Visitando o mundo interno do adolescente que atua delinquencialmente

14/09/2015

Por Maíra Marchi Gomes – 14/09/2015

Somos pássaro novo longe do ninho. Renato Russo

O presente texto pretende abordar a prática infracional a partir de concepções winnicottianas a respeito da “tendência anti-social”. Compreende-se que tal abordagem é particularmente pertinente ao diálogo com o que o Direito diz sobre ato infracional porque se distancia da noção de conduta anti-social, própria a uma certa psiquiatria de contornos patologizantes.

Mostra-se pertinente iniciar explicitando as concepções winnicottianas a respeito da violência na adolescência. Ou, já em sua linguagem, da tendência anti-social. É o que se fará a partir deste momento, tratando justamente de uma discussão que continuará aquela que finalizou texto anterior aqui publicado: a influência da condição sócio-econômica cultural do adolescente com prática infracional.

Outeiral (1998, p.78) faz um resumo da noção winnicottiana de “tendência anti-social” para aplicá-la aos casos dos adolescentes por ele chamados de excluídos, que, para ele, seriam os não pertencentes da categoria social, econômica e cultural daqueles que pretendem estudá-los:

Três são, então, os aspectos básicos da “tendência anti-social” para Donald Winnicott:

1 - ele relaciona a tendência anti-social “a uma falha ambiental precoce, principalmente a uma falha na função materna”;

2 - distingue dois tipos de reação da criança a estas falhas: (a) quando a privação ocorre depois de ter havido uma função materna “suficientemente boa” e por um período de tempo suportável, a criança poderá desenvolver a “tendência anti-social” (deprivation); (b) se a privação (privation), ou a falha na função materna, ocorrer desde o início da vida, poderá se desenvolver uma doença mental ou uma psicose.

3 - Donald Winnicott considera que a “tendência anti-social” comporta um sentimento de esperança (grifo do autor).

Outeiral (1998, p.79-80) considera necessário reportar-se a outro autor, para continuar sua discussão a propósito deste adolescentes.

"Masud Khan utiliza o conceito de “trauma acumulativo” para descrever situações que, penso, se aplicam a esses adolescentes com freqüência. Ele parte da concepção de Freud sobre a função da mãe como escudo protetor [...].

[...]. Para ele o que leva a mãe a desenvolver o papel de escudo protetor é o que Winnicott chama de preocupação materna primária, em que a mãe suficientemente boa, através de suas funções de holding, handling e apresentação de objeto interage com seu bebê. O conceito de intrusão (impingment) também é fundamental (grifos do autor)"[1].

Masud Khan (apud Outeiral, 1998), orientando-se por uma abordagem winnicottiana, propõe que o trauma cumulativo decorreria de rupturas, quebras, fendas, do psiquismo do bebê quando aquele que exerce a função materna não funciona suficientemente como ego auxiliar. O ego auxiliar é um conceito freudiano, que diz respeito, por exemplo, à função da “mãe” de interpretar a realidade em uma fase de desenvolvimento em que o aparelho psíquico precisa de um “apoio” em seus ensaios de contato com a realidade.

É imprescindível demarcar que Masud Khan (apud Outeiral, 1998) não nega aspectos físicos e psíquicos, ainda que ressalte os ambientais. Fala, de fato, de um interjogo patogênico de variáveis destas três naturezas. Porém, Outeiral (1998), até pelo foco do texto (adolescentes excluídos sócio, econômica e culturalmente), ressalta os aspectos ambientais; ou, poderíamos melhor especificar, macro-sociais (que são nada mais que continuidades dos aspectos micro-sociais – familiares).

É nestes adolescentes que ele encontra de forma premente algumas características. Dentre elas, a da atuação ou agir como meio por excelência de comunicação e evitação (como defesa maníaca) das ansiedades confusionais, paranóides e depressivas na adolescência. “Nos adolescentes a que estou me referindo, pelos seus precários meios de estruturação psíquica, este modelo de funcionamento mental – o atuar como comunicação e como defesa maníaca – será mais intenso” (Outeiral, 1998, p.81). Outra característica frequentemente encontrada seria um determinado modelo operacional de pensamento, assim descrito:

"A adolescência se constitui de movimentos (flutuações) progressivos e regressivos. Nas flutuações progressivas predomina o processo secundário, o pensamento abstrato e os modelos verbais de comunicação. Nas flutuações regressivas, tão comuns nos adolescentes a que estou me referindo, predomina o processo primário, o pensamento concreto e o “agir” como modelo comunicacional operante" (Outeiral, 1998, p.81)

Para melhor explicar a tese de Winnicott sobre a tendência anti-social, é pertinente ainda trazer outros conceitos deste autor. Particularmente, o de privação.

"A privação se estabelecia quando uma criança havia tido contato com um ambiente bom mas que, rapidamente, foi perdido por um tempo longo demais para que ela tivesse a possibilidade de manter uma experiência boa. Essa condição abria a possibilidade de uma tentativa de recuperação da experiência boa, paradoxalmente, através de um ato anti-social. Winnicott usava a palavra “despojamento” para designar o fracasso total do atendimento precoce do bebê, o que só podia resultar em apatia e desinteresse" (Hoffman, 2001, p.56)

Outeiral (2000, p.123) complementa esta discussão, explicando que Winnicott, em sua teoria sobre a tendência anti-social, "distingue dois tipos de privação: (1) (deprivation) perda do “bom objeto” e a perda do marco confiável dentro do qual a vida instintiva e espontânea da criança se sente segura (estado no qual se teve algo bom que foi perdido) e (2) (privation) um estado no qual jamais se teve algo e que resulta em doença mental ou no domínio de uma psicose. Deste modo mostrou que a tendência anti-social se articula em um ponto com as psicoses e em outro com as neuroses. Estabeleceu especialmente a experiência de privação com a impossibilidade de alcançar a posição depressiva e um sentido de responsabilidade social dentro do indivíduo.

Para DWW os atos anti-sociais dos delinqüentes e dos psicopatas mostram “sinais de esperança” [...].

O conceito de privação envolve um fracasso ambiental na etapa de dependência relativa. A privação, assim, se refere a um ambiente suficientemente bom vivenciado e perdido, quando o bebê já é capaz de perceber a relação de dependência, isto é, quando sua evolução tornou possível perceber a natureza do “desajuste ambiental”".

Outra noção fundamental para se compreender a referida tese é a de “primeira mamada teórica”, que seria a soma das experiências iniciais de muitas mamadas. Melhor dizendo:

"O bebê, invadido pelas reivindicações da pulsão, está num estado mental excitado. Há uma expectativa, e, podemos dizer, esse bebê está pronto para criar.

Se a mãe, ou substituto, está atenta ao bebê e é capaz de se preocupar com ele, é possível que ela possa aproveitar essa prontidão do bebê e oferecer o seio – metáfora do objeto real externo – de um modo tal, tão bem adaptado, que dá ao bebê a ilusão de ter criado esse objeto externo.

É importante frisar que não basta atender o bebê em suas necessidades biológicas. Estas são também o apoio para podermos atender à necessidade de “criar” do bebê, pois é a partir dela que se desenvolverá a capacidade de obter satisfações nas relações com os objetos e as pessoas do mundo real-social.

Tal coincidência entre o objeto criado pelo bebê e o objeto do mundo real-social oferecido pela mãe produz uma articulação entre o mundo pulsional e os objetos do real, de modo a se desenvolver na mente do bebê a ilusão/função de que ele é capaz de criar objetos para sua pulsão. Esta é a origem da função mental capacidade de usufruir do mundo, a capacidade de obter satisfações da vida real e social" (Hoffman, 2001, p.56-57, grifo do autor).

O autor continua, agora discorrendo sobre como se dá tal processo na adolescência:

"De um lado – movida agora pela capacidade de criar -, estará a vida privada, íntima, com uma maior ou menor capacidade de satisfação. De outro, vai de desenvolvendo o falso self, baseado na adaptação às exigências do mundo externo de modo submisso e passivo.

Na adolescência, essa última faceta pode se apresentar como uma aparente adequação que atende às expectativas do meio familiar e social.

[...] a aquiescência revela o tédio e o desinteresse e que, por trás de sua face inofensiva, surgirá a desesperança e a infelicidade.

Winnicott sugere então que é desse fracasso no estabelecimento de uma relação criativa entre a pulsão e o mundo, desse núcleo de insatisfação, pois ele não encontra um modo de se articular com o mundo à sua volta, que surgirá o ato anti-social [...].

Muitas vezes, o ato delinquencial é, para essas mentes desesperadas, a última tentativa de se curar de um quadro depressivo" (Hoffman, 2001, p.58-59).

Um questionamento plausível é que saídas teria um adolescente, já depressivo por falhas familiares, envolto em um apelo social de nunca se satisfazer com objeto algum? Ou em uma conjuntura social na qual não encontrará objeto algum para se satisfazer, obstaculizando qualquer elaboração da castração? Talvez a única seja o ato infracional.


 

 Notas e Referências:

Hoffman, Waldo. A silenciosa depressão e o ato anti-social na adolescência. In: WEINBERG, Cybelle (Org.). Geração Delivery: adolescer no mundo atual. São Paulo: Sá, 2001. p.55-60.

Outeiral, José Ottoni. Violência no corpo e na mente: consequências da realidade brasileira. In: LEVISKY, David Léo (Org.). Adolescência pelos caminhos da violência: a psicanálise na prática social. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. p.75-85.

_____. Tendência anti-social e patologia do espaço transicional. In: LEVISKY, David Léo (Org.). Adolescência e violência: conseqüências da realidade brasileira. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. p.121-134.

[1] Aqui faz-se necessário um retorno a conceitos fundamentais da obra de Winnicott, para que o leitor não familiarizado com a terminologia em questão possa acompanhar as reflexões seguintes. “Holding” e “handling” são termos mantidos, nas edições brasileiras, como na versão original; qual seja, em inglês. Isto se deve, primordialmente, ao fato de que nossa língua não apresenta um sinônimo a sua altura. Poderíamos compreender “holding” como “segurar”, “conter”, “acolher” (física e emocionalmente) e “handling” como “manusear”, “interagir” (aqui, tratando-se dos cuidados fundamentais à sobrevivência).

Poder-se-ia incluir aqui a noção de continuidade ao self, além de também melhor definir o que vem a ser “apresentação de objeto”. Nesta teoria, o termo remete à função exercida pela mãe (melhor dizendo: quem cuida da criança) de adaptar-se às necessidades da criança e, simultaneamente, frustrá-la gradativamente.


 

 

Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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Imagem Ilustrativa do Post: Scars // Foto de: David Simmonds   // Com alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

 

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