Vivemos na era do “processo justo”?: o Código de Processo Civil 2015 como marco substancial do processo justo brasileiro - Por Guilherme Christen Möller

14/11/2017

O processo justo mostra-se mais do que uma mera característica processual, pois é uma garantia à justiça social e o meio de acesso ao pronunciamento estatal conferido por intermédio de um instrumento, o processo, que respeitará direitos fundamentais durante toda essa relação, a fim de que se atinja mais do que a mera pacificação social, garantam-se os direitos das pessoas, especialmente quando versar sobre direitos fundamentais, o que, por muito tempo, mesmo que assim fosse defendido por doutrinadores e legisladores, não passara de palavras vagas.

É importante, porém, ressaltar que a característica “processo justo” deva ser dividida em um binômio, o processo justo enquanto característica de um instrumento de prestação da justiça, proposta para a definição feita no parágrafo anterior, e, o processo justo enquanto característica de um resultado justo.

Para esta breve digressão, focar-se-á na primeira vertente deste binômio, afinal, precisar-se-ia de inúmeros tomos para tratar do segundo, isso na proporção em que a busca pela definição do que é “justo”, ou seja, da própria “justiça”, recai em uma discussão tão antiga – quiçá mais antiga – do que o próprio Direito.

Para responder à pergunta formulada no título deste ensaio, precisar-se-á realizar um breve, todavia pontual, recorte histórico partido dos primórdios dos Códigos de Processo Civil Brasileiros.

O Direito Processual Civil Brasileiro marca, em sua história, três codificações (deixando-se, o Decreto-Lei n.º 737/50, à limiar), os CPCs de 1939, 1973 e 2015, codificações singularmente distintas, cada qual carregando marcas peculiares dos momentos em que foram concebidas.

Curioso é o fato de que a tentativa inicial de estabelecer um CPC no Brasil já começa como um tremendo fracasso, sentimento que se associa ao fato da frustrada experiência de delegação de competência legislativa de matéria processual aos Estados do Brasil, afinal, esperava-se que cada Estado do país possuísse seu respectivo código (similar os que se tem atualmente nos EUA).

Diversos fatores contribuíram para esse marcante fracasso, todavia, dentre todos o mais interessante, quiçá principal, consiste na quantidade ínfima de especialistas da área que cada Estado possuía no início do século XX. O resultado não seria outro senão àquele obtido.[1]

Em decorrência disso, inicia-se um projeto de unificação da competência legislativa de matéria processual à União, objetivando, especialmente, a uniformização das mais diversas normas processuais existentes em cada Estado, afinal, essa vasta quantidade foi outro dos tantos fatores que as tornaram obsoletas e incapazes de alcançar o que se esperava essencialmente de uma codificação processual civil: a tutela efetiva aos direitos dos particulares.[2]

Fruto desse cenário é o CPC/39, a primeira codificação processual civil, destinada para esse fim – vale destacar –, do Brasil. Inspirada, em parte, em características doutrinárias modernas do direito europeu, guarda uma característica de uma dualidade de sentimentos em seu texto (uma parte moderna e outra com traços peculiarmente medievais).

Entretanto, o que aqui expõe-se não são suas diversas discussões ou modificações, mas, apresentar que é nesse momento que nasce o que se denomina de caráter publicista (similar ao CPC Italiano/1940), uma consagração do direito processual como instrumento almejante do bem-comum, instrumento de busca pela verdade dos fatos e, consequentemente, a atribuição do status de “vencedor” ao que tivesse a verdade em seu favor, realizando-se, assim, uma justiça ideal, sem apegar-se ao fato do jurisdicionado ter ou não contribuído para tal, até porque, a postura do julgador era ativa, de modo que não era a mera iniciativa probatória daqueles sujeitos que bastava para a satisfação do processo.[3]

Essa peculiaridade publicista dessa antiquíssima codificação enseja ao que se denominada, décadas mais tarde, de processo justo – o objetivo do presente estudo, especialmente no cenário do CPC/15 –, afirmando-se que foi, o caráter publicista do processo, o berço do processo justo.

O publicismo processual, porém, não passara de mera falácia formal, uma falsa promessa do processo, afinal, havia-se um embargo momentâneo que impedira sua substancialidade, o regime de exceção, afinal, concebeu-se o CPC/39 nesse momento, caracterizando-se por um empírico formalismo, conforme viu-se anos mais tarde.[4]

Regendo-se pelo CPC/39, seguiu-se com esse falso caráter publicista do processo pelas próximas décadas, permeando-se cruciais momentos de instabilidade política e social no país[5], até que, na perspectiva da evolução do Direito Processual Civil Brasileiro e da visão publicista do processo, viu-se que se disseminou uma grave doença em todo território, o excessivo formalismo processual, de modo que, àquela ocasião, se observou que o processo deveria ser imediatamente direcionado ao fim de buscar resultados substancialmente justos, nascendo nesse momento, no Brasil, o período do instrumentalismo processual.[6]

Propusera-se a necessidade de alteração legislativa da codificação processual civil para adequar-se corretamente à essa nova visão processual, em que, entendendo-se que era necessária tal mudança para obter um aperfeiçoamento da sua técnica, resultando no CPC/73, considerado pela perfectibilidade processual alcançada.[7]

Essa redefinição dos sentidos epistemológicos do processo civil não apenas resultou no aperfeiçoamento da lei, mas, especialmente, culminou no aperfeiçoamento do publicismo processual, propondo uma busca pela substancialidade e do processo como uma técnica de pacificação social, o que até então era uma falsa premissa, dando-se espaço ao processo justo.

Havia-se, porém, um grande problema atacando o resultado obtido – sendo o problema deste trabalho –, o processo justo, haja vista que além de, como no anterior, o CPC/73 foi concebido a partir de um regime de exceção, sendo sua marca um elevado aspecto individualista.[8] Como poderia, então, buscar a pacificação social por meio do processo se o mesmo mostrava possuir uma característica individualista? Na perspectiva prática, como poderia, então, um instrumento de pacificação social não zelar pelo coletivo?

Ao passo em que se formulou esse problema, constitucionalistas buscavam a efetivação substancial da Constituição, o que obtiveram com o fim do autoritarismo em 1985 e deu espaço à um novo sistema para o Estado Brasileiro, pautado em um Estado Democrático de Direito. Inicia-se, a partir do fim do regime autoritário, um novo Direito Constitucional Brasileiro, o neoconstitucionalismo, inspirado em um modelo europeu-continental, valorizando-se a democracia e impulsionando-se o coletivo.[9]

Esse divisor de águas do Estado Brasileiro, atrelando-se ao fenômeno da constitucionalização dos direitos, resulta em uma reinterpretação dos próprios sentidos dos ramos infraconstitucionais do direito, o que serve como um exemplo de autopoietica[10], afinal, um sistema infraconstitucional, pautado em um viés individualista, CPC/73, quando confrontado com uma norma hierarquicamente superior[11], Constituição, pautada em viés extremamente oposto, afinal, belamente desenhada na perspectiva democrática do coletivo, entra em colapso e deve ser revista para adequar-se às perspectivas dessa norma superior – nunca o contrário –, como, aqui, é o caso, a Constituição, afinal, essa norma não apenas serve de condicionante formal para todo o resto do sistema, mas, a partir da reformulação do Direito Constitucional Brasileiro, possui força normativa material/substancial.[12]

Essa revisão do Direito Processual Civil Brasileiro, a partir da CF/88, acaba por, em um primeiro momento, alterar os sentidos da instrumentalidade do processo, a aperfeiçoando, de certo modo, porém, em um segundo momento, findar esse momento do direito processual e iniciar a atual fase denominada de Direito Processual Civil Constitucional, analisando-se o processo a partir da epistemologia contida da CF.

Nesse cenário, incongruente, mostra-se, o pensamento de parcela doutrinária que observou a mera consolidação dos pilares democráticos-sociais da CF no texto do CPC/73, afinal e como demonstrou-se acima, o cenário individualista do CPC/73 é divergente ao do cenário coletivo da CF.

Oportuno, portanto, pensar-se em elaborar uma nova codificação processual civil para abarcar essas novas premissas basilares do Direito Brasileiro, afinal, a atividade de codificação mostra-se necessário uma vez que concludente a ineficiência teórica e prática, em especial da primeira, da atividade de consolidação.[13]

Isso levou, no ano de 2010, a iniciar-se um desenho democrático de uma nova codificação de processo civil, significativamente diversa das que a antecederam, afinal, nos seus aproximados cinco anos de discussão, vê-se claramente essa preocupação em recepcionar as premissas do neoconstitucionalismo do Brasil e dos valores contidos na CF/1988.

