Mais antigamente, era senso comum, entre grande parte dos estudiosos, que o sistema penal, como um todo, sobretudo no que concerne à sua persecução, se fundamentaria e legitimaria em prol do que se convenciona chamar pela “busca da verdade”, a ponto de se alçar tal pretensão a um princípio do processo penal (ou mesmo à condição de princípio dos princípios), cuja ideia nos é até simpática.
Contudo, este pensamento, então predominante no passado, cada vez mais vem sendo colocado em xeque, nos últimos anos, sob o argumento de que a pretensão de verdade, no processo penal, seria uma concepção um tanto quanto equivocada, por ter propiciado abusos, para não se dizer uma ideia atrasada, ou mesmo ultrapassada, pois, a rigor, segundo sustentam, verdade não existe. Há Autores que, apesar do esforço empreendido, muito embora admitam não conseguir negar a importância do valor verdade para o processo penal, reservam a ela uma relevância apenas contingente, para não dizer secundária ou coadjuvante.
Será que estão com a razão? Pensamos, com todo respeito, que não.
Preferimos, neste ponto, ficar entre aqueles estudiosos que, por não pensarem como os mais modernos, são considerados “atrasados”[2]. Explicamos.
Tendo em vista o estudo da teoria idealizada por Luigi Ferrajoli, considerado o Pai do garantismo penal, bem como a leitura, na íntegra, de sua imponente obra, chega-se à conclusão que somente através do revigoramento da importância do valor verdade, dentro do processo, é possível instituir um sistema adequado de garantismo, pautado na ideia de limitação do poder[3] e, portanto, qualquer tentativa de negar ou mitigar sua relevância deve ser vista com muitas reservas, apesar dos bons argumentos trazidos e das justas e pertinentes objeções dos que entendem diferentemente.
A este respeito, a primeira premissa da teoria do garanstimo penal é, de fato, que, sem verdade, não pode haver justiça, sendo possível afirmar que, substancialmente, a teoria do garantismo penal, mormente a mais respeitável e conhecida entre nós (Ferrajoli), encontra-se inteiramente lastreada, embasada e comprometida com o valor da verdade[4].
Como bem afirma Luigi Ferrajoli, “se uma justiça penal integralmente ‘com verdade’ constitui uma utopia, uma justiça penal completamente ‘sem verdade’ equivale a um sistema de arbitrariedade”[5].
Nesse mesmo sentido, “as garantias legais e processuais, além de garantais de liberdade, são também garantias de verdade; e que ‘saber’ e ‘poder’ concorrem em medida diversa no juízo, segundo aquelas sejam mais ou menos realizáveis e satisfeitas”[6]; “disso resulta que o vínculo da verdade processual é também a principal fonte de legitimação externa, ético-política, ou substancial do Poder Judiciário, que, diversamente de qualquer outro poder público, não admite uma legitimação de tipo representativo ou consensual, mas apenas uma legitimação de tipo racional e legal, adequada ao caráter cognitivo dos fatos e recognitivo da sua qualificação jurídica, que é indispensável à motivação dos atos jurisdicionais”[7].
Pois bem, o processo penal serve para a averiguação da veracidade da alegação feita sobre um fato que se mostre, em tese, delituoso.
Tradicionalmente, a doutrina brasileira, em grande parte, também identifica o fundamento do processo com a busca da verdade[8], em prol do escopo de alcance da justiça[9] e, no que for possível, de pacificação social[10].
Também a doutrina estrangeira está de acordo que o processo penal “se orienta, natural e inevitavelmente, de acordo com o princípio da descoberta da verdade material, desejo primordial e fim último do processo penal e em vista da obtenção da qual este se move e orienta”[11].
Certamente, quando se fala em verdade, no processo, pressupõe-se aquela que não seja de ordem absoluta, isto é, definitiva, incontestável, inabalável, a qual, diga-se de passagem, dificilmente seria alcançável, dentro ou fora do processo, o que se dá por diversas razões, devido à própria debilidade do conhecimento humano (que é sempre parcial e incompleto) e à sua subjetividade.
Como bem ensina Miguel Reale, “conhecer é, de certa maneira, submeter algo à nossa subjetividade. Alguns expositores de Kant lembram imagem feliz quando dizem que nós não podemos apanhar um bloco de neve sem imprimir a forma de nossos dedos. O que é conhecido conserva sempre os sinais das garras apreensores de nossa subjetividade”[12].
Karl Heinz Gössel: “De ello no se ha de extraer obligatoriamente la conclusión de que el mundo existe sólo en las cabezas de las personas como mera representación –pero también debe aceptarse que el mundo existente con independencia de nuestras representaciones puede representarse de manera más o menos determinante”[13]
É dizer, no processo penal, busca-se uma verdade que, na medida do possível, só pode ser aquela atingível[14].
A verdade judicial, na esteira dos ensinamentos de Luigi Ferrajoli, tal qual toda e qualquer verdade histórica, decorre sempre de uma representação - quer dizer, na visão de alguns, de uma “reconstrução”[15] – que seja mais ou menos fiel aos fatos ocorridos, apuráveis mediante os recursos probatórios do presente; sendo assim, a conclusão a respeito de um acontecimento qualquer, como todo tipo de inferência que se faz sobre algo, tem sempre o valor de uma hipótese, ou melhor, de uma probabilidade, ainda que muitíssimo plausível[16].
