Violência de gênero e as medidas protetivas à mulher – Por Ricardo Antonio Andreucci

10/03/2016

A Constituição Federal de 1988, além de estabelecer que a família pode ser constituída por outras entidades além do casamento (CF, art. 226), equiparou, no Capítulo VII, homens e mulheres em direitos e obrigações (princípio da isonomia), estabelecendo como paradigma o princípio da dignidade da pessoa humana.

Adotou a Constituição Federal, também, no art. 227, a Doutrina da Proteção Integral relativa à criança e ao adolescente, que culminou com a edição da Lei n. 8.069/90 — Estatuto da Criança e do Adolescente.

Com relação ao idoso, a Constituição Federal amparou-o também de maneira integral no art. 230, tendo ocorrido a efetiva implementação da tutela do idoso com o advento da Lei n. 10.741/2003 — Estatuto do Idoso.

O mesmo ocorreu com os portadores de deficiência física, sensorial e mental, que tiveram sua efetiva inserção social garantida pelo art. 227, II e § 2º, da Constituição Federal, sendo editada a Lei n. 10.098/2000 e, mais recentemente, a Lei nº 13.146/15, denominada Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Urgia, portanto, que o mesmo tratamento fosse dispensado à mulher em situação de violência doméstica e familiar, coroando o legislador a tutela dos vulneráveis com a edição da Lei n. 11.340/2006 — Lei da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Promulgada no Brasil pelo Decreto n. 4.377/2002, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada e aberta à assinatura, ratificação e adesão pela Resolução n. 34/180, da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 18 de dezembro de 1979, foi baseada na constatação de que, apesar da existência de diversos instrumentos internacionais visando a garantia dos direitos humanos e recriminando qualquer forma de discriminação, as mulheres continuam sendo objeto de grandes discriminações.

Estabeleceu a referida convenção que a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito à dignidade humana, dificultando a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constituindo um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e impedindo a mulher de servir o seu país e a Humanidade em toda a extensão das suas possibilidades. Em situações de pobreza, a mulher tem um acesso mínimo à alimentação, aos cuidados médicos, à educação, à capacitação e às oportunidades de emprego e à satisfação de outras necessidades, sendo certo que o estabelecimento da nova ordem econômica internacional, baseada na eqüidade e na justiça, contribuirá de forma significativa para a promoção da igualdade entre homens e mulheres.

Assim é que, para os fins da convenção, a expressão “discriminação contra as mulheres” significa toda distinção, exclusão ou restrição fundada no sexo e que tenha por objetivo ou conseqüência prejudicar ou destruir o reconhecimento, gozo ou exercício pelas mulheres, independentemente do seu estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

No mesmo sentido, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, datada de 1994, promulgada pelo Decreto n. 1.973/96, e denominada “Convenção de Belém do Pará”, também previu que se deve entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.

No Brasil, preceituando que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos, a Lei n. 11.340/2006 estabeleceu, no art. 5º, que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I — no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II — no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III — em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

No parágrafo único, inclusive, ficou estabelecido que as relações pessoais enunciadas no art. 5º independem de orientação sexual, prevendo a lei, portanto, expressamente, sua incidência também à família homoafetiva.

O legislador, portanto, fixou o âmbito espacial para a tutela da violência doméstica e familiar contra a mulher, o qual compreende as relações de casamento, união estável, família monoparental, família homoafetiva, família adotiva, vínculos de parentesco em sentido amplo, introduzindo, ainda, a idéia de família de fato, compreendendo essa as pessoas que não têm vínculo jurídico familiar, considerando-se, entretanto, aparentados (amigos próximos, agregados etc.).

Nesse aspecto, com muita propriedade lecionam Luiz Antonio de Souza e Vitor Frederico Kümpel (Violência doméstica e familiar contra a mulher: Lei n. 11.340/06. São Paulo: Método, 2007, p. 70) que, “muito embora tenham sido enunciadas de maneira bastante clara a enorme incidência de relações familiares e a nova noção de família de fato, que liga pessoas que meramente se consideram próximas pelos mais variados motivos (desde a finalidade econômica e assistencial, até a contratual), o legislador fez incluir expressamente os homossexuais quando estabeleceu no parágrafo único ser irrelevante a orientação sexual para fins de proteção legal”.

E concluem os citados juristas que “diante do amplo aspecto da lei até relações protegidas pelo biodireito passam a ser tuteladas, de maneira que, se o transexual fizer cirurgia modificativa de sexo e passar a ser considerado mulher no registro civil, terá efetiva proteção”.

A Lei Maria da Penha, outrossim, previu diversas medidas reagentes, inclusive de urgência, visando resguardar a mulher em situação de violência doméstica e familiar.

As medidas administrativas gerais reagentes fixadas pela lei serão prestadas de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstas na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas, inclusive emergencialmente, quando for o caso.

No âmbito das medidas administrativas gerais reagentes emergenciais, poderá o juiz:

a) determinar, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal;

b) assegurar à mulher, para a preservação de sua integridade física e psicológica, o acesso prioritário à remoção, quando servidora pública integrante da administração direta ou indireta;

c) assegurar à mulher, para a preservação de sua integridade física e psicológica, a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até 6 meses.

Nessa última hipótese, a lei não esclarece quem seria responsável pela remuneração da mulher afastada do local de trabalho por até 6 meses, não esclarecendo, também, se esse afastamento seria remunerado. Entendemos que a remuneração, nesse caso, é fundamental e imprescindível para a manutenção da mulher em situação de violência doméstica e familiar. Não seria cabível, entretanto, que ficasse essa remuneração a cargo do empregador, situação que, a médio prazo, ocasionaria indiretamente maior discriminação da mulher no mercado de trabalho. O mais adequado seria a criação, no âmbito da seguridade social, de um benefício previdenciário para a remuneração da mulher afastada emergencialmente do trabalho por ordem judicial.

Outrossim, prevê a lei que a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá também o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), além de outros procedimentos médicos necessários e cabíveis no caso de violência sexual.

No âmbito das medidas de natureza policial, é necessário que a mulher submetida a situação de violência doméstica e familiar tenha pronto e eficaz atendimento em sede policial, já que, na maioria dos casos, são as delegacias de polícia que primeiro têm contato com os casos concretos.

Para tanto, estabeleceu a lei, no art. 11, uma série de providências que deverá tomar a autoridade policial no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar. São elas, dentre outras:

a) garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;

b) encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;

c) fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;

d) se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;

e) informar à ofendida os direitos a ela conferidos pela referida lei e os serviços disponíveis.

Além disso, em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, após fazer o registro da ocorrência, estabeleceu o art. 12 da lei que a autoridade policial deverá, de imediato, adotar os seguintes procedimentos, sem prejuízo dos demais já previstos pela legislação processual penal:

a) ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;

b) colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;

c) remeter, no prazo de 48 horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência. O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e deverá conter a qualificação dela e do agressor, o nome e a idade dos dependentes e a descrição sucinta do fato e das medidas protetivas por ela solicitadas. A autoridade policial deverá anexar a esse documento o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da ofendida, admitindo-se como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde;

d) determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;

e) ouvir o agressor e as testemunhas;

f) ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;

g) remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.

No âmbito judicial,  estabeleceu a lei de violência doméstica e familiar contra a mulher diversas medidas protetivas de urgência, a serem tomadas pelo juiz, tão logo receba o expediente com o pedido da ofendida, já mencionado no item “c” do tópico anterior.

Recebido, portanto, o expediente com o pedido da ofendida, deve o juiz, no prazo de 48 horas, segundo dispõe o art. 18 da lei:

a) conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;

b) determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso;

c) comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.

Deve ser ressaltado que as medidas protetivas de urgência somente poderão ser concedidas pelo juiz a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida. Preservou a lei, nesse passo, o princípio da inércia da jurisdição (ne procedat judex ex officio), vedando o juiz a concessão de ofício das medidas protetivas de urgência. Não pode o juiz, portanto, a seu alvedrio, conceder medidas prote­tivas de urgência, devendo respeitar a vontade da ofendida e o entendimento do Ministério Público, únicos legitimados a requerer a cautela.

Note-se que o requerimento das medidas protetivas de urgência pode ser feito pela ofendida em sede policial e também em sede judicial, pessoalmente ou assistida por órgão de assistência judiciária (Defensoria Pública).

Dependendo do caso, as medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz de imediato, independentemente de audiência das partes (inaudita altera pars), mas desde que formulado o pedido pela ofendida ou pelo Ministério Público. No caso de concessão imediata das medidas, independentemente de manifestação do Ministério Público, deverá este ser prontamente comunicado.

As medidas protetivas de urgência podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, ou, ainda, ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos na lei forem ameaçados ou violados.

Poderá o juiz, ainda, desde que a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, caso entenda necessário para a proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio. Caso a concessão dessas medidas se dê a pedido da ofendida, deverá ser ouvido previamente o Ministério Público.

As medidas referidas nesse artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo ser comunicado o Ministério Público da providência.

Poderá também o juiz requisitar, a qualquer momento, para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, o auxílio da força policial.

Arrolou a lei, ainda, no âmbito das medidas protetivas de urgência, outras que dizem respeito especificamente à integridade física e ao patrimônio da ofendida e de seus dependentes.

Assim, segundo dispõe o art. 23, poderá o juiz, quando necessário:

a) encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

b) determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

c) determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

d) determinar a separação de corpos.

Já no que se refere à proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, poderá o juiz determinar, liminarmente, as seguintes medidas:

a) restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

b) proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial, devendo ser comunicado o cartório competente;

c) suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor, devendo ser comunicado o cartório competente;

d) prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

Portanto, ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei n. 11.340/2006, denominada popularmente “Lei Maria da Penha”, tem como missão proporcionar instrumentos adequados para enfrentar um problema que aflige grande parte das mulheres no Brasil e no mundo, que é a violência de gênero, uma das formas mais preocupantes de violência, já que, na maioria das vezes, ocorre no seio familiar, local onde deveriam imperar o respeito e o afeto mútuos.


Curtiu o artigo???

Conheça os livros de Ricardo Antonio Andreucci!

JUR_Andreucci


 

Imagem Ilustrativa do Post: Won't you help to sing these songs of freedom? // Foto de: Alessandro Valli // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/liquene/3970385472

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura