Violência sexual contra a mulher e o sistema de justiça: violência institucionalizada

13/09/2015

Por Marília Cassol Zanatta - 13/09/2015

As diferenças de gênero, ao se incorporarem ao discurso jurídico, configuram-se nítida e obviamente em desigualdades. Entre os instrumentos de manutenção da submissão sexual feminina, encontra-se, como um dos elementos de violência exercida contra a mulher, o próprio sistema de justiça criminal, produtor e reprodutor da violência de gênero.

A partir dos anos 80, intensificou-se o desenvolvimento da criminologia crítica sob um viés feminista, em que o sistema de justiça passou a incorporar uma interpretação concernente às questões de gênero e do patriarcado, incluindo concepções sobre a forma com que trata a mulher e apresentando uma releitura a respeito de diversos aspectos até então apenas explorados sob um prisma do saber masculino.

Entretanto, realizando uma análise acerca da resposta jurisdicional à violência sexual contra a mulher, Vera de Andrade concluiu que aquele é ineficaz quanto à proteção das mulheres contra a violência, sobretudo porque não cumpre sua função preventiva (não impede novas violências) e não se atenta aos interesses da vítima, tampouco colabora para elucidar as questões de gênero e o entendimento da própria violência sexual sofrida. Ademais, duplica a violência exercida contra a mulher, uma vez que acarreta sua vitimação e se constitui como um subsistema de controle social e de violência institucional, marcado pela seletividade de homens e mulheres. Assim, acaba por denotar e reproduzir a violência e a desigualdade características das relações sociais e de gênero, porquanto recompõe as figuras estereotipadas vinculadas a essas relações. Tal processo, portanto, implica uma cultura discriminatória, já que, conforme a autora:

"[...] não há uma ruptura entre relações familiares (pai, padrasto, marido), trabalhistas ou profissionais (chefe) e relações sociais em geral (vizinhos, amigos, estranhos, processos de comunicação social) que violentam e discriminam a mulher, e o sistema penal que a protegeria contra este domínio e opressão, mas um continuum e uma interação entre o controle social informal exercido pelos primeiros (particularmente a família) e o controle formal exercido pelo segundo."

Andrade acrescenta que a primeira dimensão e a imagem do referido sistema consistem na lei e nas instituições formais de controle – como a polícia, o sistema penitenciário e as próprias decisões judiciais – observando-se sua inserção em uma lógica global de controle social e interação com os elementos de controle informal – como a família, a escola, a mídia, a moral, a religião. Desse modo, cria-se, nas palavras de Alessandro Baratta, o “mito do Direito Penal igualitário”, existente entre as funções declaradas e as funções reais do sistema. Nesse sentido, o sistema implica uma eficácia invertida mediante uma eficácia simbólica que o estrutura, criando, reproduzindo e legitimando hierarquias com a tipificação e a punição de crimes e o olhar para criminalidade como algo externo:

"Referir a dimensão simbólica do sistema implica referir os discursos (as representações e as imagens) das Ciências criminais que, conjuntamente com o discurso da lei, tecem o fio de sua (auto)legitimação oficial, pois é do processo de reprodução ideológica do sistema do que aqui se trata. [...] é precisamente a Lei e o saber (Ciências Criminais), dotados da ideologia capitalista e patriarcal, que dotam o sistema de uma discursividade que justifica e legitima sua existência (ideologias legitimadoras), co-constituindo o senso comum punitivo reproduzido, por sua vez, pelo conjunto dos mecanismos de controle social [...] afunção latente e real do sistema não é combater (reduzir e eliminar) a criminalidade protegendo bens jurídicos universais e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao contrário, construí-la seletiva e estigmatizantemente e neste processo reproduzir, material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias sociais (de classe, gênero, raça)."

Destaca-se, então, que a palavra da vítima é desvalorizada, tratada com desconfiança e, quando considerada, passa por um certo direcionamento – mediante perguntas que induzem respostas específicas. A violência psicológica que lhe é exercida juntamente com a agressão física é relativizada, menosprezada, tornando seus traumas e seu sofrimento invisíveis aos olhos da justiça criminal e desencorajando a vítima a realizar uma denúncia contra seu agressor – isso sem abordar a extensa questão do tratamento despendido a mulheres em delegacias de proteção a elas, que também corrobora para o mesmo processo de violência.

