O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Explorar as nuances do consumo a partir de uma análise sociológica é também um exercício reflexivo de autoconsciência. O campo das ciências humanas é rico e complexo, uma vez que a natureza humana não obedece a leis causais, mas os fenômenos produzidos em determinado espaço-tempo, quando apreendidos, são elementares para uma tomada crítica e autocrítica causando impactos importantes nos sujeitos e aportando novas perspectivas. Assim, tomar consciência sobre nossos modos de consumir procede reflexão, dado que nossa sede e modo de consumo obedecem a um padrão social cujas matizes fazem parte de um complexo maior recriado para que nós consumamos o que, de fato, consumimos. A breve análise aqui proposta advém de algumas leituras intercruzadas e da interessante proposta do sociólogo do consumo, Gilles Lipovetsky, de que hoje vivemos em tempos de hiperconsumo, marcado por um padrão de consumo diferente dos contornos de uma já superada sociedade de consumo e mais distante ainda do primeiro padrão de consumo experimentado com a revolução industrial. Não se assuste se os seus padrões de consumo forem confirmados, não é mera coincidência.
Uma notícia no começo dos anos 90 estampava os meios de comunicação, alertando sobre mudanças acerca da forma do consumo, marcada pela perda do apetite de consumir, desinteresse por marcas e pelo recuo de compras impulsivas. Seria o fim da sociedade de consumo? De fato, hoje vivemos uma nova prática de consumo, que reflete uma nova relação com o mundo. O consumidor hoje cresce nos gigantes centros, procura produtos naturais, exige selos de qualidade, navega na rede, exige opções e diversidade de preço: isso seria o reflexo de uma passagem do bem-estar material para a qualidade de vida, para a espiritualidade, uma sociedade informacional e pós-materialista. Mas não deixe que essas palavras, à primeira vista, acetinadas, convençam que o consumo hoje é feito com uma maior racionalidade: pelo contrário, vivemos hoje uma importante mudança na relação subjetiva experimentada com o modo de consumir, causando a desinstitucionalização e o envolvimento emocional com o consumo, e são estas mudanças que nos transformam em uma sociedade de hiperconsumo.
O nascimento dos mercados de massa com a revolução industrial, a primeira revolução individualista, momento no qual o consumo voltava-se a criar distinção social através de um bem-estar moderno era funcional, objetivista, mecanicista. A segunda guerra, dá espaço à sociedade do consumo, a segunda revolução individualista, graças a difusão do crédito, que passa a conceder um poder discricionário de compra a todas as camadas sociais. Ocorre uma cisão com a antiga modernidade disciplinar e autoritária através do estímulo dos desejos, a euforia publicitária, a imagem luxuriante de férias, a sexualização dos corpos, que interfere também no tempo, pois passa a defender a “vida presente” e as satisfações imediatas. Na segunda fase do consumo um ciclo de forma híbrida se forma: junto à distinção, ou seja, junto aos habitus de classe, há uma corrida dos prazeres, um consumo hedonista-individualista. A fase dois do consumo foi denunciada pela esquerda, juventude e ecologia radical, voltados contra o esbanjamento da riqueza e mercantilização das necessidades, em nome da criatividade e do gozo individual. A terceira fase do consumo, a terceira revolução (hiper)individualista, amplia a gama de escolhas pessoais e despreza a distinção e os particularismos de classe: queremos mais objetos para viver do que para exibir ou alardear uma posição social, ou seja, os bens hoje conectam-se às satisfações emocionais, sensoriais, estéticas e lúdicas mais do que a símbolos de status, um consumo para “si”, mais do que “para o outro”. O espírito de transgressão passou de moda e hoje os consumidores se importam mais com a qualidade de vida, de comunicação, higiene e de saúde, de modo que o consumo se volta mais aos fins, aos gostos e aos critérios individuais, um bem-estar qualitativo e reflexivo, centrado no corpo vivido, na atenção a si, o que manifesta um hedonismo além das transgressões, inserido na vida cotidiana pelo consumo, moda e lazeres. Nada é imposto de fora, as adesões são livres, são desinstitucionalizadas, fruto da religião do melhoramento contínuo das condições de vida. O maior bem-estar tornou se uma paixão de massa, o objetivo supremo das sociedades democráticas, um ideal exaltado em todas as esquinas.
