Violência doméstica e feminicídio: a autonomia da mulher e a abordagem integral como prevenção

25/01/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

A violência contra a mulher vem ocupando um espaço cada dia maior na mídia nacional, especialmente em função do aumento dessa forma de violência. Não obstante a política legislativa do Estado, com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha e da tipificação do feminicídio, os dados apresentados nos Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o homicídio de mulheres aumentou 15% em um período de 10 anos, entre 2006 e 2016[1].

Da mesma forma os dados em torno do feminicídio. O Mapa da Violência publicado em 2015 situou o Brasil na quinta pior posição no ranking de países com maior índice de homicídios de mulheres. A situação não melhorou nos anos seguintes: de 2016 para 2017, a taxa de homicídios de mulheres registrada como feminicídios aumentou 22%[2]. Esses índices afetam especialmente mulheres negras e aquelas na faixa etária entre 18 e 30 anos, grupos mais vulneráveis a esse crime.

Esses dados demonstram a ineficácia da política criminal adotada pelo Estado, até então privilegiando soluções pelo Direito Penal, e a necessidade de reforço em medidas diferenciadas, privilegiando o acolhimento e a autonomia dessas mulheres.

 

Feminicídio

Como forma de enfrentamento à violência contra a mulher, foi criada a qualificadora do Feminicídio (Lei nº 13.104/15). A medida possui importante valor simbólico, no sentido de chamar atenção da sociedade para o problema do homicídio de mulheres em razão do gênero, retirando essa violência da invisibilidade.

Entretanto, a busca por soluções através do Direito Penal e da pena há muito se mostram pouco efetivas, representando a expansão do poder punitivo do Estado sem um resultado na redução da criminalidade. A criação de uma qualificadora especificamente voltada para o feminicídio significa apenas a aplicação de uma pena mais grave para o homicídio motivado por razões de gênero. Ou seja, trata-se da clássica reação do Direito Penal, que somente ocorre a posteriori, quando ocorrido o crime, como repressão e não como tutela.

A compreensão da complexidade do crime de feminicídio, para além da simplificação que representa a sua tipificação, permite a busca por soluções mais efetivas e voltadas para a mulher.

Inicialmente, destaca-se que o feminicídio usualmente é o resultado de um ciclo de violência, que se inicia com agressões verbais e discussões que evoluem para agressões. Consiste, portanto, o feminicídio na “expressão mais severa de uma complexa rede de opressões sofridas pelas mulheres, consequência do machismo e da misoginia”[3]. Conforme dados do Datasus referentes ao ano de 2016, três entre cada dez mulheres que morreram no Brasil por causas ligadas à violência possuem registros de repetição de violência – nota-se que os dados apenas contabilizam a violência registrada, sem abarcar os diversos casos subnotificados.

Esse crime está intimamente ligado à relações afetivas e familiares entre autor e vítima, o que compõe um quadro socialmente complexo, caracterizado pela subordinação da mulher em relação ao homem e pela naturalização da opressão e da violência[4].

Tive a oportunidade de pesquisar em 2017, juntamente a Júlia Somberg, no âmbito do Diverso UFMG – Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero, a abordagem midiática do crime de feminicídio. Foram levantadas 75 notícias da mídia brasileira, concentradas no período de outubro de 2011 e fevereiro de 2017. Nessas manchetes, a palavra “ciúmes” foi utilizada vinte e uma vezes, “crime passional”, “briga” e “discussão” foram usadas duas vezes cada uma. Trinta e duas das manchetes estavam relacionadas à separação ou a algum tipo de rejeição.[5]

Isso permite perceber que o feminicídio não é simplesmente um crime de ódio às mulheres, mas ocorre no âmbito afetivo como resultado de um continuum de violência e opressão. Inicia-se por reações menores de ciúmes, que avançam para discussões, possessividade e agressões, muitas vezes terminando em uma fatalidade quando a mulher busca se emancipar pela separação. Nesse sentido, pontua a Promotora Valéria Scarance:

“Nenhum homem agride ou humilha a mulher no primeiro encontro. A dominação do homem se estabelece aos poucos. Inicialmente há a conquista e sedução. Depois, sob o manto do cuidado, tem início o controle, o isolamento da mulher dos amigos e familiares. Seguem-se ofensas, rebaixamento moral e agressão física. Estabelecem-se regras: chegar cedo, não fazer barulho, não usar roupas provocantes, não falar com outros homens, cozinhar e cuidar dos filhos, todas “para o bem da mulher e família”[6].