Dessa forma, não há uma incriminação igualitária de condutas, distribuindo-se seletiva e desigualmente tanto a estigmatização de criminoso quanto a de vítima com um controle social classista e também identificado pelo simbolismo de gênero. As relações de propriedade e de trabalho são, na maioria das vezes, designadas ao homem, caracterizado como sujeito produtivo, viril e público. Por outro lado, o âmbito privado é reservado à mulher, mediante o aprisionamento de sua sexualidade, justificado pela função reprodutora, pela necessidade de dedicação aos filhos, ao trabalho doméstico e ao casamento, constituindo-se o cerne da dominação patriarcal e a imagem de fragilidade e passividade feminina como uma configuração natural e biologicamente determinada. Para Engels:

"O que se passa fora dos bastidores do tribunal, na vida real, e como se expressa este consentimento, não são questões que cheguem a inquietar a lei ou o legislador. [...]A desigualdade legal, que herdamos de condições sociais anteriores, não é causa e sim efeito da opressão econômica da mulher. [...]As coisas mudaram com a família patriarcal e, ainda mais, com a família individual monogâmica. O governo do lar perdeu seu caráter social. A sociedade já nada mais tinha a ver com ele. O governo do lar se transformou em serviço privado; a mulher converteu-se em primeira criada, sem mais tomar parte na produção social. [...]A família individual moderna baseia-se na escravidão doméstica, franca ou dissimulada, da mulher, e a sociedade moderna é uma massa cujas moléculas são as famílias individuais."

Assim, o padrão de homem ativo e improdutivo (no que tange ao trabalho e ao exercício de representatividade no âmbito público) corresponde à ideia de criminoso e à concepção de periculosidade no sistema criminal – no caso de agente de conduta sexual, corresponde a um estranho à vítima, portador de lascívia desenfreada (os casos reais já demonstraram ser, em geral, alguém próximo da mulher, mas é mais fácil culpar o outro, supor que essa violência não é empregada pelo cônjuge/namorado/vizinho/amigo/pai). Por sua vez, a personificação de mulher passiva moldada pela construção de gênero equivale à imagem de vítima nesse mesmo sistema. Para Vera de Andrade:

"É precisamente porque o núcleo do controle feminino no patriarcado é o controle da sexualidade  (implica preservação da virgindade e zelo pela reputação sexual), a violência contra a mulher será recortada pelo SJC como violência sexual e a mulher aparece explicitamente como vítima da violência sexual (no capítulo dos crimes contra os costumes), nuclearmente do estupro  [...] O SJC é ineficaz para proteger o livre exercício da sexualidade feminina e o domínio do próprio corpo. Se assim o fosse, todas as vítimas seriam consideradas iguais perante a lei e o assento seria antes no fato crime e na violência do que na conjunção carnal. E teriam do sistema o reconhecimento e a solidariedade para com a sua dor. Não é casual que ocorra o inverso."

E nas palavras de Vigarello:

"A distância social modula a escala de gravidade dos crimes em uma sociedade de classes, distribuindo o peso das violências segundo a condição das vítimas. A posição social é decisiva. A dignidade do ‘ofendido’ orienta o cálculo e indica a extensão do mal. O direito apenas determina a força. Legitima uma relação de poder; não se funda sobre a equivalência entre indivíduos, mas sobre uma hierarquia entre sujeitos.  [...] A pobreza do autor do estupro, ao contrário, aumenta a gravidade de seu gesto, consequência igualmente mecânica da distância social.[...] O privilégio social uniformiza e especifica o tratamento das violências antigas."

Desse modo, atenta-se mais às figuras estereotipadas de agressor e de vítima do que ao fato ocorrido, prevalecendo o que a autora chama de “lógica da honestidade”, vista tanto na criminalização primária (como na tipificação dos crimes e discursos legais) quanto na criminalização secundária (processo penal e decisões judiciais, por exemplo).

Frisa-se, então, que existe uma mentalidade coletiva propagada pela cultura do estupro e pelo próprio sistema de justiça de que sempre há uma vítima em potencial e que o perfil do estuprador é o mesmo. Na vítima se encontra a figura da mulher promíscua, de moral duvidosa, enquanto a imagem do estuprador representa um homem “anormal”, que não tem aptidão para conter seus instintos animalescos. A meu ver, a violência sexual ainda é considerada como um tabu, algo a não ser discutido, pois se traveste de um ato naturalizado, correspondendo ao que Milan Kundera aborda como kitsch: tal conceituação expressa um ideal estético que exclui de seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.

Tal concepção se dispõe como uma sublógica da seletividade que implica a distinção entre mulheres vistas como honestas (sob um viés da moral sexual dominante) e vítimas e aquelas consideradas desonestas (como a prostituta, por exemplo), que não se enquadram necessariamente como sujeito passivo de crimes sexuais na medida em que não se consideram adequadas aos arquétipos da moralidade sexual imposta à mulher. Conforme Danielle Ardaillon, “os julgamentos de estupro, na prática, operam [...] uma separação entre mulheres ‘honestas’ e mulheres ‘não honestas’. Somente as primeiras podem ser consideradas vítimas de estupro, apesar do texto legal.” Nesse sentido, Andrade alerta que:

"[...] o julgamento de um crime sexual – inclusive e especialmente o estupro – não é uma arena onde se procede ao reconhecimento de uma violência e violação contra a liberdade sexual feminina nem tampouco onde se julga um homem pelo seu ato. Trata-se de uma arena onde se julgam simultaneamente, confrontados numa fortíssima correlação de for as, a pessoa do autor e da vítima: o seu comportamento, a sua vida pregressa. E onde está em jogo, para a mulher, a sua inteira “reputação sexual” que é – ao lado do status familiar – uma variável tão decisiva para o reconhecimento da vitimação sexual feminina quanto a variável status social o é para a criminalização masculina."