As tradições religiosas e políticas não produzem identidades centrais e o consumo encarrega-se dessa nova função identitária. O consumidor emancipa-se de ritos coletivos, mas isso o torna mais subordinado ao reino do consumo, pois quanto mais autônomo, mais dependente da forma mercantil para satisfazer suas necessidades. Os atos de consumo são menos dirigidos socialmente, mas o poder de enquadramento da existência pelo mercado aumenta. O consumo torna-se sobretudo emocional, e a publicidade, mais do que nunca, louva a possibilidade de os consumidores viverem experiências afetivas e sensoriais: ambiência sonora, olfativa, ecológica e engajada. Eleva-se um imaginário associado a possibilidade “poder sobre si”, pois possibilita construir de modo individualizado seu modo de vida, uma vontade de poder voltada a dominar o mundo e si. Não mais desejos de representação social ou símbolo de riqueza, mas emerge uma falsa pacificação do consumo, associada a um sentimento do perigo e risco onipresente em tudo, exigindo vigilância. A insegurança do mundo liberal e o peso do livre governo de si mais criam a necessidade da despreocupação fútil e envolvimento subjetivo com o consumo cresce. A compra não é mais uma consolação para tristezas, não é somente uma manifestação do desejo, mas um agente de experiências emocionais que valem por si mesmas: é mudar uma peça no cotidiano, uma viagem, aproximando-se de prazeres do homo ludens.
Os espaços econômicos mudam, empresas gigantescas desenvolvem-se, baseados mais em uma abordagem qualitativa do mercado, dando ênfase nas satisfações plurais dos clientes. O objetivo não e mais apenas oferecer os preços mais baixos, mas fidelizar os clientes empregando estratégias em desacordo total com o modelo fordista. O inovacionismo supera o produtivismo do fordismo. O desafio já não é o de produzir em massa e continuamente quanto o de garantir a entrada mais rápida dos produtos no mercado, respondera a procura antes dos concorrentes. O hiperconsumidor não quer consumir menos, mas obter o mesmo menos caro. Não dá as costas para a qualidade, pois o mercado torna possível ofertar produtos mais baratos de qualidade igual aos produtos de marca. A compra esperta torna-se valorizada, cuidado com o preço que expressa menos o espírito de economia e mais a procura de bens supérfluos, um hiperconsumidor que controla certas despesas aqui a fim de poder ter acesso, ali, a prazeres diversificados, a consumos lúdicos, comunicacionais e emocionais.
Antes inseridos em um mundo sem informação e reflexão, o hiperconsumidor conta com uma massa de informações e conhecimentos midiáticos-científicos para realizar suas compras. Mais do que nunca a ciência dirige nosso consumo, dado o aumento da desconfiança. Não se desenha a aniquilação de valores, mas a fragilização dos indivíduos, pois nossa sociedade é mais do que qualquer outra de depressão e dificuldade de viver. Mesmo que condições materiais progridam, a vida é tida como mais impossível de ser vivida. De outro lado, na contramão, a civilização se declara e se mostra feliz, pois é difundido no corpo social o ideal de auto-realização, não estabelecendo fronteiras entre o imaginário e o real, as aspirações e as experiências vividas no cotidiano. Na medida em que remete mais ao indivíduo, fornece mais motivos para que ele sinta seus próprios tormentos, ocasionando a explosão de depressões, ansiedades, o que assinala a nova vulnerabilidade, inseparável de uma civilização que vende a felicidade em aparências. A felicidade torna-se paradoxal, pois aumentamos o olhar negativo sobre nós mesmos e jogamos isso em mais satisfações materiais, sempre mais viagens, jogos, esperança de vida. Junto, aumentam as dificuldades familiares, comunicacional e sentimental: aumento das separações, espiral dos divórcios, conflitos ligados a guarda dos filhos, dificuldades de comunicação. O processo de individualização prolifera conflitos e decepções íntimas.
