Uso invertido da LGPD: como a lei é erroneamente usada para negar direitos

03/07/2024

1. INTRODUÇÃO

Este texto almeja abordar a equivocada mobilização da LGPD no Brasil para negar direitos, delimitando-se ao seu uso invertido na Sociedade de Controle, isto é, quando organizações e pessoas, valendo-se de má-fé e/ou aproveitando-se convenientemente do texto legal, ou ainda que por erro e repetição ingênua, citam a lei de modo a gerar interpretações e consequências completamente opostas aos direitos assumidos pela própria LGPD e seus princípios envolvidos, resultando em flagrante teratologia e ilegalidade em matéria de dados pessoais (ainda que em nome da LGPD e Proteção de Dados, ou pior, justamente sob esses nomes, impulsionando críticas à lei que na verdade refletem seu falso uso).

Nas bases teóricas, mobiliza-se a Análise de Discurso de Pêcheux (2014), em diálogo com a Criminologia Crítica e a Sociologia Jurídico-Penal, na análise jurídica do que ocorre no Brasil e impactos no funcionamento ideológico da Sociedade de Controle (PIRES, 2018), com vistas à transformação gradativa da ideologia antes dominante, que preconizava um mundo sem regras envolvendo dados pessoais, onde nenhuma prática era questionada (a exemplo de venda de banco de dados entre empresas).

Convém pontuar, que quando empresas e mesmo órgãos públicos não cumprem adequadamente a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), mas a utilizam de forma equivocada e abusiva para negar direitos (algo visto sobretudo a partir de 2020, ano de vigência da lei), torna-se importante desfazer confusões e combater a perigosa hipocrisia identificada, que coloca as pessoas contra a legislação, em virtude de aplicações invertidas da lei, que violam a boa-fé, a transparência, a exatidão das informações e direitos do titular, com precedentes perigosos.

Em Podcast de 2023 (CrimCastLab), Patrícia Cordeiro abordou o tema do uso invertido da LGPD, entendido, em linhas gerais, como o uso da lei contra o próprio titular de dados, subvertendo regras e princípios, aplicados para negar direitos ao invés de garanti-los. Como o tema segue atualíssimo, recentemente a autora abordou novamente o tema em outros Podcasts (como Disrupt), com exemplos didáticos de aplicações invertidas da lei, cujas circunstâncias, contexto, padrões comuns de abuso e impacto negativo, pretendemos abordar adiante.

Em um dos exemplos mencionados, a pessoa precisava de dado que lhe servia de prova defensiva, e assim solicitou o acesso da sua imagem capturada por câmera, com a intenção de utilizá-la como prova em contexto específico. No entanto, a responsável pela captura de imagem negou o pedido, apesar de possuidora do dado, justificando a recusa com base na LGPD[1].

Não é difícil entender que no caso em exame, houve um uso indevido da LGPD, justamente ao se negar acesso à imagem que serviria de prova defensiva, sem qualquer justificativa plausível, fugindo de dever legal. Em nome da LGPD, verifica-se um equívoco de inversão da LGPD, que visa proteger os titulares de dados, não restringir o acesso deles próprios às suas informações pessoais, sobretudo em caso de necessidade justificada e comprovada.

Em situações como essa, de uso invertido da LGPD contra o titular de dados (que deveria, em tese, se empoderar no tema, tornar-se soberano de seus dados), torna-se fácil entender o ódio artificialmente fabricado no presente funcionamento discursivo, afinal, o que é apresentado como Garantia Fundamental da Proteção de Dados e sua legislação específica a ela associada, parece no caso atrapalhar e dificultar a vida da pessoa.

Contudo, será que o problema narrado é da LGPD? Ou trata-se, justamente, de exemplo de uma aplicação invertida da LGPD?

Quando se exige abusivamente e de modo desnecessário excesso de dados que torna inviável uma operação, será que isso é mesmo devido à LGPD, como muitas organizações alegam?

Embora a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) tenha sido instituída no Brasil de forma a proteger e facilitar a vida do titular de dados, as situações em que a lei é interpretada ou aplicada de maneira invertida se multiplicam.

Seguiremos     adiante abordando       o          tema,   cientes de que as confusões já instauradas são grandes[2].

 

2. DESENVOLVIMENTO

Uma das táticas e padrões (de abusos) comuns ao negar direitos no país nesse campo da Proteção de Dados, é a menção abstrata, na forma do dizer “não posso fazer X por causa da LGPD”, entre outros dizeres equivalentes, que colocam a lei como um obstáculo na vida do cidadão, invertendo-a em seus princípios, procedimentos, objetivos, contextualização.

Cumpre desde já fincar um ponto de partida, de modo a potencializar a identificação dessa inversão da LGPD e torná-la mais visual: o respeito à referida lei não é menção ou autodeclaração (a mera declaração ou dizer de conformidade não gera materialmente uma adequação real, podendo, inclusive, ser pior fazê-lo sem razão, do que admitir estar se aprimorando e adotando medidas gradativas).

Nesse caminho, não é porque a lei é citada, que o efeito de sentido sugerido alinha-se mesmo à lei. É preciso desconfiar nesse território de recusas acerca de direitos requeridos.

Sempre vale atentar-se aos impactos da mobilização da lei na vida do titular de dados, justamente quem, nos termos da LGPD, deveria ter assegurado o controle sobre eles, não mais tratados, regidos e negociados de modo obscuro por terceiros.

