Por Thiago M. Minagé – 08/07/2017
Já escrevia Rui Cunha Martins: ‘Diz-se evidente o que dispensa prova’ no entanto, a prova, inclina-se para o lado da evidência, quando, ao dispensar o contraditório, permite uma convicção estruturada na crença[1]. Ou seja, termos a verdade, como eixo que alicerça o processo criminal, nos condiciona o resultado à uma produção probatória para que se possa confirmar a hipótese levantada a admitida [antecipadamente] pelo juiz, logo, enfrentaremos sempre uma falta de referencial teórico que possa sistematizar de forma homogênea o processo penal frente as variantes incidentes, que são, diga-se de passagem, completamente heterogêneas.
Foi o próprio sistema inquisitivo que introduziu a verdade como um problema central do processo penal[2]. Não pelo fato de que os povos à época fossem bárbaros, mas, porque as formas de legitimação das decisões judiciais eram distintas, eis que, enraizada na fé religiosa, os povos da idade média, tinham uma visão do mundo vinculada à providencia divina, logo, se um juiz, ao ‘fundamentar’ sua decisão, utilizasse um discurso retórico religioso, alcançaria facilmente a confiança da população daquela época[3]. Ou seja: descobrir a ‘vontade divina’ em casos de difícil solução teria maior aceitação e consequente legitimação da decisão proferida em detrimento de qualquer outra fundamentação jurídica utilizada[4].
O abandono das velhas práticas judiciais e a crítica ao sistema das ordálias serve para uma nova forma de estruturação do sistema processual, que agora, buscará legitimar suas decisões sobre a base da verdade do que se julga, eis que fora introduzida como cerne do processo criminal. Por isso a verdade serviu tanto para justificar os piores excessos do poder penal, como para construir limites que buscam preveni-los. Observem: tudo ‘gira’ em torno da verdade. Daí decorre a ideia de que o sistema de garantias tenha um vínculo tão profundo frente a compreensão da lógica de busca da verdade [real] nas práticas judiciais.
Um detalhe importante não pode ser deixado de lado, à época de introdução da verdade no processo criminal, desde os gregos, passando pelos romanos e consolidando-se na idade média (ver aqui meu último artigo) existia um sério problema operacional, qual seja, o de encontrar e demonstrar a verdade sem a participação de testemunhas, peritos e etc... por exemplo. Mas, como solução desse obstáculo, qual seja, a indagação sobre a verdade, deveria ser concentrada em uma única pessoa, que estivesse acima de qualquer suspeita, portador de conduta moral ilibada para o exercício de uma verdadeira função sacerdotal, que pudesse então, assumir o compromisso com a verdade sem qualquer questionamento [des] legitimador por parte dos súditos. Eis a divindade atribuída ao juiz. Indago: se o compromisso é com a verdade e o exercício é sagrado, como questionar os excessos e desvios? Melhor: a quem questionar? Pior: como impugnar?
Ainda na busca pela compreensão e explicação desse carma denominado verdade [real], em um giro de 360º interpretativo e partindo de outra premissa na análise do uso da verdade, podemos observar que o julgador, principalmente nos dias atuais, utiliza-se de atalhos para análise dos conteúdos probatórios [exemplo claríssimo do afirmado encontramos no uso das súmulas ou precedentes como forma de decidir]. Assim, a carga mental de trabalho é reduzida com aparente conforto e coerência nas decisões produzidas em série[5] [óbvio, uma vez que, todos os casos que se enquadrem naquelas fórmulas previamente constituídas serão decididos de forma uniforme, sequencial, rápida e eficiente].
No entanto, quando a filosofia ocidental [Habermas por todos] inicia uma empreitada de questionamento do que seria ‘verdade’, deixando de lado o sujeito como detentor de todo conhecimento frente ao objeto a ser conhecido e transfere para o resultado dialético público e passa a contribuir para o fortalecimento da dissonância cognitiva dos julgadores [principais defensores de seus poderes sacerdotais fincados no mantra da verdade real], que surge, justamente, quando as premissas que fundam a verdade em determinado caso concreto, são afetadas e desestabilizadas no processo[6].
Obviamente que os defensores [da verdade] se viram em situação difícil, não só pela guinada compreensiva do que seria verdade, como também no que se refere ao enfrentamento da desestabilização das premissas compreensivas fincadas na suposta coerência compreensiva e decisiva construída pela Heurística, pois, o julgador, para manter uma certa coerência interna no intuito de evitar uma dissonância cognitiva, tem agora de refutar ou invalidar o argumento novo trazido, justamente por desestabilizar as premissas de sua pré compreensão, seja invalidando ou excepcionando-o em prol de sua crença [vide decisões recentes dos tribunais superiores. Ex: RHC 64.086 STJ]. Eis o mantra da verdade real.
Atualmente o contexto probatório e sua respectiva análise não se apresenta de forma diferente do que era na época medieval, sem muito esforço, podemos perceber que voltamos às velhas práticas, basta observar que, uma decisão se legitima, não pela fundamentação que decorre da análise dos fatos, e sim, das opiniões emitidas [manipuladas] pelos meios de comunicação, uma verdadeira explicação pós-decisão [utilizando da manifestações midiáticas] que serve, basicamente, para refutar qualquer elemento dissonante existente[7]. Assim temos o suspeito, investigado ou acusado como objeto de indagação, nunca, como sujeito de direitos. Eis que: quem poderia conhecer melhor a verdade sobre os fatos que o próprio indagado?
Ocorre que, em um processo de partes, predomina a confrontação [contraditório], o combate [paridade armas] a defesa individual garantida e respeitada sem qualquer compromisso com a dita ‘verdade’ [sim, gostem ou não] pois, cada parte, representa um interesse [individual ou coletivo] sem que o juiz esteja comprometido com qualquer um dos interesses em disputa [imparcialidade] apenas posicionado para efetivar um sistema de garantias [eis a principal e mais importante função do juiz], ou seja, o processo é o embate entre acusação e defesa, e a instauração de uma dissonância cognitiva, em que, o julgador, deverá, necessariamente, superar para proferir a decisão, que será válida, se o caminho a ser percorrido estiver de acordo com o procedimento previamente estabelecido[8].
Logo, com base no que foi trabalhado por Aury Lopes Jr. E Vitor Paczek devemos entender que a prova [alicerce da verdade] frente uma sociedade contemporânea complexa e hiperacelerada revela uma verdadeira tirania do efêmero decorrente de pressões do imediato que acabam por reduzir a complexidade probatória processual a fórmulas [simplistas] estabelecidas [abertura de espaço para o surgimento de heurísticas][9]. Como falar em busca da verdade se estamos imersos nesse quadro teórico propulsor da prática?
A busca pela verdade [se é que isso seria possível, uma vez que, a verdade é o todo e o todo é demais para nós] real [adjetivo inoportuno pois o correto seria ‘verdadeira’] acaba por se apresentar completamente contraditória, eis que, demonstrada sua finalidade, e ainda, somada à fragilidade probatória, torna a verdade real ‘encontrada’ no processo e ‘revelada’ [como se fosse um ato divino] por uma decisão judicial completamente esvaziada.
Negar ou mesmo ignorar o tema inerente à verdade real no processo penal é sinônimo de ignorar e fechar os olhos para as consequências devastadoras que vem sendo produzidas pelas decisões judiciais que adotam e nela se fundamentam para violação de direitos e garantias. Forma é garantia e limite para o exercício do poder. Eis o principal motivo para estudo e compreensão do contraditório como núcleo estruturante do processo penal [principio unificador do sistema democrático constitucional]. Para um controle da observância das garantias processuais é necessário o estabelecimento do contraditório como verdadeiro garantidor das respectivas garantias processuais. Para tanto, somente haverá um sistema de garantias, quando, toda e qualquer produção probatória, que tenha por finalidade comprovar uma hipótese acusatória, for desenvolvida e sustentada publicamente, de forma oral e mediante o rito processual previamente estabelecido.
O abandono da verdade real pelo julgador, talvez seja, algo muito distante de nossa realidade judicante. Temos que nos conformar que, uma vez alçado à posição de uma entidade sacerdotal, detentora do poder de dizer o que é verdadeiro, sendo mais preciso, o juiz ocupa a posição daquele que diz a verdade verdadeira [verdade real] seria muita ingenuidade, acreditarmos que os legitimados e escolhidos para esse sacerdócio, abdicassem de sua coroa, tal como, acreditar que, desde 13 de maio de 1888 quando foi oficialmente Lei Imperial n.º 3.353 [lei áurea] estaríamos livres da escravidão, do racismo e de toda forma de aprisionamento de um ser humano pelo outro.
Notas e Referências:
[1] MARTINS. Rui Cunha. O Ponto Cego do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 3
[2] BINDER. Alberto; O Descumprimento das Formas Processuais. Lumen Juris; Rio de Janeiro, 2002, p.45.
[3] BINDER, 2002, p. 46.
[4] BINDER, 2002, p. 47.
[5] DA ROSA. Alexandre Morais. Teoria Dos Jogos e Processo Penal. A short Introduction. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[6] DA ROSA, 2017, p. 15.
[7] DA ROSA, 2017, p. 16.
[8] DA ROSA, 2017, p. 17.
[9] LOPES JR. Aury; PACZEK. Vitor. Antecipação de prova testemunhal e a perspectiva do RHC 64.086: mais uma vez sobre a finalidade do processo. Boletim IBCCRIM: ano 25 – nº 294 – maio/2017. Jurisprudência anotada.
Thiago M. Minagé é Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Professor substituto da UFRJ/FND. Professor de Penal da UNESA. Professor de Processo Penal da EMERJ. Professor da Pós Graduação ABDConst-Rio. Colunista do site www.emporiododireito.com.br. Autor do Livro Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. Membro do IAB. Advogado Criminalista.
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