Vila dos Confins - Na literatura, um retrato autêntico do sertão que não se confunde com a cultura sertaneja televisiva

12/01/2016

Por Luiz Ferri de Barros - 12/01/2016

Em entrevista a Ziraldo, referindo-se à importância da leitura para o bom exercício da política, certa vez o ex-governador de Santa Catarina, Luiz Henrique, contou: "Um dia ainda vou escrever um livro sobre as minhas conversas com o Ulysses Guimarães. [...] Tinha um deputado apagado, que não falava [...] Um dia ele foi ao gabinete do Ulysses levar um livro e disse: ´Dr. Ulysses, eu gostaria que o senhor me homenageasse com a leitura do meu livro´. Era um romance, aquele tipo de edição pobre, com brochura bem modesta. Aquele tipo de livro que você tem que pegar a espátula e ir abrindo as páginas. Uma tipografia antiga. E aquele livro ficou lá mofando na biblioteca do Ulysses. Um dia ele leu uma reportagem na revista Realidade, que era um show na época, falando de um livro. Que era o livro da década. E era justamente o livro que tinha sido dado a ele. O deputado era o Mário Palmério e o livro, Vila dos Confins. Aí, o Ulysses foi mais do que depressa abrir as páginas do livro com uma espátula e foi ler".

O fio condutor da narrativa de Vila dos Confins, publicado em 1956, é a visita de um deputado federal à cidadezinha sertaneja recém alçada à condição de município, para apoiar seus correligionários nas eleições locais.  Por conta desta história, o escritor (o tal "apagado deputado", Mário Palmério) disseca impiedosamente as práticas tradicionais e fraudulentas da política partidária e eleitoral.

Mas, se as artimanhas eleiçoeiras dos caciques políticos, dos candidatos, coronéis, jagunços e cabos eleitorais compõem o eixo do romance, são as histórias de caçadas, pescarias, boiadas e boiadeiros e outras coisas fabulosas do sertão que constituem o cerne do livro.

Histórias. A pesca do surubim, a do dourado, a pesca de timbó (cipó venenoso que esmigalhado e jogado n´água mata peixes), a pesca de cabaça (linhas com anzóis lançadas rio abaixo presas em cabaças flutuantes), a pesca de bundada (o piraquara – caboclo ribeirinho – bate a bunda na canoa e os peixes pulam para dentro).  Histórias de caçada: é insuperável a narrativa da captura de uma onça jaguarana, das grandes, dentro de sua loca de pedra. Outra história descreve como a sucuri captura um boi adulto na beira da lagoa.

Rachel de Queiroz, que prefaciou Vila dos Confins, considerava que as histórias do livro pareciam histórias de mentiroso, de tão saborosas. Mas, não são assim mesmo todas as boas histórias de pescaria e caçada, inclusive e principalmente as verdadeiras?

São infindáveis os casos do sertão dos Confins e, para quem conheceu a vida na roça ou no sertão mais de 50 anos atrás, trata-se de uma agradável e saudosa visitação a um mundo onde se vive inigualável e contundente realidade, entremeada embora por misticismo e fantasia.

Para quem não conheceu o sertão, ou a roça, é ler para conhecer.

"Currutela de lugar a Vila: a igreja, um punhado de casas de adobo e de telhas, e uma porção de ranchos de taipa e folha de buriti. Rua mesmo, uma só: começando na igreja e acabando no cemitério, tal e qual a vidinha do povo que mora lá."

O sertão dos Confins situa-se em Minas Gerais; "entretanto, se a Vila dos Confins não aparece em mapa algum, a despeito de existir o lugarejo desde o tempo das sesmarias, a culpa não é da Vila, nem de ninguém de lá. Culpa mesmo do Governo, que, afinal de contas, sempre foi, é e será ele o culpado de tudo o que acontece de errado e malfeito por esse mundo de Nosso Senhor."

O mineiro Mário Palmério foi homem de vários ofícios.  De bancário, em São Paulo, passou a professor de matemática e, a seguir, alçando-se como educador de grande iniciativa fundou inúmeros colégios técnicos e escolas superiores em Uberaba, entre elas as Faculdades de Odontologia, de Direito e de Medicina do Triangulo Mineiro. Deputado federal por três mandatos, após publicar Vila dos Confins e Chapadão do Bugre, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a vaga de Guimarães Rosa. Daí, um belo dia despachou-se para o Amazonas, onde passou cerca de oito anos morando num barco, contando, ouvindo e coletando histórias nas aldeias ribeirinhas. Histórias que, entretanto, jamais escreveu ou publicou. Faleceu em 1996, aos 80 anos de idade. Trata-se de um escritor imortal.  Não por ter pertencido à Academia, mas por ter escrito Vila dos Confins, um livro que jamais será esquecido.

Ótima leitura para as férias. Ótima oportunidade para conhecer histórias de um sertão autêntico, que nada tem que ver com a ridícula cultura sertaneja pasteurizada e desvirtuada das novelas, documentários e programas de cantorias da televisão.


Serviço:

Vila dos Confins, de Mário Palmério. José Olympio, 2003; 294 págs.


Publicado originalmente no Diário do Comércio. São Paulo, 2003.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br 


Imagem Ilustrativa do Post: Um mundo chamado Sertão // Foto de: Otávio Nogueira // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/55953988@N00/8147732145

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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