Seja como for, o que deve ficar bastante claro é que reconhecer a relatividade de toda e qualquer verdade, ou melhor, reconhecer a dificuldade ou até mesmo a eventual impossibilidade em se alcançar uma verdade de cunho absoluto, especialmente no processo penal[17], não significa, de modo algum, que o processo prescinda (ou possa prescindir) de sua busca, como, erroneamente, se poderia passar a pensar. Não!
O caráter relativo de toda e qualquer verdade, dentro ou fora do processo, não permite concluir que não seja possível chegar a um ponto razoável de esclarecimento dos acontecimentos naturalísticos, que consiga explicar, com certa dose de segurança e estabilidade, como determinado fato ocorreu, ou qual foi a sua dinâmica, a motivação do agente, pois, no limite, caso não fosse possível apurar a verdade em si, estar-se-ia negando a própria razão de existir da Justiça, bem como do processo (sobretudo o penal!).
Não houvesse qualquer escopo de se atingir a verdade no processo, devido a um ceticismo extremado e radical quanto ao seu alcance, não haveria razão para o processo existir.
Com efeito, caso não existisse pretensão de verdade no processo, ele seria tudo, menos um processo; quiçá se transformaria em uma peça de teatro, ou em um circo, com muitos palhaços, dentro e fora: afinal, fariam papeis de palhaços tanto as autoridades que se prestam a forjar um simulacro de investigação (uma farsa) quanto as pessoas que creem que uma apuração séria está sendo levada adiante.
Do exposto, uma postura cética tão radical quanto à busca da verdade no processo, que parece ter a doutrina considerada mais moderna, implicaria negar, no limite, não só o processo, mas também o direito; aliás, o ceticismo radical vai contra toda forma de ciência ou até mesmo possibilidade de cognição e de conhecimento, na medida em que coloca com seu pressuposto, justamente, a inalcançabilidade de qualquer certeza, colocando-se em xeque a possibilidade do conhecer.
A esse respeito, ensina, mais uma vez, Miguel Reale: “o ceticismo radical já alberga em si mesmo a sua contradição, porque, se o cético apresenta sua doutrina, é porque afirma ou nega alguma coisa. O cético, no momento em que põe em dúvida a possibilidade de conhecer, já está afirmando algo de que não pode abrir mão, para poder subsistir como cético: - a necessidade de duvidar”[18]. No processo penal, expõe Luigi Ferrajoli que um ceticismo judicial tão extremado, ao afastar qualquer possibilidade de se alcançar alguma verdade, acabaria apenas avalizando “modelos de direito e de processo penal abertamente substancialistas e decisionistas”[19].
Assim, tanto será injusto o processo que - a pretexto de se chegar a uma verdade absoluta - legitime uma série de violações a direitos e garantias fundamentais quanto assim também o será um modelo de processo que não se comprometa com o objetivo de alcançar ou de obter um mínimo de verdade[20], levando-se à conclusão que tanto faz se o processo implicar a condenação de um inocente ou a absolvição de um culpado, afinal a verdade seria uma preocupação secundária.
Enganam-se os que negam a importância da verdade ao processo, assim como os que defendem que a sua busca teria relevância apenas contingente no processo.
A este respeito, Karl Heinz Gössel pergunta-se, em um primeiro momento, o que ocorreria se não existisse pretensão de verdade no processo, chegando a se indagar o que ocorreria se não fosse possível comparar a representação judicial que da verdade se faz com a realidade objetiva em si, fora dos autos; pois bem, o Autor responde a isso que se não fosse possível obter qualquer avaliação da verdade, somente poderia haver lugar para o mais completo arbítrio[21], porque vingaria, no fim, apenas o que estaria na cabeça do julgador; aliás, sem verdade, sequer se poderia questionar se a decisão corresponderia ao que, de fato, ocorreu, ou não, na realidade.
Karl Heinz Gössel: Posso resumir as reflexões anteriores: a) No processo criminal se elabora, em qualquer caso, uma imagem judicial da verdade. b) Juntamente com essa imagem judicial, é de se reconhecer a existência de um acontecimento real, do qual o juízo que faz o juiz pode se desviar, fato que é possível de verificação por meio de recurso c) A verdade sobre o fato é apreendida, mas não construída, embora tal apreensão ocorra processualmente por meio de uma imagem da verdade, que em sua livre convicção é formada e, nesse sentido, 'estabelece' ou 'cria' o juiz[22].
Enfim, o processo (e o próprio direito) não pode almejar o alcance da verdade absoluta, de uma total correspondência com a realidade[23], já que a justiça substancial, ou perfeita, como diz Ferrajoli, “não é deste mundo”[24]; contudo, não se pode abandonar a pretensão de perseguir ou alcançar um mínimo de verdade, como pondera Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró[25].
Caso não houvesse qualquer pretensão de verdade no processo, não haveria necessidade da previsão de tantos direitos e garantias, tais como o direito à prova, ao contraditório, à motivação das decisões, direito ao recurso etc. Também não haveria sentido em se teorizar a necessidade, como regra geral dos julgamentos, do duplo grau de jurisdição.
Afinal, convenha-se: se a busca da verdade não fosse uma preocupação central, para quê a previsão de tantos direitos e de diversas garantias, no processo, os quais, certamente - ninguém há de negar -, lhe causam um custo, de modo a alongar bastante a sua duração. Se o processo pudesse se contentar com uma mentira, eis que a verdade não seria uma preocupação, para quê devido processo legal? Mostra-se, portanto, equivocado pensar que o conceito verdade seja deletério ao processo, e que a sua busca estaria associada à violação de direitos, como ocorreu com o processo inquisitorial, seja romano ou canônico
No ponto, acerta Alberto M. Binder quando afirma que a verdade, da mesma forma que impulsiona o motor da persecução penal, também fundamenta grande parte dos direitos e garantias fundamentais existentes[26].
Segue o Autor argentino, nessa toada, os ensinamentos de Luigi Ferrajoli, o qual, além de não negar o conceito e o valor da verdade para o processo, não só o põe no centro de toda a discussão em direito processual[27], como também tem o mérito de enfatizar e reafirmar a importância - e imprescindibilidade - da busca da verdade para a teoria do garantismo penal[28].
Do exposto, é não só equivocado, mas perigoso pretender apartar o valor verdade do direito, sobretudo do direito processual.
A sua busca não implica, necessariamente, as atrocidades cometidas no regime inquisitorial romano e canônico, mas, muito ao contrário, trata-se de um valor que pode auxiliar na obtenção da justiça, pois só se pode qualificar como justa uma decisão que corresponda, minimamente, à verdade dos fatos apurados.
A diferença dos sistemas inquisitórios em relação aos sistemas acusatórios não reside na presença ou ausência da busca da verdade em si, já que ambos os modos de investigação se orientam pelo seu propósito.
A verdade, no fundo, é, sempre foi (e, a rigor, sempre será) um questionamento essencial a todo e qualquer tipo de sistema persecutório penal, quer esteja ele atrelado ao autoritarismo, quer esteja atrelado a um modelo justo e democrático de processo.
Nesse sentido, tanto o sistema inquisitório quanto o sistema acusatório mostram-se inquisitivos, pois indagam e perquirem acerca da veracidade da alegação feita a respeito de um fato, em tese, delituoso. A inquisitividade é, assim, ínsita a todo e qualquer tipo de processo[29].
Está presente nos procedimentos investigatórios de vertente marcadamente inquisitorial[30] como nos procedimentos persecutórios alinhados ao modelo acusatório.
O que os diferencia é a postura que cada qual tem diante da verdade.
Servindo-nos dos ensinamentos de Luigi Ferrajoli, este bem ensina que “em todos esses casos o processo tem por fim a ‘descoberta da verdade, síntese e compêndio dos dois supremos interesses processuais’ supra-indicados. Mas são diversas as maneiras de entender a verdade e os métodos empregados para atingi-la. Precisamente, enquanto o método inquisitório se baseia em uma epistemologia substancial e decisionista, o método acusatório pode ser configurado como a transposição jurídica da epistemologia da falsificação delineada”[31].
É possível afirmar, com arrimo no exposto, que o método inquisitório tem uma confiança extremada (“tendencialmente ilimitada”) em uma pretensa “bondade” do poder[32], corporificada na figura do inquisidor, a ponto de chegar a subverter o próprio meio utilizado; este - por mais atroz, ardil e enganoso que se mostre – acabaria sempre sendo justificado pelo nobre fim de repressão ao crime, em prol da descoberta da verdade. Como ensina Ada Pellegrini Grinover, nesse sistema “o inquisidor é o juiz ao qual a lei atribui crédito ilimitado, o que explica porque ao investigado não se permitia o papel de interlocutor”[33].
Já o sistema acusatório se pautaria por uma maior desconfiança quanto à suposta bondade do inquisidor, sendo um procedimento pautado em um método que procura testar a comprovação do fato por meio da avaliação de todas as versões apresentadas. Assim, como conclui Luigi Ferrajoli, “a idéia de que o fim da verdade justifica qualquer meio se reverte, no modelo garantista, na idéia de que é unicamente a natureza do meio que garante a consecução do fim”[34].
É justamente neste ponto que reside o papel desempenhado pelas garantias e pelas formas procedimentais, já que a sua observância serve de antídoto contra equívocos, sendo o meio mais eficaz para se chegar a uma decisão correta, justa e legítima.
Do ponto de vista da Justiça substancial, muito embora seja difícil lograr uma compreensão total dos fatos (em termos absolutos), é mais provável que se chegue a um bom termo se todas as balizas legais forem observadas, isto é, se todos os direitos forem garantidos, por meio do cumprimento das regras legalmente instituídas, bem como pela participação efetiva das partes.
Somente assim abusos e injustiças passam a ser evitados, pelo respeito ao método dialético[35], o qual minimiza a possibilidade de uma conclusão precipitada e equivocada do juízo, funcionando este modelo, de certo modo, como “garantia epistemológica na pesquisa da verdade”[36].
Nesse sentido, as formas e garantias processuais, se bem postas, sobretudo quando bem aplicadas, funcionam como uma espécie de filtro, que impede – ou, ao menos, atenua - a possibilidade de erros. O respeito às formalidades procedimentais, neste sentido, é um importante termômetro para avaliar se a decisão proferida foi, ou não, justa e legítima, estando a solução conferida à controvérsia mais próxima possível da verdade atingível com relação aos fatos[37].
Não houvesse pretensão de obtenção da verdade no processo, melhor seria abdicar deste instrumento e “jogar dados” para solucionar a demanda.
A busca pela verdade, portanto, em maior ou menor grau (haja vista a admissão de zonas de consenso), continua sendo um dos principais fundamentos de qualquer modelo de devido processo legal, em nível global, a qual justifica muitas das garantias previstas.
Luigi Ferrajoli: “Assim chegamos ao último e mais difícil de nossos problemas: o grau de probabilidade que permite considerar adequada ou convincentemente provada uma hipótese acusatória. Esclarecido que nenhuma prova é suficiente para subministrar uma justiça absoluta da indução judicial, quais são as provas e as contraprovas necessárias que permitem sua justificação, ainda que só relativa? Mais exatamente, quais são as condições, na presença das quais uma ou várias provas são adequadas ou convincentes e na ausência das quais não o são? Responder a estas perguntas significa identificar as garantias processuais, cuja satisfação justifica a livre convicção do juiz, isto é, sua decisão sobre a verdade fática no processo”[38].
A busca da verdade é um componente necessário e insuprimível do processo, não constituíndo o respeito aos direitos e garantias um limite – ou, quiçá, empecilho - ao seu alcance, como, de maneira equivocada, pontua parte doutrina[39].
A verdade, por fim, não é (nunca foi, nem nunca será) um dado meramente contingente ao processo, isto é, secundário, como, a nosso sentir, erroneamente, defende parte da doutrina, mas constitui, em realidade, seu elemento central, o qual justifica, em grande parte, os direitos e garantias previstos, sendo, justamente, através da busca da verdade que se justifica a principal engrenagem que alicerça a teoria do garantismo penal, como bem demonstrou Ferrajoli.
A verdade cumpre, portanto, um importante papel em prol da limitação do poder.
O que se deu nos procedimentos inquisitoriais, por exemplo, com a prática da tortura, usada como um pretexto de se atingir uma suposta verdade, não teve qualquer relação com a verdade, conforme anota Maria Thereza Rocha de Assis Moura[40], mas sim com o uso ilegítimo do poder.
O que aconteceu foi isto: para se legitimar o uso desenfreado do poder e um maior controle social, fez-se o uso do argumento pautado na pretensa busca da verdade para se torturar, para se perseguir, sendo que, de fato, naqueles procedimentos, não havia qualquer preocupação com a verdade.
Ser contra o valor verdade no processo constitui um grave (e imperdoável) engano: sem verdade, não é possível sequer pensar em processo; caso a verdade fosse extirpada, ou substituída, no processo, somente haveria espaço para arbítrio, para o que está na cabeça do julgador, sendo que o magistrado sequer precisaria dar qualquer explicação para proferir a sua decisão, pois, sem verdade, não haveria parâmetro para essa avaliação.
Por isso, ao pretender retirar a verdade do processo e querer explicá-lo sem ela, isso seria o mesmo que querer explicar a quadratura do círculo: é simplesmente impossível. O processo simplesmente não existe sem pretensão de verdade.
Por isso, sustenta-se e reitera-se que a verdade continua a ser o fundamento último do processo penal[41]: frise-se, sua busca pressupõe o respeito aos direitos e garantias fundamentais[42], a instrumentalidade constitucional, a qual, importa lembrar, não é uma característica só restrita ao processo penal, mas do ordenamento jurídico como um todo.
É equivocado afirmar que, pelo fato de o procedimento penal ser regrado, haveria alguma limitação da busca da verdade.
Ocorre justamente o contrário.
Ao se apurar a verdade em meio a um processo balizado, com método e regras, com contraditório, ampla defesa e oportunidade de manifestação, tudo isso apenas contribui para se chegar a uma decisão mais acertada, em que a mentira é mais facilmente descartada.
Por seu turno, a inadmissibilidade das provas ilícitas não dificulta o alcance da verdade, como, erroneamente, se afirma entre alguns estudiosos, mas, ao contrário, o auxilia, pois as “provas” ilícitas não são provas confiáveis (são “subjetivamente inconfiáveis”, nas palavras de Ferrajoli[43]), sendo que a sua admissão mais atrapalharia que ajudaria o alcance da verdade.
Se a verdade for intepretada como uma necessidade no processo, para a decisão obtida poder ser qualificada, em tese, como sendo a mais justa, de modo a fundamentar o exercício dos direitos e garantias existentes, não há qualquer problema em se colocá-la como o fim último do processo.
Maria Thereza Rocha de Assis Moura continua (e continuará) tendo toda a razão ao ponderar ser “a procura da verdade material, esta, sem dúvida, o dado mais relevante do fundamento do processo penal”[44].
Ainda que não se queira usar o termo “verdade material”[45], por reputá-lo impróprio, preferindo-se trocá-lo por qualquer outro adjetivo, o importante é ter em vista que se deve procurar a verdade (e aqui pouco importa o adjetivo que lhe deem) que corresponda ao mais próximo possível à realidade dos fatos ocorridos fora do processo.
Portanto, analisando a fundo o assunto, conclui-se que os dilemas envolvendo o processo não residem na verdade em si, mas na postura que se tem frente à sua conformação e obtenção. De fato, em um sistema que prescinda completamente dos meios processualmente previstos pelo legislador para se alcançar uma verdade processualmente válida, só pode vigorar e imperar a irracionalidade, o abuso, o arbítrio, o temor, já que sempre se pode chegar a uma conclusão sem que a hipótese suscitada seja adequadamente testada.