O enfraquecimento dos enquadramentos coletivos aumenta a tarefa de o sujeito ser ator de sua vida, o que torna a tarefa mais difícil, dado que somente sai de si por tribos/microgrupos. Essas pequenas comunidades são expressões da identidade pessoal, uma liberdade subjetiva que se apropria de uma liberdade coletiva: uma instrumentalização do grupo com fins de valorização e afirmação de si. Nas emoções e fusões coletivas o homem superindividualista dispõe de sua autodefinição social. Em torno dos estilos, de marcas, de esportes se constituem comunidades emocionais. Os comportamentos e emoções de grupo não ocultam a tendência à privatização do consumo e lazer, as compras milimetricamente calculadas e distanciadas do sujeito, que compara e se informa sobre a melhor relação entre qualidade/preço e o prazer de fazer bons negócios. Os lazeres e templos de consumo, mais do que unirem membros, relacionam o indivíduo consigo.
Inserido em uma atmosfera de autonomia e informação, o hiperconsumidor enfrenta uma nova organização de consumo que silenciosamente emascara sua potência. Não é mais seu enfoque o simples bem-estar material, mas o conforto psíquico, de harmonia interior, reflexo da felicidade coach hoje reproduzida. Quanto mais detém um poder até então desconhecido de qualidade/preço, mais o mercado apreende os consumidores, pois pela auto-adminstração de si o sujeito acaba extrodeterminado pela ordem comercial. Todo o quadro do hiperconsumo confirma no que se expressa a manifestação do poder do regime neoliberal, que não é proibitória, protetora ou repressiva, mas sim prospectiva, permissiva e projetiva. O consumo é maximizado, gerando abundância e um excesso de positividade ligado ao prazer. Hoje não consumimos coisas, mas sim emoções, que vão além do valor de uso, abrindo portas a um novo campo de consumo, cujo caráter é infinito.
O reflexo do hiperconsumo afeta com grande impacto camadas sociais mais precarizadas, hoje multiplicadas em vários grupos, o que torna difícil estabelecer solidariedade ou consciência de classe, de forma que mesmo excluídos partilham dos valores individualistas e consumistas das classes médias. O consumo para os mais pobres também constrói a identidade: na medida que ausentes outras vias de reconhecimento social, o consumo é preeminente. Assim, uma ironia é a de que os excluídos do consumo também são hiperconsumidores. Um exemplo tátil é que cada membro da família possui um celular, porém não conseguem pagar a conta de luz. A fronteira da pobreza não é capaz de parar a pressão consumista, que se espalha por todas as classes sociais. Ocorre tanto uma forma de socialização como desorganiza os comportamentos de categorias inteiras, incapazes de resistir as ofertas mercantis. São os mais pobres, inclusive, que mais utilizam celulares e assistem televisão, estando por isso mais propensos à publicidade, expondo os mais propensos à uma forma de violência que traz a imagem da felicidade consumista.
Hoje não devemos denunciar o consumismo em si, mas os obstáculos que ele cria ao desenvolvimento da potencialidade humana, pois aprofunda a dependência psíquica do sujeito com o consumo, mais do que visto em qualquer outra época e impactando todos os segmentos sociais.
Notas e Referências
BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 2005.
BAUMAN, Zygmunt. Trabajo, consumismo y nuevos pobres. Barcelona: Gedisa, 2000.
BORDIEU, Pierre. El sentido social del gusto: elementos para una sociología de la cultura. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2010.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. Barcelona: Herder, 2014.
LIPOVETSKY, Gilles. Felicidade Paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A Estetização do Mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MAFFESOLI, Michel. El tiempo de las tribus. El ocaso del individualismo en las sociedades posmodernas. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2004.
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