VIGILÂNCIA E EXTERMÍNIO À QUEIMA ROUPA: 17 ANOS CONTRA A PAREDE

14/03/2023

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Não é paredão do Big Brother Brasil. É o paredão da vida real da periferia, registrado por câmeras de segurança, em caríssimos milésimos de segundos, a morte truculenta e covarde de um jovem de 17 anos à queima roupa. Esta é a ilustração concreta do que acontece diariamente nas periferias do Brasil, um país no qual os agentes do Estado só sobem o morro para exterminar vidas de jovens e de crianças, lugar onde o estado de exceção é legitimado.

É com esta cena que problematizaremos aqui o fracasso das forças de segurança do estado brasileiro, com uma retórica crítica, inspirada da teoria marxiana e alinhada com as transformações às quais estão envoltas a nossa sociedade.

A violência urbana é um problema característico tanto de países em desenvolvimento, como das áreas marginalizadas e periféricas dos países ricos. Nas sociedades marcadas pela desigualdade social, nota-se que a relação entre policiais e sociedade civil se apresenta sob tensões bastante elevadas, gerando números estarrecedores de uma polícia que muito mata, mas também muito morre (PESCHANSKI E MORAES, 2015).

À medida que avança a produção de miséria em decorrência da desassistência social e política, aumentam também os índices de violência na sociedade. Wacquant (2011) tece suas análises afirmando que a intensificação da violência fragiliza as relações de trabalho na sociedade e, consequentemente, as condições de vida da população. Ele afirma ainda que o próprio Estado acaba num looping, se percebendo na sua incapacidade de conter a fragmentação do acesso ao trabalho assalariado provocada por ele mesmo, fator que manteria a população sob controle.

Para ilustrar esta reflexão, recorremos ao vídeo que viralizou nas redes sociais brasileiras nas duas últimas duas semanas, em que policiais atiram contra um adolescente de 17 anos, contra a parede, no estado do Espírito Santo. As imagens são autoexplicativas quanto ao uso abusivo da força policial, especialmente pela visível desproporção que a cena apresenta: um adolescente rendido e desarmado foi covardemente assassinado à queima roupa, retroalimentando um sistema punitivista, classista, racista e todos os possíveis “istas” que consolidam a diferença numa sociedade sustentada pela produção da miséria e pela luta de classes.

O que nos assusta é que não são casos isolados. Não são situações de desvio individual acerca das condutas policiais. São a regra, trata-se de um padrão, “é uma escolha encarar o crime como uma forma de enfrentamento” (MENA, 2015, p. 20). Observa-se, com isso, que as políticas criminais implantadas sob o manto do neoliberalismo adensam as diferenças quando o público em questão advém das zonas periféricas, em especial, quando são jovens, negros e empobrecidos pelo sistema capitalista.

A articulação direta engendrada pelas políticas econômicas e assistenciais do projeto neoliberal e pela adesão da população à barbárie promovem uma reforma sociossimbólica, reconstruindo e reconfigurando o próprio Estado (BATISTA, 2015), além das subjetividades que aderem a este modelo de Segurança Pública, creditando a ele a possibilidade de combater a criminalidade com ostensividade e violência, legitimando seu papel de agente “regulador” da paz e da harmonia sociais, através do uso da bala.

É a Roda Viva do sistema que transforma o Estado em Estado Penal, como problematiza Wacquant (2011), e passa a gerir a potência juvenil através da vigilância, do cerceamento e do assujeitamento de suas vidas, pois, nesse casos, prevenção e repressão se confundem “sem nuances, sem disfarces” (BATISTA, 2015, p. 92).

Agindo desta forma, o Estado gera desesperança e violência, que passam a se intensificar cada vez mais e se acumular especialmente nas periferias dos grandes centros urbanos (WACQUANT, 2003).

Sobre a realidade de países como Brasil, o autor acrescenta: 

A penalidade neoliberal é ainda mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século (Wacquant, 2003, p. 09). 

Mas o que fazer diante das ações de truculência da polícia brasileira que se situam dentro dos limites do Estado de Direito, e que “reivindica o monopólio da violência legítima, mas não a disposição ilimitada sobre a vida”[1]? Quais mecanismos podem ser convocados a atuar a favor da juventude negra, de modo que esta violência não se perpetue contra ela? Existem formas concretas de coibir tanta violência contra uma população que, historicamente, vive às custas das migalhas produzidas por um sistema que a oprime e a vigia constantemente?

Desde o século XVII, aqueles e aquelas que rompem com as normativas sociais, que incomodam a roda produtiva do capital, que extrapolam a “normalidade”, são alvos do olho incessante e perspicaz do Estado (BECCARIA, 2017; FOUCAULT, 1987). Mesmo aqueles e aquelas que não atuam, de fato e de direito, com a ruptura das leis, têm sido fortemente atingidos, não só pelos olhares, mas pelas mãos de ferro da polícia, enquanto Aparelho Ideológico Repressivo que atua de forma contrária à manutenção da vida e à promoção de direitos (ALTHUSSER, 1970). Assim, criminaliza-se a pobreza, a negritude, a juventude periférica e tudo que advém deles; e mata-se a população a quem se deveria proteger e atenuar as consequências da miséria que o próprio Estado perpetua sobre eles e elas.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2020, “ações policiais ocasionaram mais de 6 mil mortes no Brasil” (FBSP, 2021). Na contramão da violência, há estudos e experiências sendo colocadas em questão para minimizar as tragédias diárias provocadas pela truculência policial. Contudo, mesmo as chamadas câmeras corporais acopladas aos uniformes dos policiais militares, cujas promessas sobre elas é de que seriam uma revolução no campo da prevenção à violência letal provocada pela polícia, não apresentaram efeito seguro e os resultados das experiências não foram satisfatórios.

Ao que se vê, uma mudança de fora para dentro não será eficaz quando o problema está na base, na forma de conceber uma política que afeta diretamente as vidas dos jovens. No nosso horizonte, é preciso condensar ações que pretendam o respeito à vida e a igualdade de oportunidades. Para isso, é preciso questionar, resistir e superar a ordem capitalista neoliberal que, em nada, contribui para o resgate dos povos massacrados por esta lógica. Não há reformas dentro de um projeto neoliberal, é preciso superar a desordem das coisas e imprimir a prioridade de ações: o respeito à vida com dignidade.

Enquanto colocarmos nos ombros dos policiais a solução para o enfrentamento da violência, falharemos vergonhosamente, violando cada vez mais os direitos daqueles e daquelas a quem esta polícia deveria proteger. Atirar contra um jovem de 17 anos desarmado e rendido consiste numa ação que apregoa um ideário de policiamento que que chega ao máximo no que tange à violabilidade de direitos, pois extermina vidas. É o biopoder sendo posto em prática.

Através da arte, Dandara Manoela, dá o tom: 

É choro perdido, é tiro encontrado, é corpo no chão

Todo mundo assustado e parece que foi só uma confusão

E se não acredita e quer conferir, desligue a televisão e vai dar na janela

Na sua janela, olha que situação[2] 

Ao que se conclui, o Big Brother da vida real só espia o que é oportuno. Suas câmeras registram jovens pretos que resistem ainda vivos, mas não enxergam a fome que abate suas casas e suas famílias. Não identifica, através das provas dos não líderes, que eles são os resistentes e que gritam por justiça social. As câmeras do Big Brother não abrem para o jovem preto, periférico que, como Zumbi, um dia, gritou por liberdade.

 

Notas e referências

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Editorial presença, 1970.

BATISTA, V. M. Estado de polícia. In B. Kucinski & cols. (Orgs.), Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (pp. 91-96). São Paulo: Boitempo, 2015.

BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. São Paulo, Martin Claret, 2017.

FBSP. (2020). Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, v. 14, 2020.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

MENA, F. Um modelo violento e ineficaz de polícia. In B. Kucinski & cols. (Orgs.), Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (pp. 19-26). São Paulo: Boitempo, 2015.

PESCHANSKI, J. A.; MORAES, R. As lógicas do extermínio. In B. Kucinski & cols. (Orgs.), Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (pp. 61-68). São Paulo: Boitempo, 2015.

WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

­­­­­WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

[1] Relatório de pesquisa: Operações policiais e violência letal no Rio de Janeiro: os impactos da ADPF 635 na defesa da vida. Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) da Universidade Federal Fluminense. http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/04/Relatorio- audiencia_balanco_final_22_03_2021-1.pdf.

[2] Letra da música “Dona Georgina”, interpretada por Dandara Manoela, mulher negra que empresta sua voz à luta pela resistência de seu povo e como forma de compromisso com sua ancestralidade.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: ¡¡No a la violencia!! // Foto de: Pato sin charco // Sem alterações

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