Vida (in) comum e (des) amor conjugal: os «demônios» da ruptura (Parte 1)

29/01/2016

Por Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez - 29/01/2016

“Amor mío, no te quiero por vos ni por mí ni por los dos juntos, no te quiero porque la sangre me llame a quererte, te quiero porque no sos mía, porque estás del otro lado, ahí donde me invitás a saltar y no puedo dar el salto, porque en lo más profundo de la posesión no estás en mí, no te alcanzo, no paso de tu cuerpo, de tu risa, hay horas en que me atormenta que me ames,... me atormenta tu amor que no me sirve de puente porque un puente no se sostiene de un solo lado.

J. Cortázar

Nenhum procedimento legal, nenhuma norma ou ação judicial poderão ser jamais o bastante velozes como para seguir de perto o momento tremendo em que um casal decide romper seu matrimônio, porque a verdadeira “causa” (s) da ruptura precede em muito tempo a decisão de divociar-se/separar-se. E quando esta chega, nem Deus sabe o que fazer.

Da situação anímica que impulsou a promessa de duas pessoas a permanecerem unidas “por todos os dias de suas vidas” não somente não resta nada, senão que em ocasiões se transforma em um verdadeiro ninho de egoísmo insano e agravos recíprocos, com consequências que chegam às vezes à agressão moral (física) e/ou ao sofrimento desnecessário. Um acúmulo de cinzas arrastadas pelos silenciosos e assoladores ventos da discórdia. Os exemplos gritam e os números cantam.

Em determinadas ocasiões, matrimônios contaminados pela busca da novidade: sexo novo, amores novos, uma nova visão do mundo, uma nova «super-família-mais-unida», um novo e bonito começo antes que seja demasiado tarde “para ser feliz”. Um ato de esperança![1] Em outras, a simples consciência de uma convivência radioativa que leva à ruína os despojos de uma vida frustrada antes da retirada definitiva. Com frequência um dos cônjuges chega a odiar ou menosprezar a quem amou em outra época. Uma pessoa que no passado produziu uma profunda emoção positiva, agora se apresenta como proporcionalmente negativo e o sentimento atual, motivado pela desleal memória,  se incumbe de exagerar tudo o que resulta inaceitável.[2]

Embora ansiemos a continuidade, a pugna psicológica, a dor provocada pelo desafeto e/ou a indiferença recíproca simplesmente amplificam as acumuladas ofensas que minaram pouco a pouco, mas de modo irreversível, por falta de confiança na emenda mútua, a harmonia do casal. Na mente dos protagonistas, a história do matrimônio é reescrita como um estado destinado ao fracasso e o amor um ingênuo “espelhismo”. Sobram as palavras e a caída revela a evidência de que a vida nunca é como inquietamente a sonhamos. É o momento de remediar os sonhos e as otimistas promessas de amor eterno que a realidade se encarregou de aniquilar. É o momento de armazenar na mente a dor terrível pelo sucedido, e com ela a angústia de sentir-se desnudo ante a própria insegurança e o arrependimento; é o momento da ruptura, e com ela o abandono da asfixiante soga da dependência emocional.

Mas a vida segue, a vida cambia e, de quando em quando, a vida olvida. Agora é hora de encontrar culpados, de ruminar os lamentos, de enfrentar-se à guerra interior contra as próprias paixões, de reflexionar sobre os motivos da separação, de “reiniciar”, de não olvidar em que se converteu nosso mundo e «por que», de suspender a evidência de que sobre as razões dos demais só se pode especular e de olvidar que nunca existe uma única causa, senão um conjunto de contradições, um “nexus” ou confluência de motivos para uma atitude dificilmente discernível (incluindo a inexistência de motivos que impediriam o corrido em uma relação exigente cognitiva e emocionalmente).[3]

E dado que o ser humano, sempre complicando a vida, é uma fabulosa máquina de fabricar motivos (e a memória uma história subjetiva maleável que nos dizemos a nós mesmos), os «heróis» e/ou «heroínas» de uma relação agonizante, guiados preponderantemente pelo incessante fluxo de intuições e emoções, não são capazes de dar-se conta de que, ao ver uma única causa possível (o «outro»), já não buscarão mais explicações. Imersos em uma experiência vital concreta hostil, se excedem em seu entusiasmo autocomplacente e se tornam extremamente sensíveis ao anelo de ver pautas onde só há ruído aleatório, de encontrar relações causais onde não existem e de entregar-se sem reservas ao irracional medo do desconhecido; quer dizer, catastroficamente incapazes de conceber sequer a possibilidade de estarem equivocados em seus diagnósticos e prognósticos.

É um fato conhecido que a intuição humana é uma guia da realidade notoriamente pobre[4]. Também é deveras sabido que não julgamos igual os atos dos demais e os próprios, que vemos muito bem “la paja en el ojo ajeno pero no la viga en el propio”. Sofremos de uma grande quantidade de vieses cognitivos que distorcem nossa visão do mundo e de nós mesmos. Somos cegos aos nossos próprios equívocos, tendenciosos em nossas avaliações, e muitas vezes não serve de nada que nos expliquem, porque seguiremos pensando o mesmo[5]. Ademais, está o que se conhece como «erro fundamental de atribuição»: uma assimetria - demasiado recorrente em relações conjugais - na atribuição da causa quando estamos considerando a conduta alheia em oposição à nossa própria.

A ideia fundamental é que, ao intentar compreender o comportamento dos demais, as pessoas tendem a atribuir à conduta observada uns fatores de personalidade, em contradição às características das situações. Ao fim e ao cabo, é fácil explicar o comportamento dos demais em termos de personalidade (tanto no que se concerne aos traços relativos ao «caráter» como os vinculados com o «temperamento»), especialmente quando os conceitos e os correlatos de nossas «teorias da personalidade» intuitivas não estão bem definidos (por exemplo: «Sabia que faria isto porque é uma pessoa muito egoísta, um canalha pervertido»).

Por outro lado, quando interpretamos nossas próprias ações, costumamos explicá-las desde uma perspectiva das circunstâncias em que nos encontramos (por exemplo: «Explodi porque me encontrava em uma situação insuportável e baixo muito stress»). Somos sempre vítimas das circunstâncias; os demais, vítimas de uma personalidade viciada e/ou de um caráter débil ou deformado.

A personalidade/caráter rege a conduta dos demais, mas a situação o faz com a nossa. Assim que ao tratar de compreender ou quando penso nas atitudes de meu companheiro (a) percebo que sua personalidade destaca sobre um fundo de diferentes situações, isto é, não tenho nenhum problema para julgar que seu comportamento se baseia fundamentalmente em um determinado tipo de temperamento ou tendências que contribuem à incoerência das pautas de sua vida emocional, de seus pensamentos e de seus atos. Ao tratar de compreender ou explicar minhas próprias ações percebo os câmbios das circunstâncias destacados sobre o fundo estável e fiável de meu caráter, de meu «eu»[6]. Minha ablepsia unicamente se aplica a meus próprios motivos e atos, não aos dos demais.

Em outras palavras, “não existe o bem e o mal, só meu bem e vosso mal” (L. Bruce): miramos em nosso interior e vemos objetividade, miramos em nosso coração e vemos bondade e honradez, miramos em nossa mente e vemos racionalidade, miramos a nossas crenças e desejos e vemos a realidade, miramos a nossas razões, motivos e preferências e vemos infalibilidade. Tendemos a confundir nossos modelos da realidade com a realidade mesma. Como vítimas inocentes dos estragos produzidos pelas circunstâncias, o nosso é o mundo verdadeiro, evidente e normal (a despeito de todo e qualquer indício em contra); desquiciado, egoísta, falso, ilusório, excêntrico, profano, sacana, infiel, disparatado ou ao menos estúpido é o mundo de nosso cônjuge: «Por que meu companheiro (a) não é, nem nunca foi, tão razoável como eu?».

Mas há algo mais. Esta forma de pensamento flácido, esta tendência a dar as explicações que necessitamos e de justificar favoravelmente o que fazemos, pensamos, elegemos e decidimos, tem uma série de consequências no que à coexistência e à dissolução se refere, entre elas «três» muito frequentes suposições sobre os vícios e os desacertos conjugais do «outro»: «suposição da ignorância», «suposição da idiotez» e «suposição da maldade».

Na prática, essas suposições, esses «demônios interiores» da ruptura - que vamos comentar (brevemente) à continuação-, contanto que entrem a fazer parte do nosso sentido de identidade, não somente geram a impressão subjetiva de que questioná-las é o mesmo que questionar nossa própria identidade, senão que, quanto mais são desafiadas pela evidência contraditória, mais se fortalecem. O que é uma verdadeira lástima, já que perder algo de controle sobre nossa identidade, por muito pequena que seja essa perda, tem uns efeitos drásticos (e algumas vezes dramáticos) em nossas relações pessoais.