Aí reside a importância do formalismo, ou melhor, da previsão de um sistema processualmente e razoavelmente regrado, em todo o seu iter, a fim de se evitarem abusos e equívocos, de modo a se propiciar a tomada de uma decisão controlável, inclusive mediante recurso, que contribua para a efetiva busca da verdade.
E as nulidades nada mais servem que um instrumento para situar o processo em seu rumo, mantendo-o ou colocando-o nos seus trilhos. As nulidades nada mais são que medidas corretivas ao curso desse caminho, sendo que, evidentemente, se forem previstas despropositadamente, ou quando decretadas inutilmente, acabarão criando mais empecilhos que soluções, dificultando o alcance do objetivo final.
Notas e Referências
[1] Este pensamento foi desenvolvido em trabalho de Mestrado defendido na USP, mais precisamente sobre o tema O prejuízo e as Nulidades Processuais Penais, apresentado em 2014, publicado pela Lumen Juris (2014 e 2017), que, mais uma vez, se reitera.
[2] Às vezes, “... é preferível ser considerado atrasado, não por desconhecer o moderno, mas por conhecer e não gostar do que se anuncia” (PASCHOAL, Janaina Conceição. Ingerência indevida: os crimes comissivos por omissão e o controle pela punição do não fazer. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2011, p. 202).
[3] Segundo discorre Luigi Ferrajoli, de modo expresso: “o modelo cognitivo de processo penal, recebido apenas de modo sumário pela nossa constituição, confere um fundamento e uma justificação específica à legitimidade do Poder Judiciário e à validade de seus provimentos que não residem no valor político do órgão judicante nem no valor intrínseco de justiça de suas decisões, mas sim na verdade, inevitavelmente aproximada ou relativa, dos conhecimentos que a ele é idôneo obter e que concretamente formam a base dos próprios provimentos” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 435).
[4] Sobre a importância do valor verdade na obra de Luigi, cf.: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 38, 39, 41, 42, 43, 44, 47, 49, 51, 74, 118, 135, 141, 435, 436, 437, 439, 483, 486, 497, 498.
[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 38.
[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 39 (grifamos e destacamos)
[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 437.
[8] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A prova por indícios no processo penal, p. 01.
[9] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 26-27; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró. Processo Penal, p. 266; COSTA, Paula Bajer Fernandes Martins da. Igualdade no direito processual penal brasileiro, p. 15-16.
[10] Reafirmando esse objetivo (pacificação social), ao longo de toda a sua obra: BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, p. 18, 30, 39, 40, 43, 59, 77, 165, 206, 260, 295.
[11] VEIGA, Catarina. Considerações sobre relevância a dos antecedentes do arguido no processo penal, p. 24
[12] REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 102 (grifamos e destacamos). É interessante a concepção de Miguel Reale quanto ao processo de conhecimento, pois se o Autor, corretamente, não concorda que haja um conhecimento absoluto, definitivo, inabalável, também não vai para o extremo oposto – tão ou mais equivocado - no sentido de que não haveria possibilidade de se alcançar um conhecimento relativamente estável: “É óbvio que, se existem as ciências, é porque é possível conhecer. Se existem a Matemática, a Física, a Biologia etc., é porque o homem tem uma conformação tal que lhe é dado conhecer a realidade com certa dose de segurança e objetividade, demonstrando o poder – inerente ao espírito – de libertar-se do particular e contingente, graças à síntese que realiza” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 26, grifamos e destacamos); “Ora, alguns pensadores contemporâneos sustentam que na realidade há também um a priori material: que há um a priori ôntico, e não apenas um a priori gnoseológico, ou mais claramente, que, se a realidade fosse em si indeterminada não haveria possibilidade de ser captada pelo espírito, o qual não pode ser concebido como produtor de objetos, ex nihilo, a partir do nada” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 109, grifamos e destacamos);“Ora, se todos os homens são diversos, mas chegam à mesma afirmação a respeito de ‘algo’ percebido, é porque existem em ‘algo’ elementos estáveis, não subordinados às variações subjetivas. Se o sujeito fosse fator ‘determinante’ daquilo que se conhece, haveria uma percepção distinta para cada sujeito e não seria possível haver ciência, nem comunicação de ciência. Se existe intersubjetividade dos objetos da percepção e uma ciência comum entre os homens, ciência esta que uma geração transmite às outras, é porque existe um elemento real que as percepções ‘reproduzem’, parcial ou totalmente, sendo dotado de qualidades que não se subordinam ao esquema deste ou daquele indivíduo, ou à subjetividade em geral” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 118, grifamos e destacamos); “o conhecimento depende, pois, de duas condições complementares: um sujeito que se projeta no sentido de algo, visando a captá-lo e torná-lo seu; algo que já deve possuir necessariamente certa determinação, certa estrutura ‘objetiva’ virtual, sem a qual seria logicamente impossível a captação. O ser não é, nesse sentido, o absolutamente indeterminado, mas antes o infinitamente determinável. O sujeito não recebe de algo, passivamente, uma impressão que nele se revele como ‘objeto’, nem algo se transfere ao plano do sujeito, reduzindo-se às suas estruturas subjetivas. Sob o estímulo de algo, e na medida e em função de condições subjetivas e histórico-sociais – pois o realismo ontognoseológico não olvida a inevitável condicionalidade social e histórica de todo conhecimento -, o sujeito, de certa maneira, ‘põe’ o objeto, que pode não corresponder integralmente a algo, mas a algo com certeza sempre corresponde. Restringimos o conceito hartmanniano de transobjetivo àquilo que ainda se não conhece, mas que pode ser objeto de conhecimento, objiciendum” (REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 126-127, grifamos e destacamos).
[13] GÖSSEL, Karl Heinz. El Derecho Procesal Penal en el Estado de Derecho, p. 110 (grifamos e destacamos).
[14] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 3ª ed.São Paulo: RT, 2009, p. 41-42.
[15] Adotando a concepção de que a verdade seria (re)construída, cf.: GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997. Muito interessante também a avaliação de João Daniel Rassi a respeito da construção de Jordi Ferrer Beltran entre o “ser verdadeiro” e o “ser considerado verdadeiro”, trazendo o Autor outras contribuições para o tema em comento. Cf.: RASSI, João Daniel. Neurociência e prova no processo penal: admissibilidade e valoração. Tese (Doutorado) apresentada na USP, 2017, p. 31-35.
[16] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 44.
[17]Luigi Ferrajoli destaca uma série de fatores que dificultam o alcance de uma verdade entendida em termos de correspondência absoluta entre uma hipótese judicial e a realidade em si, isto é, aos fatos naturalísticos. Entre estas dificuldades, o Autor lista: (1) a própria subjetividade do conhecimento judicial, no qual sempre há certa dose de preconceito na análise do pesquisador, o que também contribui para análises equivocadas; pontua que diferentemente da investigação histórica, (2) a Justiça tem que lidar com fatores como o impacto emocional que causa a acusação da prática de um crime, o que afeta a sua apuração de forma neutra; ademais (3) a investigação judicial não dispõe de tantos meios de (auto)correção, como ocorre com a atividade historiográfica e científica, já que estas são mais suscetíveis à crítica da comunidade acadêmica, dispondo o juiz, por seu turno, só das partes e de alguns auxiliares para ajudá-lo, sendo que (4) a apuração judicial geralmente cessa com o trânsito em julgado, sendo certo que a investigação científica é constantemente testada pelos estudiosos, a todo instante, sempre sendo colocada à prova (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 43-48). Além do problema da subjetividade do juiz, há também (5) a subjetividade de muitas fontes de provas, como os interrogatórios, os testemunhos, os reconhecimentos, as perícias e, por seu turno, (6) da própria formação da opinio delicti do acusador (cf.: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 48).
[18] REALE, Miguel. Filosofia do direito, p. 163 (grifamos e destacamos).
[19] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 51.
[20]Ferrajoli aponta, de fato, o perigo em se tentar obter uma verdade absoluta, o que não o faz desconsiderar, por outro lado, o risco maior em se desprezar a procura da verdade no processo. São suas as seguintes palavras, em tom irônico: “Na realidade, sabemos que um direito penal totalmente ‘com verdade’, se se entender ‘verdade’ em sentido objetivo, representa uma utopia que é tão importante perseguir quanto ilusório e perigoso acreditar que seja possível alcançar” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 74).
[21] Tradução livre do seguinte trecho da obra:“Pues: ¿qué ocurriría si no existiera la verdad, u por ello no fuera posible comparar con ella las imágines de la verdad? El puro arbitrio sería, según mi convicción, la consecuencia. (…) Y, aun, hoy por hoy, tengo por exacto lo que, por mi parte, escribí en 1993, en el Libro Homenaje para mi colega polaco Mariam Cieslak: ‘El poder aunque se desarrolle necesita de la nobleza de su sumisión al fin de la justicia’, y sólo puedo considerar correcta una resolución judicial cuando la misma constata los hechos sometidos a su conocimiento conforme al criterio de la verdad” (GÖSSEL, Karl Heinz. El Derecho Procesal Penal en el Estado de Derecho, p. 115-116).
[22] Tradução livre do seguinte trecho: Puedo compendiar las precedentes reflexiones: a) En el proceso penal se elabora en todo caso una determinada imagen judicial de la verdad. b) Junto a esta imagen judicial, es de reconocer la existencia de un acontecimiento real, de que puede desviarse la imagen del juez, afortunadamente susceptible de verificación por medio de recurso. c) La verdad sobre el hecho es aprehendida, pero no construida, si bien tal aprehensión tiene procesalmente lugar a través de una imagen de la verdad, que en su libre convicción se forma y, en este sentido, ‘instaura’ o ‘crea’ el juez” (GÖSSEL, Karl Heinz. El Derecho Procesal Penal en el Estado de Derecho, p. 117). Do mesmo entendimento é a opinião de Gustavo Badaró, o qual, seguindo os ensinamentos do Autor Alemão citado, bem expõe: “a realidade externa existe e constitui o padrão de medida, o critério de referência que determina a verdade ou a falsidade dos enunciados, no caso, da imputação feita no processo penal. A verdade, portanto, é apreendida e não construída. Quem apenas reconhece a existência de uma exatidão processual nega a existência de uma verdade independentemente do sujeito, perde a consciência sobre a verdade e a falsidade e, com isso, também, a diferença que existe em ambas” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal, p. 267).
[23] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 41.
[24] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 135. Reiterando o exposto, o Autor pontua que, “em resumo, a justiça perfeita não é deste mundo, e qualquer pretensão de tê-la realizado por parte de um sistema penal não é só ilusória, como também um sinal da mais perigosa das imperfeições: a vocação totalitária” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 370).
