Você é gente?: Por uma discussão sobre a cultura do estupro

18/01/2016

 Por Maíra Marchi Gomes – 18/01/2016

No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas. Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara, envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros e tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.

Manoel de Barros

 

Aceitando o convite dos estimados Aline Gostinski e Thiago Minagé, tentarei esboçar algumas considerações sobre a linda coluna da semana passada[1]. E uso este adjetivo porque “lindeza”, para mim, é o atributo dos humanos que são espontâneos e pensam. No caso de animais e plantas, também uso o mesmo adjetivo, mas quando possuem outras características.

Tenho um certo descrédito para com os “humanos” não-espontâneos (aquelas criaturas que não sabem o que são, e/ou pretendem agradar a todos por não gostarem do que são). Acho que aprendi isso com os expositores de flores, quando entendi que as orquídeas coloridas não são tão valiosas quanto as monocromáticas. Para os bons entendedores, flores originadas de processos artificiais (feitos pelos humanos, diga-se de passagem) não são comparáveis àquelas que continuam fiéis à própria semente.

Assim, se são brancas, as orquídeas não querem se enxergar roxas, e se contentam em serem lindas apenas aos olhos de quem gosta de branco. Também não procuram, no desespero, terem pelo menos um toque de amarelo para poderem também agradar aqueles que gostam de amarelo.

Já os humanos, criaram até orquídeas azuis e verdes, num claro desrespeito ao direito das plantas de serem o que são por pura projeção! Assim como passaram a tratar animais como humanos, colocando adereços ridículos em cachorros e gatos que, de tão vulneráveis aos caprichos humanos, deveriam ser protegidos dos processos de humanização e terem seu direito preservado de serem o que são. A situação é tão grave que há psicólogos que tratam animais neurotizados por seus donos.

Os ardis humanos chegam ao ponto de criarem “necessidades” para os animais. Ou alguém já viu um gato precisar tomar banho e ter suas unhas cortadas? Ou um cachorro precisar de algo além de seus próprios pelos para manter a temperatura corporal?

Toda esta apologia a que as coisas não sejam o que são dá-se em nome do mercado; especificamente em nome de sua expectativa de que tudo (flores, animais e também humanos) torne-se objeto para o desfrute alheio. Daí não se poder ser espontâneo, e, no caso dos humanos, apenas poucos sujeitos autorizarem-se a falar o que acreditam. Mostram-se apenas em boca miúda e aos íntimos, e se tornam fofoqueiros, já que não falam publicamente o que pensam por esperarem agradar a todos. “Sujeitos shorts-saia”, que de acordo com o interesse mostram-se de shorts ou de saia.

Já em relação aos pretensos humanos que não pensam, bom...são mais perigosos. Não se pode apenas dar ao luxo de não buscar ter perto de si, mas se precisa cuidar para que não se aproximem ou para que não se resbale nesta espécie de ser.

E aqui deixo claro que não me refiro ao pensamento enquanto operação racional, aos moldes do cogito cartesiano. Afinal, sabe-se da capacidade cognitiva de vários animais. Falo do pensamento enquanto operação psíquica realizada por uma mente. Não falo de processos realizados por cérebros sem autoria...cérebros-vasos. Falo de processos realizados por uma mente, que pode ser entendida como aquilo que floresce em alguns vasos.

Gostinski e Minagé foram muito precisos ao colocarem entre aspas a expressão “mente” quando me convidaram para dizer algo sobre o que se passa dentro da caixa craniana de alguns homo sapiens. De fato, analisando o teor dos comentários por eles citados de quem procura legitimar o estupro (além de repudiar um suposto excesso de peso e idade avançada), ali não parece haver mente, mas apenas uma massa de neurônios.

Winnicott é muito preciso ao nos dizer dos estágios primitivos de desenvolvimento, e daqueles que nunca alcançam uma independência do meio no seu processo de constituição psíquica. São sujeitos que não desenvolvem uma identidade. Mantêm-se alienados ao discurso do Outro, porque aqueles que exerceram a função de cuidado não souberam dosar as frustrações. São sujeitos que sofreram frustrações desnecessárias (além daquelas que a própria vida impõe), e/ou sofreram demasiadas frustrações em intensidade e quantidade, e/ou ainda foram frustrados de maneira tal que não lhes foi ofertada a perspectiva de ultrapassar os “nãos”.

Perdem a capacidade criativa e a confiança em si; daí permanecerem fazendo aquilo que é a única maneira de terem existência: atendendo ao Outro. Não sabem pensar porque não existe um universo “intra”, e então suas sinapses são levadas ao sabor dos ventos, da correnteza ou da maré.

Sim...é aquele mesmo tipo de homo sapiens que usa como critério para suas postagens nas redes sociais a probabilidade de “curtidas” e que ficam tirando várias fotos até alcançarem o seu melhor ângulo. A paisagem ao fundo, quando existe, é só uma moldura.

Também podemos aí incluir aqueles que só postam fotos fazendo aquele biquinho de pato (claro, todos ficamos bem – ou menos ruim - daquele jeito!), ou que tiram foto de sua imagem no espelho. De fato eles não querem o retorno do outro, mas apenas que seu próprio olhar seja mais aprovador de si. É triste a baixa auto-estima...inclusive porque ela faz com que se use o outro como objeto. Querem ler comentários de “linda”, mas só porque não conseguem dizer isso pra si. Nem interessa quem escreveu isso. Apenas quantos o fizerem, no máximo.

Perceba-se que os não-espontâneos e os não-pensantes são basicamente as mesmas criaturas. No caso dos partidários e instrutores de estupro, parecem papagaios travestidos de gente que repetem a ideologia ocidental contemporânea machista e violenta por acreditarem que só assim terão valor. Na lógica desses humanos não tão humanos, portadores de cérebro-vaso (essa coisa vazia, sem vida, pura casca), quem porta vagina está submetido às vontades de quem quer penetrar vaginas.

Poderíamos equipará-los aos animais, se não lembrássemos que animais não transam para ferir alguém ou ferindo alguém, mas apenas para procriarem ou terem prazer. Quando cometem algo que se assemelha ao estupro, é porque houve um desequilíbrio ambiental causado por humanos. Está-se falando de zumbis, na verdade. Aqueles que parecem humanos, mas não são. É deles que vêm as bestialidades; não dos animais.

Hannah Arendt já nos ensinou isso a partir de sua constatação de que foi a pequenez humana a responsável pela atrocidade imensurável do Nazismo. Não se trata, portanto, de algum transtorno mental. Mas, sim, de uma condição aquém-mente. Talvez um “transtorno a-mental”. Sujeitos fusionados ao Outro, sem se constituírem numa existência separada (sem se subjetivarem), não vêem o outro enquanto algo diferente dele; e, portanto, como algo que tem existência própria.

Portanto, arrastam o outro em seu movimento de serem bem vistos aos olhos do Outro. Jurandir Freire Costa, frente ao caso do homicídio do índio pataxó, disse que não se tratava de monstruosidade o que levou os jovens a incendiarem aquele homem. Mas sim uma “nadificação do outro”. Não se tratava de ódio perante o sujeito violentado, mas de uma incapacidade de reconhecer que ele era semelhante a eles.

Esse mesmo tipo de raciocínio infértil (talvez seria melhor dizer mortificante, porque provindo de uma não-subjetividade e de alguém que não reconhece a alteridade) não se apresenta apenas no discurso de sujeitos isolados, mas chega a ser legitimado por instituições e textos legais. Não é ao acaso que, até pouco tempo atrás, o Direito não tinha vergonha de se pautar num texto que explicitamente tratava a penetração na vagina como, em si, diferente da penetração anal.

Compreendia-se o dano à vítima que sofreu penetração anal como, em si, menos gravoso. Ora...é só perguntar a qualquer mulher que já fez sexo anal como esta modalidade é potencialmente mais desconfortável/doloroso/lesivo, pelo simples fato de que é uma criação humana a qual a biologia precisa ser preparada para acompanhar. Talvez naquela época houvesse quem sabia estuprar de maneira a tornar sua conduta menos gravosa juridicamente. Era só usar um buraco, e não outro.