Avancemos, pois.


Notas e Referências:

[1] Como disse em certa ocasião Samuel Johnson: “O segundo matrimônio é o triunfo da esperança sobre a experiência”. Para que nos entendamos: 1. não é nossa intenção, em absoluto, defender a moralista e incondicional ideia de fidelidade no matrimônio: “allá cada cual con su pariente/a y con su conciencia”; 2. seria um despropósito não reconhecer nossa limitada maestria e experiência pessoal na prática do divórcio/separação como para pretender esgotar completamente o tema; e 3. admitimos que o natural curso dos acontecimentos demonstra que, nas coisas do querer, nem sempre uma ruptura tem que ser necessariamente uma destruição obrigada: depende das «limitações psicobiológicas» diferentes em cada pessoa – que não se veem, mas que temos todos, que são reais e muitas vezes insuperáveis (P. Malo) –; quer dizer, da maneira como cada pessoa se enfrenta ao conflito, à confusão e ao sofrimento gerados pelo torvelinho da dissolução (posto que não somos iguais em capacidade de esforço e de autocontrole, em força de vontade, em constância, em temperamento, em interesse pela comida e pelo sexo, em inteligência, na capacidade para preocupar-nos e para superar os problemas, etc...etc., e como resultado de que estas «limitações psicobiológicas invisíveis» são distintas em cada indivíduo, o que uma pessoa é capaz fazer e/ou tolerar resulta – ou pode resultar – impossível para outra).

[2] Os estudos sobre a evolução das relações conjugais, por exemplo, ilustram como a memória trata de minimizar as dissonâncias cognitivas. As pessoas que se consideram felizes ao casar-se, mas cuja relação se deteriorou de maneira progressiva entre os cinco e dez anos seguintes, quando se lhes pergunta de forma individual sobre a qualidade de sua relação tendem a recordar que se sentiam infelizes desde o primeiro momento, quando em realidade não é certo. Quanto mais negativa seja a opinião acerca da relação conjugal no presente, piores serão as lembranças dessa relação no passado. Da mesma maneira, as pessoas divorciadas se inclinam a valorar sua relação retrospectivamente de forma que lhes ajude a justificar sua ruptura. (L. R. Marcos)

[3] Nota bene: Segundo John Tooby, nossa mente está acostumada a pensar em termos de um só causa, em termos lineares e, ademais, temporais: o que vem antes é a causa do que vem depois. Contudo, assinala o autor, se queremos entender melhor as coisas temos que pensar que os resultados são causados por um “nexus” ou confluência de fatores (incluindo a ausência de circunstâncias que impediriam o fato): ante qualquer fato a lista de fatores “que intervienen es probablemente infinita (y azarosa). Pero nuestra mente evolucionó para extraer de la situación el elemento que podemos manipular y conseguir un resultado favorable, estable y seguro para nosotros.” Para dizer a verdade, parece que somente há um sucesso único no mundo, que é tudo o que sucede; e há uma única rede de causalidade, que é tudo o que existe.

[4] “Medio siglo de investigación psicológica ha demostrado que cuando la gente trata de evaluar intuitivamente los riesgos o predecir el futuro, sus cabezas activan estereotipos, eventos memorables, impresiones subjetivas, incidentes escogidos selectivamente, escenarios vivos y narrativas morales”. (Steven Pinker)

[5] Seguramente o amável leitor (a), como ser humano que é, estará neste momento pensando que isto só ocorre com as outras pessoas. Supina insensatez. Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para abandonar a cautela, buscar e encontrar padrões e narrações para interpretar a própria realidade, e sentir como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções e veleidades que se inventa. É natural nossa tendência a negar a relevância dos fatos, a rechaçar instintivamente as debilidades que nos caracterizam, a criar “pontos cegos” mentais no que à verdade se refere, e um longo etcétera. Somos o que somos!

[6] http://emporiododireito.com.br/sobre-o-mito-e-a-maldicao-do-eu-parte-1-por-atahualpa-fernandez/


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.


marlyMarly Fernandez é Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.


Imagem Ilustrativa do Post: The True Color of Love // Foto de: Keoni Cabral // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/keoni101/5268324476

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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