Você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina: ensaio sobre a revitalização dos fatos no direito

30/10/2015

Por Paulo Ferrareze Filho - 30/10/2015

Questões de direito e a atenção à coerência normativa, muito antes das questões de fato, são itens hegemônicos tanto na doutrina, quanto na jurisprudência brasileiras.

A redemocratização no Brasil fomentou a criação de normas garantidoras de certos direitos privados, como falar mal do governo, ver revistinhas pornográficas e fumar maconha com uma camiseta do Che.

As controvérsias fáticas dos acontecimentos narrados pelas partes, bem como o esforço em encontrar critérios de estabelecimento de uma coerência das narrativas feitas no processo, acabaram, nesses primeiros anos do século XXI, como outsiders dos discursos jurídicos que predominam tanto na academia quanto na jurisdição brasileira.

Para demonstrar a hegemonia das normas sobre os fatos no direito, basta observar as manifestações públicas de juristas sobre a Lava-Jato, ou melhor: o Complexo Lava-Jato. Afinal – e para justificar o adjetivo sindrômico “Complexo” – com quantos vieses fáticos se pode narrar tudo que se disse e ainda há por dizer nos emaranhados narrativos da Lava-Jato? Das acusações às defesas, passando pelas narrativas do inquérito às delações; incontáveis contradições, desajustes, incoerências, lacunas narrativas, espaços silentes,  por certo, vêm formando o caudaloso discurso sobre os fatos que, perdidos para sempre, se convertem em discursos processuais.[1]

Se não houvesse hegemonia das normas sobre os fatos na teoria e na prática do direito, juristas discutiriam mais os fatos do que a constitucionalidade do instituto da delação premiada. Textos, artigos, programas de TV, palestras: tudo isso dando atenção quase que integral para problemas normativo- constitucionais da delação premiada. Além de todo o lobby político que, em tese, não entra nos limites do processo...

A preponderância do viés normativo sobre o fático começa nas faculdades de direito. A grade curricular e o recorde de vendas dos Vade Mecum`s – mesmo com a invasão de celulares e notebooks nas salas de aula – demonstram a prevalência de um ensino jurídico voltado para a compreensão da estrutura de normas.

Os fatos são apêndices, são o exemplo usado hipoteticamente para fornecer meios de compreender o que a estrutura normativa, enquanto teoria, não é capaz de desvelar.

A hipótese normativa é uma promessa de sentido dos fatos que esteriliza a busca de critérios para a resolução das controvérsias fáticas produzidas nos variados relatos processuais.

Assim é que, no Brasil, a análise das controvérsias fáticas segue, depois de mais de 25 anos da Constituição, sendo feita através da norma e não das hipóteses narrativas elaboradas em cada processo. É assim que acaba por se observar uma construção sempre normativa do fato, preterindo-se uma análise narrativista deles.[2]

É diante dessa carência que José Calvo, teórico e estudioso das intersecções entre Direito e Literatura, recupera a preocupação teórica e prática dos fatos no processo e desenvolve o que, entre nós, já se conhece como Teoria Narrativista do Direito.

Em linhas gerais, o intento visa fornecer elementos capazes de embasar a decisão judicial a partir de critérios de resolução das controvérsias fáticas. Ainda que muito resumidamente, esses critérios podem ser estabelecidos a partir de quatro questionamentos fundamentais: 1) quais fatos narrados no processo estão em desconformidade com a(s) prova(s) produzida(s)?; 2) Há narrativas consensuais no processo?; 3) Há fatos no processo que são notórios?; 4) Há fatos narrados que são irrelevantes para o deslinde do caso?

A partir dessa orientação, segundo Calvo, é possível analisar a índole narrativa dos relatos alegados, deixando de lado a ingenuidade de pensar o resultado probatório – muitas vezes recortado na decisão judicial – como realidade dos fatos.

Afinal, ainda é preciso problematizar, nas teorias discursivas e hermenêuticas do Direito, uma velha e conhecida frase de Nietzsche: “não há fatos, só interpretações”. E Calvo, como bom intérprete, parece ter entendido bem o recado de que a literatura, antes dos Vade Mecuns, nos instrumentaliza mais a interpretar a vida que os códigos tentam aprisionar naquele papel fino e vagabundo.


Notas e Referências:

[1] CALVO, José. El discurso de los hechos. Editorial Tecnos, Madrid, 1998.

[2] CALVO, José. La controversia factice. Contribución al studio de la quaestio facti desde una perspectiva narrativista del derecho. In: Implicación Derecho Literatura. Editorial Comares: Granada, 2008.


Sem título-22222

.

Paulo Ferrareze Filho é Doutorando em Direito (UFSC). Mestre em Direito (UNISINOS/RS). Professor Universitário. Advogado.

.


Imagem Ilustrativa do Post: Thinking about... // Foto de: Carlos Sauvageot // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/csauvageot/17653683723

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura