Vida e direito como “produtos descartáveis”: sinais dos tempos de exceção… – Por Rafael Alexandre Silveira

17/03/2017

Coordenador: Marcos Catalan

Entre tantas interrogações que se impõem nestes tempos de anormalidade, uma, em particular, aos olhos de todos, sejam eles filósofos, juristas ou cidadãos comuns, ganha especial importância: trata-se de saber em que medida vida e direito estão sendo tratados como “objeto de descarte”. Nesse propósito, e para que se possa trilhar algum caminho de resposta, dois filósofos, Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Giorgio Agamben (1942), despontam, a partir de algumas de suas diferenças, de tempo e de conceito, como referências a estimularem a reflexão contida neste breve ensaio.

Para Nietzsche, a ideia imanente de vida e sua contingência pressupõem que nos questionemos a respeito das forças que provêm da chamada vontade de potência. Essa consiste em uma capacidade de o homem criar suas próprias condições de potência, na intenção de estabelecer seus valores em suas decisões. O homem passa a ser domesticado e, quando submetido a formas de vida, tende a um apequenamento de sua existência, enquanto ser no mundo. De acordo com o filósofo alemão, o projeto civilizatório faz do homem um animal de rebanho para torná-lo obediente aos padrões morais e sociais, reprimindo, assim, a potência de vida[1]. Por sua vez, Agamben entende que há um apoderamento político da vida, ao exercer o direito de classificar, desqualificar e sacrificar a vida humana, transformando-a em vida nua[2].

Trata-se de ter em conta que, aqui, a vida é protegida pela lei e, ao mesmo tempo, à margem da lei, que é a lógica dos Estados-nação, cuja condição de produção e consumo precisa dar manutenção ao mercado[3]. Como se observa, existe um ponto de atravessamento entre os dois filósofos, dado que, tanto em Nietzsche, quanto em Agamben, constata-se o movimento de tomar a vida como lócus de resistência a estes poderes de apequenamento da vida humana. Tal atitude é pontuada por Agamben que indica a biopolítica como estrutura da política ocidental, em que o poder rebaixa a vida à vida nua, àquela que pode ser descartada no momento que não mais atende aos interesses administrativos e econômicos do Estado[4].

Cada vez mais, ideias e valores, na legitimidade da vontade de potência em Nietzsche, são meios e fins que fundamentam o comportamento do indivíduo: é a vontade fervorosa de criar forças ativas e passivas ao estabelecer hierarquias[5]. Nesse tempo de produção e consumo, os sujeitos são retirados do âmbito público, das decisões políticas e colocados a serviço da administração jurídica, regida por interesses econômicos (também políticos e morais), faz viver ou deixa “morrer” em nome da legalidade política[6].

Diante disso, o direito tem sido substituído pela vontade de potência, descartando-se e suspendendo-se o ordenamento em situações de espaço temporal. A vida apresenta-se como “matável”, já que basta a mirada na situação política e social do tempo em que vivemos. Mas, também, o modus de descarte da vida, ou do direito, o qual lhe confere consistência e substância, não se gera apenas no interior do campo social e político: expande-se para as instituições jurídicas, oportunidade em que a lei, instrumentalizada pelo intérprete, aplicador e demais atores, torna-se objeto de suspensão, caracterizando, dessa forma, o estado de exceção, como paradigma não somente de governo em sentido lato, mas como prevalência de um “soberano”, cuja vontade de potência, como saldo líquido, executa o direito e mata sua autonomia.

Portanto, e por tais razões, é preciso retomar Agamben e seu diálogo com Nietzsche, especialmente quando a reflexão aqui exposta, revela os sinais do momento crucial e perigoso que atravessamos. Vida e direito são consumidos e descartados para fins determinados, retirando-lhes seu caráter e conteúdo vinculativo e de segurança mínimos, colocando em xeque seu sustentáculo de organização democrática. A partir disso, convém sempre lembrar:

“Um dia, a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele. O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito, mas um novo uso, que só nasce depois dele. Também o uso, que se contaminou com o direito, deve ser libertado de seu próprio valor. ”[7]


Notas e Referências:

[1] ESPINDOLA, Alexandra Filomena. Vida em potência: Nietzsche e Agamben sob a ótica de Assman e Bazzanela. Palhoça: Crítica Cultural, 2014.

[2] idem

[3] ESPINDOLA, Alexandra Filome. Vida em potência: Nietzsche e Agamben sob a ótica de Assman e Bazzanela. Palhoça: Crítica Cultural, 2014.

[4] idem

[5] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[6] ASSMAN, Selvino José; BAZZANELA, Sandro Luiz. A vida como potência em Nietzsche e Agamben. São Paulo: Liberars, 2013.

[7] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.


 

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