Findadas as discussões no ano de 2015 e aprovado, no dia 18 de março daquele ano, o CPC/15, Lei n. 13.105/15. O resultado obtido com essa nova codificação é entusiasmante, afinal, mostra fina sintonia com a CF e as propedêuticas do Novo Direito Constitucional Brasileiro, citando-se, como exemplos extraídos dessa codificação, a ordem, disciplina e interpretação conforme a CF (art. 1º), inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 3º), duração razoável do processo com a necessária atividade satisfativa (art. 4º), boa-fé (art. 5º), cooperação (art. 6º), efetivo contraditório (art. 9º), dentre outros (todos do CPC).

Visível, apenas com os artigos destacados acima, resta, a conclusão de que há uma iminente preocupação com as normativas constitucionais, em especial premissas fundamentais, na proporção em que são ratificados pela nova codificação, bem como, uma sensível preocupação com a visão de um processo cooperativo, rompendo-se com o paradigma individualista construído no CPC/73.

Curioso é o sentimento que fica, quando da análise do CPC/15, de que há um elemento intrínseco nessa codificação. De fato, há, e o nome desse elemento é processo justo.

Como, para o instrumentalismo, o processo deve servir de instrumento de pacificação social, nesse momento democrático e cooperativo do processo, o Direito Processual Civil Brasileiro entra, finalmente, em sintonia com o processo justo, e não só isso, o aperfeiçoa com base nas premissas neoconstitucionais do Brasil.

É possível observar que, com base na construção elaborada neste ensaio, que o CPC/15 transmite as premissas do Estado Democrático de Direito que se vive, bem como, serve como espécie de instrumento legislativo de efetivação e potencialização dessas bases que fundam o neoconstitucionalismo.

Com isso, há de se afirmar que é o CPC/15 o marco inicial da substancia do processo justo, apresentando mais do que um processo que visa a pacificação social, mas que garanta um processo igualitário, respeitando-se as pessoas que o utilizam conforme suas condições, zelando-se por suas garantias fundamentais que lhes concede a Constituição Federal de 1988. A busca pela discussão sobre o aprimoramento do processo justo nunca foi tão intensa quanto na contemporaneidade do Direito Processual Civil Brasileiro.[14] Respira-se um novo ar na seara processual!

 

REFERÊNCIAS 

AGUIAR, Renan; MACIEL, José Fabio Rodrigues. História do Direito. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). In: Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 9, n. 33, 2006. 

DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual Civil. 19ª. ed. São Paulo: Atlas, 2016. 

GRECO, Leonardo. Publicismo e Privatismo no Processo Civil. In: Revista de Processo. vol. 164/2008. Out/2008. 

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. 

MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: Críticas e propostas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 

PINHO, Humberto Dalla Berdina de. Direito Processual Civil Contemporâneo. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 

ROCHA, Leonel Severo. Direito e autopoiese. In: Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. n.º 13. ENGELMANN, Wilson; ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz. (orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. 

SOARES, Gláucio Ary Dillon. A democracia interrompida. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001. 

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. I. 

 

[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. I.

[2] PINHO, Humberto Dalla Berdina de. Direito Processual Civil Contemporâneo. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

[3] GRECO, Leonardo. Publicismo e Privatismo no Processo Civil. In: Revista de Processo. vol. 164/2008. Out/2008.

[4] AGUIAR, Renan; MACIEL, José Fabio Rodrigues. História do Direito. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

[5] SOARES, Gláucio Ary Dillon. A democracia interrompida. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2001.

[6] DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual Civil. 19ª. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. I.

[8] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. I.

[9] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). In: Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 9, n. 33, 2006.

[10] ROCHA, Leonel Severo. Direito e autopoiese. In: Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. n.º 13. ENGELMANN, Wilson; ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz. (orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.

[11] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

[12] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). In: Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 9, n. 33, 2006.

[13] MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: Críticas e propostas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

[14] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 57ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. I.

 

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