=1264:a-investigacao-de-homicidios-no-brasil&catid=9:destaques&Itemid=229 >. Acesso em: 15 maio 2014.

[4] GAUER, Ruth M. Chittó. A Fundação da Norma. Porto Alegre: Edipucrs, 2012, p. 168-169.

[5] Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. A fenomenologia da percepção. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[6] Cf. CLARK, Steven E.; LOFTUS, Elizabeth F. The Construction of Space Alien Abduction Memories. Psychiological Inquiry, v.  7, n. 2, p. 140-143, 1996.

[7]Cf. LOFTUS, Elizabeth F. Memory faults and fixes. Issues, p. 41-50, 2002.

[8] Cf. SEAMON, John G.; PHILBIN, Morgan M.; HARRISON, Liza G. Do you remember proposing marriage to the Pepsi machine? False recollections from a campus walk. Psychonomic bulletin & review, v. 13, n. 5, p. 752-756, 2006.

[9] Cf. TULVING, E. Elements of episodic memory. Boston: Oxford Clarendon Press, 1983.

[10] STEIN, Lilian Milnitsky; NEUFELD, Carmem Beatriz; BRUST, Priscila Goergen. Compreendendo o Fenômeno das Falsas Memórias. In:  STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas Memórias: Fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010, p. 23.

[11] Cf. ÁVILA, Gustavo Noronha de; RAMOS, Marcelo Buttelli. “Eu, Vigilante”: (Re)discutindo a Cultura Punitiva Contemporânea a Partir das Redes Sociais. Revista de Estudos Criminais, São Paulo: Síntese, n. 52, p. 145-162, Abr. 2014; BAUMAN, Zygmuth. Vigilância Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

[12] Cf. GEISELMAN, R. Edward et al. Eyewitness memory enhancement in the police interview: cognitive retrieval mnemonics versus hypnosis. Journal of Applied Psychology, v. 70, n. 2, p. 401, 1985.

[13] Cf. MORAIS DA ROSA, Alexandre. O depoimento sem dano e o advogado do diabo – A violência ‘Branda’ e o ‘Quadro Mental Paranóico’ (Cordero) no processo penal. In: POTTER, Luciane (Org.). Depoimento sem dano – Uma política criminal de redução de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 88-106.

[14] Cf. SCOBORIA, Alan; FISICO, Stephanie. Encouraging and clarifying “don't know” responses enhances interview quality. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 19, n. 1, p. 72, 2013.

[15] Cf. STEBLAY, Nancy K.; DYSART, Jennifer E.; WELLS, Gary L. Seventy-two tests of the sequential lineup superiority effect: A meta-analysis and policy discussion. Psychology, Public Policy, and Law, v. 17, n. 1, p. 99, 2011.

[16] FEIX, Leandro da Fonte; PERGHER, Giovanni Kuckartz. Memória em Julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 211.

[17] Ver aqui: http://www.conjur.com.br/2014-fev-22/diario-classe-qual-cor-cavalo-branco-napoleao

[18] IRIGÔNHE, Márcia. Reconhecimento Pessoal e Falsas Memórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.


Gustavo Noronha de Ávila

Gustavo Noronha de Ávila é Doutor e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor do Mestrado em Direito e Graduação do Unicesumar. Professor de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Unicesumar. Também é docente nos cursos de especialização em Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estadual de Maringá, Unicesumar, Instituto Paranaense de Ensino, Unisinos e do Centro Universitário Ritter dos Reis (Porto Alegre/RS). Autor da obra “Falsas Memórias e Sistema Penal: A Prova Testemunhal em Xeque” (2013), e coautor, com Vera M. Guilherme, de “Abolicionismos Penais” (2015), ambas publicadas pela Editora Lumen Juris (RJ). Contato: gustavonoronhadeavila@gmail.com


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui             


Imagem Ilustrativa do Post: Prague: Charles Bridge in the Mist (Explored) // Foto de:  Roman Boed // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/romanboed/12033279054/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura