Coluna Defensoria Pública e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron
Nas últimas semanas, com a especulação acerca da chegada da tão esperada vacina para COVID-19, declarações do Presidente da República e de órgãos de saúde federais causaram polêmica (“Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”). Algumas pessoas, desconfiadas com a rapidez da aprovação da vacina ou com a sua origem (chinesa ou russa, por exemplo), têm dado eco a essas falas. Mas será que a lei e o Poder Judiciário confirmam esse entendimento?
COVID-19 à parte, é lícito que pais optem por não vacinar os próprios filhos? É lícito obrigar pessoas a se vacinarem?
Em primeiro lugar, vacinas têm uma finalidade dupla: não apenas protegem o indivíduo como protegem a sociedade como um todo, gerando imunidade coletiva. Essa imunidade coletiva é importante porque há, dentre a população, certo percentual de pessoas que não podem tomar vacinas (imunossuprimidos ou alérgicos, por exemplo), e que dependem de os demais se imunizarem para terem chance de evitar cada doença.
Por conta disso, há diversos artigos de lei que acabam se aplicando à matéria, alguns do ponto de vista do menor vacinando (Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo) e outros do ponto de vista coletivo. Vejam-se abaixo alguns dispositivos legais:
- 14, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.”
- Decreto Lei nº 78.231/1976: estabelece em seu artigo 29 que “É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória”. O parágrafo único do mesmo artigo também é claro em dispor que a vacinação obrigatória só será dispensada se a pessoa apresentar atestado médico de contraindicação explícita da aplicação da vacina. O artigo 27 do Decreto ainda preleciona que o Ministério da Saúde é o órgão responsável por definir as vacinas obrigatórias em todo o território nacional e em determinadas regiões do país, de acordo com comportamento epidemiológico das doenças. Assim também dispõe o artigo 3º da Lei nº 6.259 de 1975.
- Portaria 1.498/2013 do Ministério da Saúde: indica o calendário e as vacinas obrigatórias. Confira: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/anexo/anexo_prt1498_19_07_2013.pdf
- Lei 13.979/2020: sancionada para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, estabelece em seu artigo 3º, III, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas.
- Artigo 268 do Código Penal: penaliza quem infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. A pena é de detenção de um mês a um ano e multa, podendo ser aumentada de um terço se o agente for funcionário da saúde pública ou exercer a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
- 10, VIII, da Lei 6.437/1977: é infração sanitária reter atestado de vacinação obrigatória, deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias que visem à prevenção das doenças transmissíveis e sua disseminação, à preservação e à manutenção da saúde, sujeito a pena de advertência, interdição, cancelamento de licença ou autorização, e/ou multa.
- 249, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): constitui infração administrativa descumprir os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar, estando sujeito a multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.
- O Projeto de Lei 3.842/2019, ainda em tramitação, tipifica o crime de omitir-se ou contrapor-se, sem justa causa, à vacinação de criança ou adolescente prevista no programa nacional de imunização. A pena prevista será de detenção de um mês a um ano ou multa.
O Poder Judiciário já se manifestou diversas vezes sobre o assunto, em geral em discussões envolvendo a vacinação de filhos menores. O entendimento do Judiciário acerca desses dispositivos tem sido no sentido de que há sim obrigação de vacinar, por várias óticas. Em resumo, a conclusão é de que se trata de obrigação legal e de que a autoridade parental não é ilimitada e precisa ser sopesada diante do interesse coletivo e da proteção do próprio menor.
Como exemplo, pode-se citar recente decisão liminar do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que determinou ao pai e à mãe que providenciassem a vacinação do filho recém-nascido na cidade de Gaurama, norte do estado, afirmando que não há espaço legal para que os pais, validamente, exerçam opção filosófica, empírica e pessoal de não vacinar, bem como que a autoridade parental não é ilimitada.[1]
O juiz exemplifica que os pais não podem submeter os filhos a castigos imoderados, ainda que entendam que é assim que se educa, nem impedir os filhos de irem à escola, ainda que se achem melhores educadores que os professores. Da mesma forma, não podem se omitir no dever de vacinar.
Outro exemplo recente vindo de São Paulo (11 de julho de 2019) foi na mesma linha: o Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento ao apelo do Ministério Público para condenar os pais a procederem à regularização da vacinação obrigatória da criança, sob pena de suspensão limitada do poder familiar para que o Conselho Tutelar, por meio de busca e apreensão, proceda à regularização determinada[2].
O fundamento, conforme mencionado acima, é sempre dúplice: risco individual e coletivo: “Desta feita, a opção dos pais em não proceder à vacinação obrigatória dos filhos menores gera, a um só tempo, descumprimento das normas sanitárias internas do Brasil, risco concreto à saúde e bem estar da criança e risco de contaminação coletiva por conta da diminuição da população imunizada.”
Há decisões semelhantes de diversos outros tribunais, várias abordando (e afastando), inclusive, a questão da liberdade religiosa. Veja-se decisão de Minas Gerais:
“A vacinação consiste não apenas em direito individual, mas em direito coletivo, uma vez que tem por objeto a diminuição, ou até mesmo a erradicação de doenças. A interpretação que se faz é que as normas de regência buscam garantir a saúde do indivíduo e, por consequência, de toda a população, sendo, portanto, algo acima da escolha pessoal, vez que envolve a diminuição da exposição ao risco e ao contágio de determinadas doenças e ainda evita o reaparecimento de doenças consideradas erradicas. Em consideração Ao Princípio Constitucional do Melhor Interesse, não podem os genitores se recursarem a vacinar os filhos quando se busca alcançar o pleno desenvolvimento daqueles, o que, por certo, envolve o direito à saúde em todas as suas formas, incluídas as de prevenção por meio da vacinação. O interesse do menor se sobrepõe a qualquer interesse particular dos genitores. A imposição da imunização não fere o direito à liberdade religiosa, uma vez que não sendo esse absoluto, é passível de ponderação e, assim, não há se falar no direito de escolha dos pais, mas no direito da criança à saúde.”[3]
Com a chegada da vacina da COVID e a desconfiança de alguns diante da aceleração dos estudos, o assunto deverá frequentar as notícias. A conclusão, no entanto, por ora, é a de que o Poder Judiciário tende a não dar guarida ao entendimento do Presidente da República, pelo menos de acordo com a jurisprudência formada até o momento.
Para elidir dúvidas, o Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente colocou em pauta o assunto sob a ótica dos menores[4]: vai decidir, sob regime de repercussão geral, se pais podem optar por não vacinar seus filhos menores de idade por questões filosóficas, religiosas, morais e existenciais. O resultado, ainda sem data prevista, valerá para todos os casos semelhantes nas instâncias inferiores.
Em tal recurso extraordinário escolhido para repercussão geral, os pais, adeptos da filosofia vegana e contrários a intervenções medicinais invasivas, alegam que: (i) embora não seja vacinado, o menor possuiria boas condições de saúde, é acompanhado por médicos e cuidado nos termos da filosofia vegana, o que impede a adoção de tratamentos médicos invasivos; (ii) a escolha pela não vacinação seria ideológica e informada, não devendo ser considerada como negligência, mas sim excesso de zelo dos pais quanto aos supostos riscos envolvidos na vacinação infantil; e (iii) a obrigatoriedade da vacinação de crianças, inscrita no art. 14, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente e demais normas infralegais, deveria ser sopesada com a liberdade de consciência, convicção filosófica e intimidade, garantida no art. 5º, VI, VIII e X, da Constituição.
De acordo com o Relator Ministro Luís Roberto Barroso, a questão envolve a interpretação e aplicação de diversos dispositivos da Constituição Federal: a saúde dos menores como prioridade absoluta (art. 227), o direito à saúde garantido por políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças (art. 196), a liberdade dos genitores na condução da educação (art. 226 e 229), bem como a liberdade de consciência, de crença e de manifestação política, religiosa e moral (art. 5º, VI e VIII, da Constituição):
“A controvérsia constitucional envolve, portanto, a definição dos contornos da relação entre Estado e família na garantia da saúde das crianças e adolescentes, bem como os limites da autonomia privada contra imposições estatais. De um lado, tem-se o direito dos pais de dirigirem a criação dos seus filhos e a liberdade de defenderam as bandeiras ideológicas, políticas e religiosas de sua escolha. De outro lado, encontra-se o dever do Estado de proteger a saúde das crianças e da coletividade, por meio de políticas sanitárias preventivas de doenças infecciosas, como é o caso da vacinação infantil”.
Não há previsão de prazo para tal julgamento. Sabe-se, no entanto, que a questão está sendo analisada a fundo, restando acompanhar o julgamento e a jurisprudência que, antes dele, deverá se formar nos tribunais estaduais por conta da vacina contra o coronavírus.
Vale ressaltar que as decisões em geral referem-se a menores cujos pais rejeitam a vacinação. Resta acompanhar de que forma o Poder Judiciário enfrentará a matéria se e quando a obrigatoriedade disser respeito a adultos, e não a menores. Por exemplo: empregador pode obrigar os funcionários a se vacinarem? A vacina pode ser condição para comparecimento a eventos ou viagens aéreas? Países podem proibir estrangeiros ou até nacionais residentes de ingressar sem terem tomado a vacina? Perguntas como essas já estão sendo feitas e, em breve, possivelmente serão objeto discussões judiciais.
Notas e Referências
[1] https://www.ibdfam.org.br/noticias/7681/Decis%C3%A3o+do+TJRS+determina+que+pais+providenciem+vacina%C3%A7%C3%A3o+do+filho+rec%C3%A9m-nascido (Acessado em 21 de setembro de 2020)
[2] TJSP. Apelação nº 1003284-83.2017.8.26.0428. Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Comarca de Paulínia. Relator Fernando Torres Garcia. Data do julgamento 11.07.2019.
[3] TJMG. Apelação Cível nº 1.0518.18.007692-0/001. 4ª Câmara Cível. Relator Des. Dárcio Lopardi Mendes. Data do julgamento 12.12.2019.
[4] http://stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=8954252 (Acessado em 21 de setembro de 2020)
Imagem Ilustrativa do Post: HPV Vaccination in Sao Paulo Brazil March 2014 // Foto de: Pan American Health Organization PAHO // Sem alterações
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