Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi
1. Introdução: para uma nova sociedade, um novo código. Mas manejado por antigos ou novos operadores do Direito?
A minha reflexão propõe, em síntese, um recomeço, uma volta às origens, com vistas a, quiçá, no seu final, permitir que apliquemos mais e melhor o “estado da arte” de todos os institutos previstos no CPC/2015.
Pretende ser uma abordagem propositiva, mas que traz em seu bojo um inevitável quê de denúncia ou talvez de exortação, que nos tira de nossa zona de conforto.
O Direito Processual, tanto ou mais do que os demais ramos do Direito, precisa manter e nutrir uma conexão indelével com a sociedade a que se volta, que é o destinatário dos préstimos de nosso sistema de justiça. E as expectativas e os anseios da sociedade, do jurisdicionado - como costumamos técnica e carinhosamente chamá-lo na ciência processual - mudam ao longo do tempo e do momento histórico.
Por isso, essa conexão, embora indelével, não é imutável. Ao contrário, ela é essencialmente mutável e cambiante, justamente porque a sociedade é mutável e cambiante.
Havendo mudanças profundas na sociedade, que impactem nas expectativas do jurisdicionado em relação ao sistema de justiça, o processualista precisa estar alerta para, em um primeiro momento, detectar tais mudanças significativas e, a seguir, deflagrar um movimento voltado a envidar esforços para interpretar e aplicar institutos existentes de modo a deles extrair todo o seu potencial para atender a tais expectativas (movimento de lege lata) ou, não sendo suficiente, criar novos instrumentos e institutos para tanto (movimento de lege ferenda).
Portanto, o trabalho do processualista não está nunca acabado. Estamos sempre in itinere, a caminho, em busca de um sistema de justiça que esteja apto a alcançar resultados mais adequados, justos, efetivos e consentâneos com as expectativas de seus destinatários em cada momento histórico.
E aqui está o mérito do legislador na edição do CPC/2015.
Vivenciamos todos nós uma série de mudanças pontuais no CPC/1973 ao longo das mais de quatro décadas de sua vigência, a ponto de torná-lo quase que uma colcha de retalhos. Mudou-se no pouco e no muito; e destaco, a título ilustrativo, duas alterações significativas, tais como a previsão da tutela antecipada nas Disposições Gerais Do Processo e do Procedimento (art. 273, CPC/1973, com a redação trazida pela Lei nº 8.952/1994), pondo fim à insegurança jurídica decorrente do cabimento ou não e em que medida das então chamadas “cautelares satisfativas”, e da previsão do processo sincrético (art. 475-I, CPC/1973, trazido pela Lei nº 11.232/2005), suplantando a nossa tradição de fragmentar cognição, execução e cautela em processos autônomos e diversos.
No entanto, o ponto de virada está quando alterações legislativas pontuais, seja no pouco ou no muito, não se mostram mais suficientes. A detecção desse momento, que é uma virada histórica, não é singelo.
Mas o legislador, com acuidade, entendeu que esse momento haveria chegado e se justificava a edição não mais de leis esparsas modificadoras do CPC/1973, mas a edição de um novo Código de Processo Civil.
E, penso eu que, num balanço, precisamos perguntar: por que será que o legislador optou, neste momento, por esse movimento mais drástico e complexo?
Não vou aqui entrar nas origens e nas idas e vindas do movimento de codificação do Direito.
José de Oliveira Ascensão pontua que um código, para ser assim intitulado, se reveste de unitariedade e sistematicidade, não sendo apenas uma mera compilação de regras pontuais. Uma das “vantagens” apontadas por Ascensão para justificar a edição, em dado momento histórico, de um novo código é fazer “avultar os grandes princípios que disciplinam aquele sector da vida social” e dar “ao intérprete um mapa onde situar” cada novo caso. A edição de um código, para o referido autor, pressupõe a “construção científica do Direito”, segundo os “princípios comuns que vivificam as diversas partes”[2].