 

A tomada de consciência desse percurso e dos possíveis contornos mais graves que podem assumir os comportamentos machistas no âmbito afetivo e familiar é essencial para que as mulheres possam buscar ajuda, prevenindo a ocorrência de casos de feminicídio. Ou seja, um primeiro passo necessário é a ruptura da naturalização da violência contra a mulher, que não é apenas física, mas também pisicológica, sexual, patrimonial ou moral.

Conforme estudo qualitativo publicado pelo Senado Federal, esse primeiro passo já começa a ser observado. Conforme a pesquisa do OMV/Data Senado, a capacidade das brasileiras de reconhecerem as situações de violência aumentou de 18% em 2015 para 27% em 2017[7]. A busca por proteção também tem se intensificado. Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, indicam um aumento de 21% no número de medidas protetivas expedidas no Brasil no ano de 2017 em relação a 2016[8].

Ainda assim, apenas uma em cada três mulheres buscam a intervenção do Estado para enfrentar a violência sofrida[9].

Vale notar que, conforme pesquisa do OMV/Data Senado, as principais razões que levam mulheres a deixarem de denunciar a agressão sofrida são o medo de sofrerem mais violência – seja pelo agressor ou pelo Estado-, medo do agressor sofrer violência do Estado e o medo de não conseguirem sustentar a si ou aos filhos, bem como o risco de serem socialmente excluídas[10].

Em face a esses temores, necessário avançar para além das soluções tradicionais pela via do Direito Penal. É necessária a integração da Justiça criminal com a rede de serviços de atendimento às mulheres, a aceleração na concessão de medidas protetivas e ampliação do seu monitoramento, bem como a intensificação do patrulhamento específico. Ou seja, deve-se privilegiar o evitamento de novas violências, acolhendo as mulheres e promovendo o seu empoderamento através de uma abordagem integral e intersetorial dos casos de violência.

 

Lei Maria da Penha: a necessária abordagem integral e intersetorial

Considerada uma das mais modernas e completas leis de enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) possui uma abordagem integral, intersetorial e interdisciplinar, a qual precisa ser levada a sério e melhor efetivada.

Conforme destaca Carmen Hein de Campos, “o processo de concepção da Lei Maria da Penha é fruto de uma longa trajetória feminista”, marcado pelo estudo e discussões de ONGs feministas e pelo movimento de mulheres [11]. A Lei privilegia uma abordagem multidisciplinar concentrada na mulher, diferentemente da tradicional abordagem penal. Assim, busca primeiramente a segurança e acolhimento da mulher, bem como a promoção de sua autonomia psicológica e financeira, para melhor permitir sua emancipação.

Um exemplo da abordagem trazida pela lei são as medidas protetivas de urgência, que podem ser requeridas pela ofendida ou pelo Ministério Público e não dependem do registro de ocorrência, da apresentação de testemunhas ou de qualquer outro meio de prova. Revestem-se de um caráter preventivo e urgente, buscando romper a continuidade da violência. Podem se dirigir ao agressor, obrigando-o a uma conduta – como a suspensão do porte de armas, o afastamento do lar e a proibição de aproximação da ofendida –, ou podem se voltar para a ofendida, buscando a restituição de bens, a separação de corpos e o encaminhamento a programas de proteção. Essas medidas devem ser levadas a sério pelos Tribunais, com uma aplicação célere e com a intensificação de seu monitoramento.

É de grande importância o atendimento psicossocial da mulher, seus filhos e também do autor da violência. Assim, busca-se evitar que essas mulheres voltam a ser vítimas de violência. Além disso, essencial buscar a independência financeira das mulheres em situação de violência, com sua inclusão no mercado de trabalho, de modo a lhes conferir autonomia. No mesmo sentido, o acesso a programas de transferência de renda, acesso a creches, habitação popular, capacitação, dentre outros. Nesse ponto se torna essencial a articulação de organismos de políticas para as mulheres, de instituições, governamentais ou não, e da comunidade, que permitem ampliar as estratégias de prevenção e enfrentamento à violência doméstica.

Destaca-se ainda a rede de serviços de atendimento às mulheres em situação de violência. Essa rede agrega serviços não-especializados (unidades de atenção básica, equipes de programa de saúde da família, Centros de Referencia de Assistência social, etc) e serviços especializados, que atendem exclusivamente à mulheres (Centros de Atendimento à Mulher, Casas abrigo, Casas de Acolhimento provisório, delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs e os núcleos especializados da Defensoria Publica e do Ministério Público. Pela utilização desses diferentes serviços, buscam-se modelos de intervenção alternativos.

Por fim, é essencial que se rompa a cultura do silêncio, buscando o envolvimento da vizinhança, de comunidades em redes sociais e da família, os quais operam como importantes agentes de prevenção.