[25] “... mesmo que se aceite a impossibilidade de se atingir um conhecimento absoluto ou uma verdade incontestável dos fatos, não é possível abrir mão da busca da verdade” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal, p. 24).
[26] “... a verdade cumpre uma função dual dentro do processo, por um lado é uma meta da indagação e, portanto, um motor da perseguição penal e, por outro, a verdade já não será um fim absoluto e sua busca estará rodeada de limites. O descobrimento de que a verdade permitia construir grande contribuição do pensamento iluminista, que dá origem a uma nova época para o direito penal e o processo penal. As garantias penais, que estabelecem requisitos mais rigorosos acerca do que é preciso averiguar e as garantias processuais que estabelecem mecanismos de comprovação rigorosa foram construídas em torno do conceito de verdade, mas agora a partir de uma visão política distinta” (BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais, p. 54-55).
[27] Aliás, Alberto M. Binder discorre que foi Luigi Ferrajoli quem “teve o grande mérito de voltar a colocar este tema” (verdade) “no centro da discussão sobre o processo penal” (BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais, p. 52).
[28] Parte da doutrina entende que Luigi Ferrajoli não teria enfrentado, de fato, o problema da verdade. Nesse sentido, segue a crítica de Alexandre Morais da Rosa, o qual discorre: “o ‘otimismo semântico’ de Ferrajoli, na linha Iluminista, acredita ingenuamente, como já se indicou, que mediante técnica legislativa apurada se possa colmatar o problema da polissemia da linguagem, desprezando, por assim dizer, toda a construção hermenêutica contemporânea, aprisionado que está na concepção da ‘Filosofia da Consciência’, na melhor tradição vienense” (ROSA, Alexandre Morais da. Introdução Crítica ao Ato Infracional: Princípios e Garantias Constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 176). Diferente deste ponto de vista, com todo respeito ao posicionamento do Professor Alexandre, entendemos com Gustavo Badaró: “embora não se ignore a importância das consequências do giro linguístico, principalmente o papel de intermediação entre linguagem e a realidade, isso não autoriza que se rompa toda e qualquer conexão entre o conhecimento e a realidade. Considerar que a linguagem pode operar uma desconexão entre a realidade e o conhecimento dos objetos implicaria a imprestabilidade do próprio conceito verdade” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal, p. 267).
[29] Com base no exposto pelo Desembargador Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, nos autos da Apelação Criminal n. 130.183.5/6-00 (TJ/SP), bem como nos ensinamentos de Rogério Lauria Tucci, inquisitivos mostram-se todos os procedimentos investigativos, sejam acusatórios ou inquisitórios, mormente os de natureza penal, já que: “o poder inquisitivo conferido ao órgão jurisdicional para a devida formação do seu convencimento, não deve ser confundida com o processo penal inquisitório, originário do Direito Penal romano e desenvolvido segundo o modelo canônico, de triste memória” (TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, p. 42). A inquisitividade é, assim, ínsita a toda e qualquer forma de persecução penal, seja inquérito ou processo. Nesse sentido: DELMANTO JÚNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração razoável. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 33, nota de rodapé n. 30; SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: RT, 2004, p. 154. Com uma visão divergente, segue o entendimento de Ricardo Jacobsen Gloeckner, o qual critica a distinção feita por Tucci entre os termos inquisitório e inquisitividade, aduzindo: “Lauria Tucci, inclusive, equivocadamente, estabelece uma pseudo diferenciação entre modelo inquisitivo e inquisitividade da atuação dos agentes estatais. Em suas palavras ‘mostra-se uniforme o entendimento universal acerca da distinção entre processo penal inquisitório, originado do Direito Penal Romano e aperfeiçoado segundo o modelo canônico, e a inquisitividade ínsita ao processo penal moderno’. O processualista pretende, como se fosse possível, distinguir a característica do sistema processual (inquisitório) e o substantivo marcado pelas características do próprio conceito. Sistema processual inquisitório representa aquele sistema em que o juiz detém poderes instrutórios. Inquisitividade – poderes instrutórios do juiz – somente pode ser pensado a partir do sistema inquisitório. Impossível um significante querer dizer uma mesma coisa e seu contrário (princípio da não contradição)” (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 166) (grifamos e destacamos). No ponto, cabe mencionar que Ricardo Jacobsen Gloeckner é contraditório com sua tese sobre verdade. Com efeito, o Autor, em outra oportunidade, para rebater as ponderações de Luigi Ferrajoli –sobre o assunto– discorre, em tom crítico, sobre uma “crença na objetividade, universalidade e unidirecionalidade do sentido do significante” (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 187), e apela (a nosso ver, não satisfatoriamente) para a disparidade de significados dos signos (palavras), a fim de comprovar que não existiria verdade, ou que, mesmo que existisse, seria muitíssimo questionável o seu alcance. E prossegue: “Mais do que isso, a inscrição na ordem do simbólico não imuniza e muito menos autoriza tratar significante e significado como categorias de um mesmo eixo” (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 189)(grifamos e destacamos). Ora, se, como defende o referido Autor, um mesmo termo (significante) pode conter dois ou mais significados, a ponto de questionar a possibilidade de se atingir uma verdade mais estável, as suas críticas, endereçadas a Rogério Lauria Tucci, mostram-se totalmente insubsistentes; em outras palavras, se os termos bem podem conter mais de um (ou até mesmo vários) significado(s), inquisitório e inquisitivo bem podem designar – e assim efetivamente o fazem - coisas diversas.