Ou seja, trazendo para o Direito Processual, a edição de um novo código ocorre quando são necessárias mudanças paradigmáticas, na estrutura do Direito Processual, que mudanças legislativas pontuais não logram alcançar e espelhar.
Precisamos estar cientes e atentos a isso, porque, em última análise, se não nos apropriarmos dessa ideia e deixarmos de ler, interpretar e aplicar todo o CPC/2015 sob essa perspectiva, de forma sistemática, a mudança de paradigma que justifica um movimento tão drástico se esvai e voltamos a ter “mais do mesmo” para uma sociedade profundamente modificada.
Resumidamente, vou pinçar quatro grandes paradigmas trazidos pelo CPC/2015 que, a meu ver, são marcas distintivas dele e que, por isso, ilustram a justificativa da edição de uma nova codificação, a saber: autocomposição, cláusula geral de negociação, precedentes e medidas executivas atípicas.
O que a minha abordagem busca chamar a atenção é que, em síntese, a grande marca do CPC/2015 e o que o justifica enquanto codificação e não mera lei esparsa não é, a meu ver, pontualmente a criação de IAC ou de IRDR, ou mais uma mudança - em parte frustrada pela jurisprudência - de modificação no agravo (que é a, na minha opinião, a “Geni” do sistema recursal brasileiro), mas é, acima de tudo e mais drasticamente, exigir um novo perfil de atuação dos operadores do Direito e reorganizar profundamente os papeis dos atores do sistema de justiça civil brasileiro. E por isso nenhum de nós consegue passar ileso.
Quando testemunhamos a edição de um novo código, experienciamos a passagem do bonde da História em nossa frente. Mas podemos nele subir ou ficarmos parados na estação, assistindo ele prosseguir o seu trajeto, de forma passiva, mas nem por isso isenta.
Os colegas processualistas penais da minha geração (e de outras anteriores), por exemplo, ainda não vivenciaram algo semelhante em sua área de pesquisa e atuação e manejam, até os dias atuais, o Código de Processo Penal (Decreto Lei nº 3689) editado por Getúlio Vargas em 03/10/1941 (quase trinta anos antes do nosso já revogado CPC/1973, portanto).
Feita a devida contextualização, passo, a seguir, a brevemente abordar cada qual dos quatro novos paradigmas traçados pelo CPC/2015, que impactam substancialmente no perfil de atuação dos operadores do Direito.
2. Autocomposição: artigo 3º, §§2º e 3º, CPC/15.
O artigo 3º, para ficarmos em apenas um artigo sobre o tema, dados os limites da presente reflexão, é cristalino ao apontar para nós um novo grande paradigma: o paradigma do diálogo, do consenso na solução dos conflitos. O seu §2º prevê que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos” e o seu §3º dispõe que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do MP, inclusive no curso do processo judicial”.
Isso subverte completamente a lógica tradicional de nosso sistema jurídico-processual, que sempre privilegiou a solução heterocompositiva, a adjudicação estatal. Agora, o legislador nos endereça uma mensagem inequívoca: devemos todos privilegiar a autocomposição em detrimento da heterocomposição.
Veja-se: não se trata de apenas nos instar a passar a manejar determinado recurso no lugar de outro, ou privilegiar o modo retido, diferido ou imediato de seu julgamento, ou a praticar tal ou qual ato processual de um novo modo ou prazo. É substancialmente muito mais do que isso.
E esse novo grande paradigma, não por acaso, está elencado como uma das normas fundamentais do Processo Civil Brasileiro e está topologicamente alocado em um dos primeiros artigos do CPC/2015. Isso se dá porque esse novo paradigma se espraia por todo o código. Todos os dispositivos do CPC/2015 precisam, por coerência interna, organicidade e sistematicidade ser lidos, interpretados e aplicados sob o pálio desse novo paradigma.
