Por Karina Lopes e Ronaldo Costa - 25/02/2015
O título desta coluna foi parcialmente extraído de um livrinho que vem fazendo sucesso, especialmente, entre o público jovem. O livro se inscreve numa tendência literária chamada visual writing (escrita visual), misturando ilustrações feitas à mão, sonoridade, grafia e sucintos versos. O autor, que brinca com as palavras, fala sobre a vida, o amor, a saudade, a ressaca, etc.. [1] As pequenas frases são bastante compartilhadas nas redes sociais, seja por identificação de pensamento (por alguns) ou por estarem na moda (por muitos, muitos outros).
As palavras, ainda que em pequenas expressões, dizem coisas (Lenio Streck). Portanto, antes de reproduzir um pensamento, pense! É claro que terceirizar a opinião, citando a Bíblia, filósofos ou frases de livrinhos da moda, é muito mais fácil, pois dispensa qualquer argumento. Se “o cara” disse, é! Ponto final! Não vamos discutir com Jesus Cristo, Nietzsche ou Antônio.
Nas últimas semanas uma campanha contra o aborto se espalhou pelas redes sociais. Tratava-se de uma espécie de corrente em que mulheres eram desafiadas a postar fotos de quando estavam grávidas. Nossas timelines do facebook foram invadidas por fotos acompanhadas de hashtags. A campanha, que dividiu opiniões em blocos (em pleno carnaval), por mais simplista que tenha sido, foi (é) válida, a nosso ver, para retomar o debate de um tema que confunde conceitos de liberdade, direito, moral, religião e vida.
Identificamos na campanha, na mesma linha de Sandro Sell ao discorrer “sobre o aborto e o crime” [2], alguns blocos. No primeiro, estão os religiosos fanáticos. Com este grupo não se discute, não há debate. Está na Bíblia – Em Jeremias 1:5: “antes que eu te formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da mãe te santifiquei; às nações te dei por profeta” e em Êxodo 20:13: “não matarás” – Pronto, aborto só quando for da vontade de Deus. Oremos para que estes sejam minoria no poder.
Este primeiro grupo, que normalmente é identificado pela hashtag #provida, diz que “feto é vida” e que a vida deve ser protegida também pela lei dos homens. Contudo, o Código Penal admite que nos casos de estupro, se “mate” crianças sem qualquer problema genético e sem que a mãe corra qualquer risco, ou seja, a lei permite que se “mate” crianças física e mentalmente adequadas aos padrões sociais de normalidade, seja lá o que isso signifique! Seria para expiar o pecado do pai? A partir desta reflexão Lenio Streck defende que, talvez, o caminho seja “deslocar o “fator vida do feto” em direção à questão da mulher, como foi o caso Roe v. Wade, nos EUA. Sob pena de redescutirmos o aborto de fetos decorrentes do crime de estupro” Uma questão que certamente fará o parlamento brasileiro sambar” [3].
No segundo bloco estão pessoas (fieis ou não) que ponderaram os argumentos e que acreditam que o aborto, salvo casos pontuais, como: (a) risco de vida à mãe, (b) anencefalia, (c) estupro – deve ser criminalizado. O principal fundamento para este grupo está na “teoria do risco”. Os defensores desta ala defendem que se a mulher aceitou o risco da gravidez, deve assumir o “dano”, ou seja, tem o dever de manter a gestação até o final e cuidar da prole assumindo toda e qualquer responsabilidade. Dizem que a mesma regra (do risco) vale para os homens – especialmente agora com a guarda compartilhada – Será? Não raras vezes, muito antes dos bebês nascerem os homens abortam, somem no mundo. Sem endereço certo. Sem alimentos. Sem afeto.
No terceiro bloco estão os pró-aborto. Podemos dividir este bloco em duas alas. Na primeira estão os que defendem a descriminalização do aborto. Inserimo-nos aqui (o que não significa defender o aborto em si – destes falaremos ao final).
Por que defendemos a descriminalização do aborto? Por aderirmos a uma política de redução de danos. E o que isso quer dizer? Quer dizer que não olvidamos a existência de um grave dano ao embrião ou feto, quando da realização de procedimento abortivo, mas também não ignoramos os danos físicos e/ou psicológicos causados à mãe, em razão de interrupções da gravidez feitas em açougues clandestinos, à revelia de regras mínimas de higiene, assepsia, técnicas médicas e estruturas humana e material, minimamente adequadas.
Então estamos a defender a integridade da mãe, hiperssuficiente, em detrimento do nascituro, hipossuficiente – indefeso? Absolutamente não. Não é isso. Não, mesmo! O que postulamos é que em situações em que a mãe já decidiu que interromperá a gestação e que nada ou ninguém fará com que mude de opinião, o procedimento seja realizado por profissional médico devidamente preparado e habilitado, em local devidamente adequado e aparamentado para tanto. Resumindo, de uma forma bem singela e direta: se o aborto é inevitável, que se perca uma vida ao invés de duas. É ruim. Péssimo, mesmo. Mas menos funesto que a morte de mãe e filho, como vem ocorrendo, de há muito, em clínicas que mais se assemelham a frigoríficos humanos.