[30] Nesse trabalho, inquisitório será utilizado para qualificar o sistema autoritário, identificado com o processo penal romano e o canônico inquisitorial, sendo o termo inquisitivo utilizado no sentido neutro, sem qualquer caráter pejorativo, devendo ser entendido no sentido de se indagar, perquirir, o que é ínsito a qualquer investigação. Nesse sentido: ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 36, nota de rodapé n. 36.
[31] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 483.
[32] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 483.
[33] GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal, p. 68.
[34] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 486.
[35] MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 43
[36] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal, p. 19.
[37] Embora sem colocar a verdade como o principal meio de legitimação do processo, reconhece Fernanda Regina Vilares: “sem exacerbar sua importância, devemos dizer que a verdade buscada por meio da instrução criminal é um meio de legitimação da atividade jurisdicional” (VILARES, Fernanda Regina. Processo penal: reserva de jurisdição e CPIs. São Paulo: Onix, 2012, p. 124). Contudo, mais à frente, a Autora afirma que “o princípio da verdade material, na realidade, não existe. É apenas uma regra costumeira do Processo Penal, segundo a qual deve haver uma tendência à reconstrução dos fatos como efetivamente ocorreram, mas se deve sempre ter em mente que a verdade só pode ser apurada por meios lícitos, o que limita essa reconstrução” (VILARES, Fernanda Regina. Processo penal, p. 128). E arremata: “a doutrina é praticamente uníssona ao afirmar que a busca da verdade não pode ser o fim do Processo Penal” (VILARES, Fernanda Regina. Processo penal, p. 123). Concorda-se em parte com as afirmações feitas. Em primeiro lugar, seja lá como se queira denominar a verdade (pelo adjetivo material, real, processual ou simplesmente verdade: pouco importa o termo que se use), se o princípio da verdade, como bem coloca a Autora, é uma regra costumeira do processo penal, parece um pouco contraditória a conclusão de que esse mesmo princípio não existiria no processo penal. Outrossim, a doutrina, de fato, coloca que a verdade não seria um fim último do processo, mas, ainda assim, não deixa de elencá-la como um fim, ainda que intermediário. Particularmente, neste ponto, entendemos diferente, pois reputamos que o alcance da verdade é imprescindível para uma correta aplicação da lei e condução do processo. Não é possível haver justiça sem pretensão de verdade. A vedação à prova ilícita - exemplo usado para se diminuir a importância do valor conferido à verdade no processo -, a nosso sentir, serve justamente para ilustrar o oposto, já que a prova ilícita, por ser uma prova não confiável, ao ser extirpada e proscrita do processo, reforça o apreço que o processo deve ter pela verdade, não contradizendo, de jeito algum, a sua importância no processo. Por isso, entende-se que a busca da verdade (entendida como aquela mais aproximada possível da realidade) constitui, em realidade, o fim último do processo, sendo o seu pressuposto o respeito aos direitos e às garantias fundamentais,
[38] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 118.
[39] MUÑOZ CONDE, Francisco. La búsqueda de la verdad en el proceso penal. 3ª ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2007, p. 115.
[40] “... embora pudesse parecer que a finalidade da confissão era a busca da verdade material, na realidade desprezava ela a real apreciação jurídica da prova, tornando possível a condenação apenas em face do extremado apego às formas” (MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A prova por indícios no processo penal, p. 15).
[41] Poder-se-ia questionar que nem todo processo penal haveria o intento quanto à busca da verdade, afirmando-se que, na justiça negociada, a verdade seria prescindível. Rechaçam-se essas ponderações, pois, “por óbvio, no processo penal consensual, e para a própria realização da transação penal, a verdade dos fatos não é algo que possa ser totalmente desprezado. Um dos requisitos que tornam possível a transação penal é, justamente, a quantidade de pena máxima cominada ao fato. Assim, é fundamental a qualificação provisória dada ao fato. Neste caso, certamente, haverá necessidade de que seja realizado, por parte do Ministério Público, um juízo, ainda que provisório, sobre a realidade dos fatos” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal, p. 59).
[42] A observância aos direitos e garantias fundamentais não são fins à parte (ao lado ou paralelos) à busca da verdade, como parte da doutrina isnsite em pontuar: na realidade, estão “embutidos” nessa busca, sendo o pressuposto do alcance de uma decisão justa. Por essa razão, quando afirmamos que a busca da verdade é o fim último do processo, pressupomos, obviamente, o respeito aos direitos e garantias fundamentais, o qual é uma condição hermenêutica para o seu alcance.
[43] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 123
[44] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A prova por indícios no processo penal, p. 01
[45] Para falar da verdade no processo penal, a doutrina mais tradicional costumava utilizar o termo verdade material. Nesse sentido: MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Vol. I. Tradução: Alexandre Augusto Correia. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 46, nota de rodapé n. 5. Modernamento, tal adjetivivação não tem sido muito utilizada, já que não haveria uma diferenciação entre a verdade perseguida no processo penal e no processo civil. A esse respeito, preferindo usar só o termo verdade, Cleunice Pitombo fala que “na persecução penal, preferível aceitar que se perquire - na reconstrução do fato – uma verdade, sem adjetivos” (PITOMBO, Cleunice A. Valentim Bastos. Processo penal: prova e verdade. Tese (Doutorado) apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), 2003, p. 179).
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