Ao lado disto, o dano ao homem estuprado era entendido como, desde o início, menor, haja vista que ele só poderia receber penetração anal. Este é um exemplo de como a cultura machista não faz vítimas apenas mulheres, mas também homens[2]. E só o cito porque ainda há quem entenda o feminismo como um movimento que desconsidera sofrimento do homem e que quer que a mulher tenha uma superioridade perante o mesmo.

Poder-se-ia também falar de como o Direito partia do princípio de que uma penetração era o que consumava uma relação sexual, já que o tipo penal do “estupro” só era possível nos casos em que havia penetração.

Como se percebe, partia-se de uma lógica bem animalesca, típica de humanos que não são criativos na hora do sexo (sim, os recalcados que não conseguem ir além do papai-mamãe). Típica também dos humanos frígidos e impotentes, que custam a reconhecer que a incompetência da sua biologia para entrar no/receber o outro só sinaliza seu desinteresse/medo do outro. Típica, por fim, dos humanos que não acederam ao universo simbólico e da alteridade, que faz, por exemplo, com que o prazer no sexo decorra muito mais porque se foi capaz de conquistar, e não tanto dos órgãos genitais.

Não me parece que a atual aplicação do Direito seja isenta de machismo, ainda que pelo menos em termos de legislação tenha havido algum progresso no que diz respeito ao estupro. Não teria como ser diferente, porque todo texto é sujeito à apropriação que alguém dele faz quando pretende aplicá-lo. Se nos deparamos com um operador do Direito zumbi, estamos numa situação arriscada! A metáfora do zumbi é interessante, porque diz de seres famintos por cérebros, que talvez assim o sejam na tentativa de tapar um buraco deixado por sua ausência de mente.

São, por exemplo, aqueles operadores do Direito que não reconhecem que alguém que não porta vagina pode se intitular mulher. Daí a dificuldade do público LGBTTT, quando sofre violência, ter a situação compreendida a partir da Lei Maria da Penha. Afinal, nesta legislação se denomina “mulher”, mas não se define o que isto seja. Ainda estamos submetidos ao sabor dos ventos daquilo que (não)passa na caixa craniana das autoridades policiais, representantes do Ministério Público e magistrados.

Recordei de uma criatura, profissional na área de segurança pública e justiça, que se posicionava contrário às visitas íntimas em unidades prisionais femininas. Alegava que mulheres podiam se contentar com masturbação. Na minha ingenuidade, perguntei-lhe se o prazer dele, homem, era o mesmo quando estava com uma mulher e quando era acompanhado por sua própria mão. Era uma tentativa de apontar o machismo de sua pergunta. A resposta foi de que sim...de que para ele, estar com uma mulher ou com sua própria mão era a mesma coisa. Enfim, era alguém cuja biologia era indiferente aos encontros humanos. Como lhe fazer admitir o outro como humano? Restou-me o silêncio.

Animais copulam e se masturbam, mas não transam! Isso é coisa de humanos. Animais não estupram. Isso é coisa de humanos que não transam.


Notas e Referências: 

[1] http://emporiododireito.com.br/legalizar-o-estupro-por-aline-gostinski-e-thiago-minage/

[2] Não desconsidero que gênero é diferente de sexo. Logo, que há mulheres que não portam vagina, e que há homens que não portam pênis. Mas aqui destaco o horror trazido pelo órgão feminino, e de como é este horror que fez com que se repudiasse tudo o que seja associado ao feminino. Há um elogio à masculinidade, aqui colada ao pênis, e um repúdio a tudo que questiona esta norma patriarcal e sexista. Mais a respeito: http://emporiododireito.com.br/de-onde-sai-tanto-machismo-sobre-violencia-obstetrica-e-o-horror-de-vagina-por-maira-marchi-gomes/.


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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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Imagem Ilustrativa do Post: The Word 'Art' Has Been Seriously Raped. I Wish Art Would Rape Back // Foto de: Surian Soosay // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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