Outros dispositivos legais, como corolário do artigo 3º, buscam concretamente viabilizá-lo, como é o caso, claramente, do artigo 334, do CPC/2015, que - não entrando no mérito de seus acertos ou erros pontuais - define, coerentemente, que, nos litígios que admitam autocomposição, a designação de sessão de conciliação ou mediação passa a ser a regra (in dubio pro consensu), logo ao início do procedimento comum, salvo se todas as partes manifestarem desinteresse. Nas ações de família, o legislador vai ainda mais longe e designa um procedimento especial cujo coração, culminância e razão de ser é precisamente a realização da sessão de mediação (artigos 694 e 695, CPC/2015).
Mas a pergunta é: esse paradigma é “autoexecutável” na prática, ou seja, as leis processuais tomam as ruas, os corredores do fórum sponte propria, com uma força propulsora interna? Uso o termo “autoexecutável” aqui não no sentido jurídico que lhe atribuímos, mas no sentido mais comezinho e pragmático, em seu sentido empírico. E a resposta é, a meu sentir, “não”.
Depende da vontade e do labor dos operadores do Direito. O ponto de virada é, pois, precisamente a saída dos operadores do direito da sua zona de conforto do tradicional (e suplantado) paradigma do CPC/1973 e a sua reação interna, que se projeta na sua prática profissional, direcionada a efetivamente concretizar esse novo paradigma diuturnamente. E isso se dá laboriosamente, sem passe de mágica, na lida diária.
Paulo Eduardo Alves da Silva e Tatyana Paravela, após estudo de casos no estado de São Paulo, concluem que “em apenas 16% dos processos que compuseram a amostra analisada foi designada audiência de conciliação” (artigo 334, CPC/2015). Destacam os autores ainda que, dentre os motivos para o magistrado deixar de designar a sessão de mediação e conciliação, sobressai a inviabilidade material, diante do déficit de mediadores, como se extrai claramente da seguinte decisão, reproduzida no aludido trabalho: “Anoto que não será feita a audiência de conciliação de que fala o artigo 334 do CPC. Isto porque não há viabilidade material de realização desta audiência por ausência de estrutura”[3].
De acordo com o Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça publicado em 2020[4], no ano de 2019, apenas 12,5% de processos foram solucionados via conciliação, sendo que, em relação a 2018, houve aumento de apenas 6,3% no número de sentenças homologatórias de acordos. De acordo com o mesmo Relatório, no fim de 2019, havia na Justiça Estadual 1.284 CEJUSCs instalados, o que representa quase o triplo do número de Centros existentes em 2014. Não obstante, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 5.570 municípios atualmente em nosso país, a demonstrar que ainda temos muito a avançar no que tange à interiorização e à capilaridade da oferta concreta de mediação e conciliação em nosso país, de modo a genuinamente atender ao paradigma da autocomposição.
Os números são, de fato, desoladores.
Podemos ficar nos lamuriando, mas não creio que seja esse o mote da confecção desse belíssimo Congresso.
As possíveis soluções são várias, embora todas laboriosas, sem luxo, sem mágica, mas factíveis e consentâneas com o CPC/2015 e com a CRFB/1988, tais como convênio entre o Poder Judiciário e o segmento extrajudicial, conforme Recomendação 28/2018 e Resolução 350, ambas do Conselho Nacional de Justiça, sendo que a última prevê a cooperação interinstitucional como integrante do conceito de cooperação judiciária nacional - afinal, autocomposição, Justiça Multiportas e desjudicialização andam de mãos dadas , e tantas outras.
Ou seja, é possível, mas é preciso um artífice, um agente catalisador dessa mudança paradigmática, de forma proativa e criativa, que são o juiz, o promotor, o advogado público e privado, o delegatário de serventia extrajudicial, enfim, todos os operadores do Direito, seja criando meios de viabilizar o artigo 334, do CPC/2015, fomentando a mediação extrajudicial com a criação de câmaras sérias e respeitadas, seja todos adquirindo as habilidades do diálogo que não são características dos operadores do Direito até a minha geração, mas que hoje se mostram indispensáveis para se adotar todo um novo modus operandi consentâneo com as linhas mestras do CPC/2015.
3. Cláusula geral de negociação processual: artigo 190, CPC/15.
O Direito Processual é ramo do Direito Público e o processo judicial é dirigido por um Poder do Estado, pelo Estado-juiz, conforme resta inequívoco no caput do artigo 139, CPC/2015.
Por isso, trazendo uma colocação objetiva e até simplista, por conta da restrição de tempo, o Direito Processual é um “campo minado”, permeado por normas cogentes, pela delicada e desafiadora Ordem Pública Processual, que Ricardo Aprigliano[5], Trícia Navarro[6], Igor Raatz[7] se debruçaram com coragem e vigor.
Mas, mesmo nesse “campo minado”, o legislador, no CPC/2015, nos trouxe um mapa que sinaliza um novo caminho asfaltado, que, até então, se mostrava acidentado e sinuoso, por conta de oscilações principalmente em sede doutrinária sobre o seu cabimento: a possibilidade de as partes celebrarem negócios jurídicos processuais atípicos (artigo 190).
Deixando à parte os limites dos negócios jurídicos processuais atípicos, que transborda, e muito, a temática da presente reflexão, o fato é que a cláusula geral de negociação processual do artigo 190 do CPC/2015 corrobora a primeira grande premissa antes traçada. Sim, corrobora. E não há razão para estranheza. Trata-se de subscrever o paradigma do diálogo e chancelar a autonomia da vontade das partes, tanto quanto possível. Sendo assim, se as partes não lograram solucionar o objeto litigioso através de acordo, que seria a preferência clara do CPC/15, em seu artigo 3º, como examinado no item precedente, de modo que a instauração e/ou o prosseguimento do processo judicial se faz necessário, o diploma processual coerentemente aquiesce com que as partes possam, quando menos, como consectário do diálogo sadio e benfazejo, pactuar sobre aspectos processuais que tenham o potencial de tornar o procedimento mais adequado às especificidades da causa.
Trata-se, a bem dizer, de uma nova fronteira da tutela diferenciada, cunhada por Andrea Proto Pisani[8]. Se até então falávamos em tutela diferenciada preponderantemente nos formatos pré-estabelecidos pelo legislador nos procedimentos especiais codificados, nas leis esparsas e nos microssistemas, agora fica claro que as próprias partes e os operadores do Direito são colocados no centro da cena, como coprotagonistas. Isso é prova cabal do profundo rearranjo do papel dos operadores do direito nesse novo desenho do sistema de justiça.
Cabe consignar que, mais uma vez, como artífices e agentes catalisadores desses novos paradigmas, nos cabe o relevante e delicado papel de definir como e para quais finalidades os negócios jurídicos processuais atípicos serão utilizados.
Um importante e nobilíssimo segmento e propósito de emprego dos negócios jurídicos processuais atípicos, em consonância com o artigo 1º do CPC/15, que nos impele a interpretar e aplicar todos os instrumentos processuais à luz e em prol das garantias fundamentais do processo, é o seu manejo com vistas a transpor óbices à paridade de armas e à promoção da equidade endoprocessual, reduzindo as “vulnerabilidades processuais”[9], inclusive e especialmente das mulheres, como estamos estudando neste ano de 2021 no Grupo de Pesquisa Democracia e Processo da UERJ e, muito em breve, daremos a conhecer a toda a comunidade o produto dessas reflexões.
Concordamos integralmente com Júlio Camargo de Azevedo quando afirma que o artigo 190 do CPC/2015 tem uma vocação inata para a igualdade material, para a acessibilidade, para a redução de disparidades, ou seja, uma vocação democrática, democratizante e humana do processo. O autor atribui, a meu ver, com razão, ao artigo 190 a função de “cláusula-geral de vulnerabilidade no Direito Processual Civil brasileiro”, sendo a consideração concreta de vulnerabilidade um fator de discrímen que justifica a adequação da técnica processual e do procedimento[10].
Mas isso depende, mais uma vez, da nossa iniciativa, corroborando a premissa inicial desta exposição.
4. Precedentes: artigo 926, CPC/15.
Dados os limites do presente trabalho, mantenho o compromisso de pinçar apenas um dispositivo legal do CPC/2015 para ilustrar cada paradigma. E, para o terceiro grande novo paradigma do CPC/2015, que é o dos precedentes, não tenho como escapar de pinçar o artigo 926, que erige como dever dos tribunais – veja-se: sem adjetivações que porventura restrinjam a quais cortes se dirige a norma - “uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
Entendo que, a partir dessa norma, descortina-se o terceiro grande paradigma de nossa fala de hoje, que é a opção legislativa de romper com a nossa tradição jurídica secular de manejo errático e desestruturado da jurisprudência para ratificar que insta os operadores do Direito a adotar uma nova postura a partir de agora, nesse novo momento histórico. Almeja-se trazer um mínimo de organicidade, comprometimento e responsabilidade na elaboração, invocação, aplicação e revisão dos julgados a serem adotados como paradigma para decisões futuras.
E eu poderia trazer dezenas de dispositivos do CPC/2015 que revelam um esforço genuíno do legislador, ao longo da referida codificação, para demonstrar para nós, operadores do Direito, das mais diversas formas, que esse paradigma é sério e é para ser levado a sério. Ele impacta na autorização legal para que o juízo de 1º grau possa julgar liminarmente improcedente o pedido (art. 332, CPC/15), conceder tutela provisória da evidência (art. 311, II, CPC/15), para reputar não fundamentada e, por isso, nula, a sentença que não leve esse paradigma a sério (art. 489, §1º, V e VI, CPC/15), para autorizar julgamento monocrático do recurso pelo Relator (artigos 932 e 1011, inciso I, do CPC/15) e assim por diante.
Esse novo paradigma, mais uma vez, não é “autoexecutável” concretamente, ele depende de um novo perfil de atuação dos operadores do Direito. Especialmente da magistratura, é verdade, mas não apenas dela.
Da magistratura porque, a meu ver, ler o artigo 926 como um novo paradigma que justifica a edição de uma nova codificação implica dizer que independentemente da corrente doutrinária a que adiramos quanto à interpretação do artigo 927 - quando, em qual medida e quais incisos são vinculantes -, o fato é que mudança de paradigma representa mudança de mentalidade e de postura. Não se trata de mudança pontual, periférica, cosmética. Dói, incomoda, dá trabalho.
Ou seja, o paradigma do artigo 926 conclama textualmente os tribunais, mas a norma fundamental da cooperação do artigo 6º se encarrega de voltar todos os demais operadores do Direito para que também colaborem, cada qual na parte que lhe toca, para que se logre uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
À primeira vista, eu tendia a compreender que a ampliação das hipóteses de precedentes vinculantes em nosso ordenamento jurídico processual acabaria por ter o efeito colateral de “acanhar”, de passar a mensagem de “apequenamento” do papel da magistratura de 1º grau, que está na base da pirâmide do Poder Judiciário; de, ainda que por via transversa, tolher a independência dos magistrados zelosos e aguerridos, que julgam seus casos com zelo. Temia que pudesse lhes transmitir a mensagem de que, agora, deveriam se tornar “burocratas”, o que seria, em tese, agravado pelo Justiça em Números, que coloca na vitrine seus scores e, como consequência, faz aumentar a cobrança geral por números mais promissores, que espelhem maior produtividade.
Nuria Belloso Martín, Professora da Universidade de Burgos, na Espanha, externa essa mesma preocupação inicial minha, dizendo que os tribunais inferiores, ao estar constrangidos a resolver conforme a jurisprudência, ver-se-iam limitados em sua independência e autonomia, porque se sentiriam impedidos de realizar a interpretação da norma, passando, assim, a ser “meros aplicadores do precedente judicial”[11].
No entanto, bem vistas as coisas, o novo paradigma traçado pelo artigo 926 do CPC/2015 conclama todos, inclusive o juiz de 1º grau de jurisdição, à tarefa laboriosa e não menos importante de, em primeiro lugar, acompanhar a formação da jurisprudência aplicável à sua área de atuação, exigindo-lhe, portanto, constante atualização, e, em segundo lugar e não menos importante, se debruçar sobre o caso concreto que lhe foi confiado e lhe compete para, somente a partir disso, identificar se ele se adequa ou não aos precedentes formados e em qual medida, fundamentando. Trata-se de tarefa que transpõe, e muito, a ideia de um juiz “burocrata”.
De igual modo, advogados públicos e privados, promotores de justiça e delegatários de serventia extrajudiciais devem se pautar pelo mesmo escopo de contribuir para a formação de bons precedentes, acompanhar a sua evolução, invocá-los e aplicá-los correta e lealmente. Trata-se, pois, de um novo paradigma macro, a que nenhum operador está infenso.
5. Medidas executivas atípicas: artigo 139, IV, CPC/15.
E a prova cabal de que o CPC/2015 não quer um juiz “burocrata”, nem tampouco pretende, de modo algum, desvalorizar ou apequenar o papel do magistrado, muito embora tenha, de fato, promovido uma reorganização profunda do sistema de justiça, passando pela colocação, no centro da cena, de diversos e novos agentes, está na autorização para que o magistrado defira medidas executivas atípicas.
Ao trazer conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas abertas para autorizar o magistrado a ser criativo - embora sempre com responsabilidade, razoabilidade, comedimento, compromisso com a isonomia e com a menor onerosidade para o executado - e possa, assim, contribuir, com imparcialidade mas de forma capital, para que se alcance o princípio da efetividade, do resultado ou do desfecho único na execução, alçado a uma norma fundamental nos artigos 4º e 6º do CPC/2015, em suas respectivas partes finais.
Tenho dito que a execução civil no Brasil é o nosso “nó aselha”, de dificílimo desate[12], mas tais medidas sinalizam que o CPC/2015 está longe de querer operadores do Direito burocratas ou autômatos para se desincumbir do desafiador mister de tentar desatá-lo.
Ainda estamos nos sintonizando, após 5 anos de vigência da codificação, aos lineamentos do artigo 139, IV, CPC/2015, mas isso também não é o foco da minha abordagem neste trabalho.
O que importa dizer é que, mais uma vez, o CPC/2015 nos dá outra prova cabal de que estamos diante de novos paradigmas, de que lidar com uma nova codificação está longe de ser uma tarefa fácil para o operador do Direito no século XXI. E isso não decorre de “maquiavelismo” do legislador, em absoluto.
Ao contrário, voltando para o início da presente abordagem, essa é uma resposta complexa para um problema complexo. Ou melhor: é exigir de nós, operadores do Direito que lidamos com o sistema de justiça civil brasileiro, um novo e complexo perfil de atuação, sem “piloto automático” ligado, cada vez com um número de fórmulas preconcebidas menor, pois a sociedade para a qual se volta o sistema de justiça é cada vez mais complexa e exigente e os litígios dela emergentes são, por via de consequência, cada vez mais multifacetados e complexos - os ditos hard cases se proliferam.
6.Conclusão: o real – e desejável - incremento na efetividade do sistema de justiça, a partir da vigência do CPC/2015, depende “do quê” ou “de quem”?
O saldo desse balanço é apenas um, então.
Temos um novo Código de Processo Civil no século XXI, em nosso país, pois temos, no século XXI, em nosso país, uma nova sociedade e, por conseguinte, a partir dela, um contingente de litígios a serem solucionados que muito se distanciam da realidade histórica dos idos da década de 1970.
E o que justifica a edição de um novo código e não a replicação do expediente que se vinha adotando nas décadas anteriores, de edição de leis modificadoras do CPC/1973 é que nos são colocados novos grandes paradigmas, que nos exigem um novo perfil de atuação.