E o mais injusto disso tudo é que esses riscos gravíssimos e iminentes ocasionados pela criminalização existem principalmente para a camada mais fragilizada da população. Além da discriminação social suportada pelo simples fato de serem mulheres e mães solteiras – como se mãe fosse estado civil, conforme já alertara certo líder religioso –, são, ainda, pobres. Miseráveis, no mais das vezes, que não podem arcar com as despesas decorrentes de um aborto bem sucedido, em uma clínica particular devidamente estruturada e segura, dotada de UTI, equipe médica, dentre outros cuidados básicos.
Em uma sociedade ainda muito machista, patriarcal a patrimonialista, ser mulher, mãe solteira e pobre, ao mesmo tempo, é quase que um crime. Se for mulher, pobre e decidir não ser “mãe solteira”, aí sim, não há dúvida alguma, é crime propriamente dito, mesmo! Não pretendemos levar a questão central do texto para uma suposta luta de classes, mas não cremos que alguém duvide que as principais mulheres que sofrem com a repressão estatal ao aborto são as desprovidas de recursos financeiros. Aliás, não acreditamos que alguém minimamente informado duvide disso.
A Comissão de juristas formada para a elaboração do Novo Código Penal tentou, em seu anteprojeto (PLS 236/2012), acrescer uma causa excludente da antijuridicidade ao artigo 128, do estatuto repressivo. Constava da proposta: “Exclusão do crime. Art. 128. Não há crime de aborto: (...) IV – se por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade”.
No entanto, como já era esperado, a proposta foi rejeitada pelo relator do projeto, à época Senador Pedro Taques, quando do relatório final. A bancada evangélica – esse termo causa calafrios, não pelo termo “evangélica”, obviamente, mas sim pela alusão à uma religião, em um estado laico – já havia antecipado que não permitiria a aprovação do projeto nos moldes propostos pela Comissão e que o trecho deveria ser retirado, sob pena de boicote ao projeto como um todo. É a religião interferindo diretamente em questões de Estado, surtindo efeitos nas vidas daqueles que creem e dos que nela não acreditam. Democracia para que(m)?
Contudo, entendemos que é imprescindível uma campanha forte e contínua de conscientização sobre o tema. O Estado que atua na repressão precisa, antes disso, mostrar-se presente na prevenção, para que o aborto seja feito apenas nos casos em que a mãe não tiver mínimas condições reais de arcar com a maternidade, a fim de que as interrupções voluntárias da gestação não sejam usadas como moeda de troca em relacionamentos desgastados, pois acreditamos que há, sim, vida: antes do parto e após o partir.
Por fim, ainda no terceiro bloco - pró-aborto – está a ala dos que defendem o aborto como controle de natalidade e também como forma de reduzir/exterminar a criminalidade (como se os filhos de pessoas pobres estivessem destinados ao crime) [4]. Vejam que defender a legalização do aborto não significa coadunar com a prática abortiva de modo indiscriminado, mas compreender que a criminalização não evita, nem reduz sua indecência. Mas amplia, indubitavelmente, seus efeitos deletérios. Principalmente para os mais desassistidos.
Respeitamos posicionamentos contrários e não queremos, de forma alguma, abortar a opinião fundamentada do leitor. Nossa intenção é discorrer sobre o tema, estimular o debate e alertar: antes de entrar em uma corrente e compartilhar frases prontas, questione-se – Será?
Referências
[1] A frase extraída do livro foi: “Vida: do parto ao partir”. Gabriel, Pedro. Eu Me Chamo Antonio. Rio de Janeiro. Intrínseca, 2013.
[2] http://sandrosell.blogspot.com.br/2007/10/sobre-o-aborto-e-o-crime.html
[3] http://www.conjur.com.br/2012-mai-08/lenio-luiz-streck-comissao-juristas-gosta-direito-penal-risco?pagina=3
[4] Levitt, Steven; Dubner, Stephen. Freakonomics: O lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta. [S.l.]: Campus, 2005.
Karina C. B. Lopes é Mestre em Educação pela Universidade da Região de Joinville; Especialista em Direito Penal e Direito Processo Penal; Professora de Processo Penal e Prática Processual Penal; Advogada e sócia no escritório MRL Advogados. https://www.facebook.com/karina.c.boarettolopes.5
Ronaldo dos Santos Costa é Advogado no Núcleo de Prática Jurídica Criminal da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP) e Sócio no escritório Gilson Bonato Advocacia criminal. https://www.facebook.com/ronaldo.santoscosta