Georges Vigarello acrescenta:

"A história dos julgamentos e processos mostra mais profundamente como a história do estupro não poderia ficar limitada à história da violência. É um emaranhado complexo entre o corpo, o olhar, a moral, que essa história vem lembrar. A vergonha, por exemplo, inevitavelmente sentida pela vítima, liga-se à intimidade imposta, à imagem que se oferece dela, à sua publicidade possível. Ela mobiliza o tema insondável da sordidez, o aviltamento pelo contato: o mal transpassa a vítima para transformá-la aos olhos dos outros. Essa vergonha varia inevitavelmente também com a história. É tanto mais dolorosa quanto mais o universo do pecado condenar conjuntamente os dois atores; é tanto mais pesada quanto mais o raciocínio ficar insidiosamente prisioneiro dessa certeza espontânea do contato aviltante. [...] Esses envolvimentos arcaicos dos atores em um mesmo universo de pecado expõem à plena luz aquilo que em nossas sociedades deslizou para a sombra, sem com isso apagar-se totalmente: o escândalo que atinge a vítima ao atingir o estuprador. É preciso que se altere a suposta ligação com o universo do pecado para que se altere a visão das gravidades."

A violência sexual é geralmente perpetrada em locais ermos ou em âmbito privado, longe de testemunhas, o que implica que, em muitos casos, as partes envolvidas sejam as únicas presentes no ato. Assim, geralmente se requer que o depoimento da vítima e o laudo de conjunção carnal sejam corroborados por outros elementos – quais sejam: questões da vida pregressa e da sexualidade da vítima, atentando-se ao seu pudor e moral sexual e implicando uma espécie de inversão do ônus da prova. Mariza Correa denota tal ilusão de igualdade jurídica no que concerne à aplicação da lei:

"A igualdade com que homens e mulheres parecem ser tratados numa instância ideológica que se expressa como se ignorasse os constrangimentos da realidade – os primeiros porque ignora sua reiterada contribuição à renda familiar, - é assim rapidamente transformada outra vez em desigualdade, tanto ao nível da argumentação utilizada para uns e outros como ao nível de possibilidades de legitimação de seus atos de violação do código penal."

Os requisitos que norteiam as decisões são equivalentes àqueles que moldam as fábulas concernentes às partes do processo. Tais premissas são alteradas pela linguagem forense, transformadas em “verdade real” e legitimadas pela moral, exposta como natural e eterna, enquanto as desigualdades se manifestam no tratamento simbólico do julgamento. Nesse contexto, Foucault afirma que:

"[...] a verdade não existe fora do poder ou sem poder. [...] A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer como funciona como verdadeiro."

Elucida-se, então, que a referida construção de verdade processual se vincula a sistemas de poder, os quais, no que se refere à violência sexual contra a mulher, funcionam de forma a legitimá-la e naturalizá-la sob o viés do formalismo jurídico e dos mecanismos processuais a ele inerentes, corroborando para a manutenção das relações hierarquizadas.

Por fim, denota-se que muitos casos de violência nem atingem o sistema de justiça –não denunciados, são mantidos silenciados no âmbito privado. Nesse sentido, Vigarello completa:

"A justiça dispõe de um ‘arsenal de amedrontamento’. Ela sabe se fazer temer pelo terror, como Foucault mostrou claramente. Encena penas de sangue para inculcar a lei. Gela de horror um povo chamado aos seus rituais de suplício, réplicas diretas da mão do soberano sobre o corpo do condenado, vingança brutal e ostensiva contra o ‘pecado’. Pode esmagar o culpado multiplicando seus sofrimentos. Gradua as penas aflitivas e aviltantes. [...] O gládio da justiça, seu recurso ao sangue, são feitos principalmente para amedrontar. Mas, além de esses rituais confirmarem o relativo desprezo pelo corpo, mutilando-o, legitimando essa violência que aflora incessantemente, construída como ‘modalidade da civilidade, como a guerra é uma modalidade de política’, além de sublinharem em seu requinte de tormentos uma estranha aceitação da ofensa física, eles não refletem – longe disso – o cotidiano da justiça [...]. Eles refletem, antes, o seu lado emergente, solene, que mascara um imenso lado insondável, feito de investigações não-concluídas e processos não-realizados.”


Notas e Referências:

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Disponível em: <ttps://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/ article/viewFile/15185/13811>

ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita Grin. Quando a vítima é mulher. Análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher/ Ministério da Justiça, 1987.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e política penal alternativa. Tradução por J. Sérgio Fragoso. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, n. 23, p. 7-21, jul./dez. 1978.

CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983

FRIEDRICH, Engels. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 9ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.

KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

VIGARELLO, Georges.  História do estupro: violência sexual nos séculos  XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.


Marília Cassol Zanatta  

Marília Cassol Zanatta é Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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