Isso é desconcertante, é incômodo, é trabalhoso, mas é o honesto balanço que eu devo fazer. E a régua para, daqui a mais cinco anos, medirmos o grau de efetividade dos novos instrumentos trazidos pelo CPC/2015, está em nossas mãos.
Não poderemos, comodamente, colocar o dedo em riste para jogar a culpa em terceiros ou no próprio legislador.
Se não tivermos um sistema de justiça civil diferente - preferencialmente melhor - após o CPC/2015, talvez a pergunta seja menos “por quê?” e mais “por causa de quem?”.
Para um novo código, infelizmente, são necessários “novos” operadores do Direito. O diferencial para que os paradigmas de um novo CPC não sejam mera utopia, mas concreta realidade, somos nós.
Senão, acabaremos tendo mais do mesmo, sendo que somos os primeiros da fila a nos queixar do status quo.
Permito-me finalizar parafraseando o saudoso professor Piero Calamandrei, em seu trabalho “A Crise da Justiça”[13], que, embora em contexto histórico diverso do nosso, fez um alerta que, em boa medida, cabe aqui: Exatamente a partir destas frias fórmulas legislativas, parte um ataque de conteúdo revolucionário contra o status quo e aponta-se para a aspiração a uma nova ordem.
Será que o “exército” dessa sadia revolução está a postos?
En garde, donc.
Notas e Referências
[1] Texto redigido a partir de palestra ministrada no II Congresso online Mulheres no Processo, do Instituto Brasileiro de Direito Processual, no dia 13/08/2021, no painel “Balanço dos 5 anos de vigência do CPC/2015”, disponível no canal do Youtube do aludido Projeto: https://www.youtube.com/channel/UCknaeCW15_lbphyFpkUsjig
[2] ASCENSÃO, José de Oliveira. “O Direito. Introdução e Teoria Geral”. 13. Ed. Coimbra: Almedina. 2005. P. 370.
[3] SILVA, Paulo Eduardo Alves da. PARAVELA, Tatyana Chiari. "Algum dia, talvez, se for o caso… - frequência e motivos para a não designação da audiência do artigo 334 do CPC em comarcas da justiça estadual paulista”, Revista Eletrônica de Direito Processual. vol. 21, número 3. Setembro a Dezembro de 2020. pp. 500-533.
[4] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/ Consulta realizada em 12/08/2020.
[5] APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem pública e processo. O tratamento das questões de ordem pública no Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas. 2011.
[6] CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Ordem pública processual. Brasília: Gazeta Jurídica. 2015.
[7] RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo: liberdade, negócios jurídicos processuais e flexibilização procedimental. 2. Ed. Salvador: Jus Podivm. 2019.
[8] PISANI, Andrea Proto. “Tutela giurisdizionale differenziata e nuovo processo del lavoro”. Il Foro Italiano. Vol. 96. n. 9. Setembro. 1973. pp. 205-250.
[9] AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade: critério para a adequação procedimental. A adaptação do procedimento como garantia ao acesso à justiça de sujeitos vulneráveis. CEI. 2021. P. 138.
[10] Idem, p. 140.
[11] MARTÍN, Nuria Belloso. “Del precedente judicial a los precedentes obligatorios: ¿ventaja o amenaza para los tribunales inferiores?” Revista Eletrônica de Direito Processual. Ano 12. Volume 19. Número 3. Setembro a Dezembro de 2018. pp. 591-626
[12] HILL, Flávia Pereira. “A produção antecipada da prova para a busca de bens no patrimônio do devedor: rumo a uma execução mais efetiva e racional”. Revista Eletrônica de Direito Processual. Ano 15. Volume 22. Número 2. Maio a Agosto de 2021. pp. 302-322.
[13] CALAMANDREI, Piero. A Crise da Justiça. Belo Horizonte: Editora Líder. 2004. P. 22.
Imagem Ilustrativa do Post: Justice isn't blind, she carries a big stick // Foto de: Jason Rosenberg // Sem alterações
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