 

Conclusões

A violência contra a mulher é um problema antigo e estrutural, arraigado de modo profundo na sociedade, onde a opressão sofrida pelas mulheres se encontra naturalizada. O enfrentamento de um problema tão antigo e complexo, exige um trabalho articulado que possa oferecer alternativas e soluções para além do Direito Penal, buscando o empoderamento e a libertação de mulheres de suas redes de opressão, em tempo para que possam se emancipar e construir suas vidas.

 

 

Notas e Rerferências

ALVES, J. S.; BRENER, Paula; RAMOS, M. M.. Feminicídio, invisibilidade e espetacularização: refinamento da análise típica a partir dos marcadores de gênero. In: GOMES Mariângela Gama de Magalhães; FLAVIGNO, Chiavelli Facenda; MATA, Jéssica da. (Org.). Questões de gênero: uma abordagem sob a ótica das ciências criminais. Belo Horizonte: D'Placido, 2018, p. 209-232.

ALVES, J. S.; BRENER, Paula. O que é feminicídio?. In: RAMOS, M. M.; NICOLI, P. A. G.; BRENER, Paula. (Org.). Gênero, Sexualidade e Direito: uma introdução. Belo Horizonte: Initia Via, 2016, p. 162-172.

FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha e Gênero: quem é responsável pela violência contra as mulheres?. Jornal Forense. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/lei-maria-da-penha-e-genero-quem-e-responsavel-pela-violencia-contra-as-mulheres/13635>. Acessado em: 09/02/2017.

LAGARDE, Marcela y de Los Ríos. Género y feminismo: desarrollo humano y democracia, Madrid: Horas y horas, 1996.

__________. Antropologia, Feminismo y Políticia: violencia feminicida y derechos humanos de las mujeres. In: BULLEN, Margaret; MINTEGUI, Carmen Diez (Coord.). Retos Teoricos y Nuevas Prácticas. XI Congreso de Antropologia, San Sebastian, 2008.

MELLO, Adriana Ramos de Melo. Feminicídio: breves comentários à Lei 13.104/15. Direito em movimento, vol. 23, pp. 47-100, 2015.

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SEGATO, Laura Rita. Feminicidio y femicidio: conceptualización y apropriación. In: JIMÉNEZ, Patricia; RONDEROS, Katherine (eds.). Feminicidio: un fenómeno global de Lima a Madrid. Bruxelas: Heinrich Böll Stiftung, 2010, pp.5-6.

SAFFIOTI, Heleieth I. B.. Gênero, patriarcado, violência, 2ªed., São Paulo: Graphium Editora, 2011.
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WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher, trad. par. Ivania Pocinho Motta, São Paulo:  Boitempo, 2016.

[1] Atlas da violência 2018. Ipea. Rio de Janeiro, junho de 2018. Vale notar que, apesar de uma redução significativa na taxa de homicídio de mulheres logo após a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, tal redução não se manteve, levando ao crescimento do número de homicídios de mulheres apontado.

[2] Atlas da violência 2018. Ipea. Rio de Janeiro, junho de 2018.

[3] ALVES, J. S.; BRENER, Paula; RAMOS, M. M.. Feminicídio, invisibilidade e espetacularização: refinamento da análise típica a partir dos marcadores de gênero. In: GOMES Mariângela Gama de Magalhães; FLAVIGNO, Chiavelli Facenda; MATA, Jéssica da. (Org.). Questões de gênero: uma abordagem sob a ótica das ciências criminais. Belo Horizonte: D'Placido, 2018, p. 209-232.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha e Gênero: quem é responsável pela violência contra as mulheres?. Jornal Forense. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/lei-maria-da-penha-e-genero-quem-e-responsavel-pela-violencia-contra-as-mulheres/13635>, Acessado em: 09/02/2017.

[7] Aprofundando o olhar sobre o enfrentamento à violência contra mulheres. Pesquisa OMV/DataSenado, Brasília: Senado Federal, Observatório da Mulher contra a violência, março de 2018.

[8] O poder judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha – 2018. Conselho Nacional de Justiça – CNJ, Departamento de Pesquisas Judiciárias, 2018.

[9] Aprofundando o olhar sobre o enfrentamento à violência contra mulheres. Pesquisa OMV/DataSenado, Brasília: Senado Federal, Observatório da Mulher contra a violência, março de 2018.

[10] Aprofundando o olhar sobre o enfrentamento à violência contra mulheres. Pesquisa OMV/DataSenado, Brasília: Senado Federal, Observatório da Mulher contra a violência, março de 2018.

[11] CAMPOS, Carmen Hein de. Lei Maria da Penha: necessidade de um novo giro paradigmático. RBSP v. 11, n. 1, Fev/Mar 2017.

 

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