Para aferir esses efeitos, é importante adotar como parâmetro dimensões como a dignidade, a segurança, a privacidade, a integridade dos cidadãos, assim como a paz e o sossego dos titulares, que devem ser blindados de práticas abusivas e potenciais violações com dados, como vazamento de suas informações, comercialização, importunação e assédio por telemarketing, golpes, entre ilícitos inclusive criminais.

Se a lei está sendo utilizada abusivamente contra o titular de dados, algo não vai bem em sua aplicação, e talvez sua mobilização venha de quem sequer conhece a lei, e de organizações não adequadas a ela, gerando, para além da teratologia jurídica, uma espécie de hipocrisia generalizada, onde empresas que não respeitam a lei, e que seguramente não se adequaram à mesma, lhe reivindicam justamente para negar direitos, por conveniência ou facilidade, adotando um uso seletivo do que é de interesse próprio, em detrimento e prejuízo do titular de dados, justamente quem deveria se resguardar e se fortalecer na dimensão de controle sobre seus dados.

A hipocrisia do discurso jurídico não é um dado criminológico inovador, Zaffaroni (2013) por exemplo, destaca com rigor a falsidade do nosso discurso jurídico-penal no contexto do poder punitivo e seu emergir historiado por Anitua (2010)[3].

 

3. APONTAMENTOS FINAIS

Nas táticas comuns de uso invertido da LGPD para negar direitos, destacamos as menções infundadas de proteção de dados para negar o acesso à informação e sua subversão contra o titular de dados, dificultando e prejudicando sua vida.

Sempre que isso aparentemente acontece, é preciso redobrar a atenção, o que pode ajudar a identificar e combater a hipocrisia e os abusos cometidos tanto nos setores públicos quanto privados, assim garantindo que a LGPD seja aplicada de maneira correta, realmente em conformidade com seus princípios e objetivos, afinal, sua menção não é sinônimo de aplicação correta, o que é muito grave quando usado para negar direitos dos titulares de dados.

Interpretar direitos e garantias fundamentais equivocadamente ou ao contrário (didaticamente falando, algo como, na seara criminal, inverter a regra da presunção de inocência com a teratologia in dubio pro societate) pode ter consequências muito sérias e prejudiciais para as pessoas afetadas.

A aplicação errônea da LGPD, mal-intencionada ou não, feita contra o titular do direito, gera muitas consequências negativas.

Como potencialmente minar sua confiança na legislação, nas empresas e instituições; fomento ao desserviço em termos de Privacidade e Proteção de Dados, com cidadãos menos conscientes sobre os seus direitos, com naturalização e aceitação de situações de injustiça, violações à privacidade e desrespeito à dignidade humana; forte inconsistência e insegurança jurídica (as pessoas não saberão ao certo em quem acreditar, quais são os seus direitos, como devem proceder, que medidas são aceitáveis, gerando distanciamento com o desenvolvimento do tema); multiplicação dos danos materiais e morais, pessoais e coletivos decorrentes do uso invertido da LGPD contra o titular; maior vulnerabilidade informacional; descaso governamental etc.

Os sujeitos prejudicados pelo uso invertido da LGPD (direta ou indiretamente) podem sofrer diversos prejuízos, incluindo perdas financeiras, com aumento do potencial de violação à dignidade da pessoa humana, em toda a sociedade.

Quando um direito é interpretado contra seu titular, isso pode reforçar práticas discriminatórias e de injustiça em geral, perpetuando a exclusão social e ampliando a vulnerabilidade dos grupos menos favorecidos economicamente, transformados em objetos de direito (ao invés de sujeitos de direitos).

O uso invertido da LGPD pode ser lido como sintoma da corrosão de garantias do         Estado de        Direito,           onde    a promessa constitucional da correta aplicação e interpretação das leis é substituída pela desproteção dos sujeitos governados, reduzidos a dados controlados, tratados e vendidos.

A LGPD converge com a aposta constitucional na emancipação dos sujeitos na Era dos Dados, assumindo que devem controlar o acesso às suas informações, bem como, devem contar com segurança e transparência sobre isso.

Já o uso invertido da LGPD ancora-se em uma razão ardilosa ou cínica, uma razão arbitrária, que rasga liberdades de papel, mesclando a corrosão de direitos com a enorme hipocrisia de mobilizar justamente o dispositivo subvertido para tanto, sem pudores[4].

 

Notas e referências:

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias de los pensamientos criminológicos. Prólogo E. Raúl Zaffaroni. 1. ed. 2ª reimp. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2010.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: Deslegitimación y Dogmática Jurídico-Penal. Buenos Aires: Ediar, 2013.

PIRES, M. Guilherme. Dados pessoais e poder punitivo: LGPD no setor público com

Patrícia    Cordeiro.   Podcast    CrimCastLab.    Paraná,   Brasil.               Abril/2023. Podcast.

Disponível                                                                                          em:

https://open.spotify.com/episode/4wwDebewrrPZJU9Z24zuIz?si=75c022cc152d484a Acesso em: 20/06/2024.

Copetti, Alfredo. LGPD aplicada às instituições de saúde com Patrícia Cordeiro. Podcast Disrupt. Paraná, Brasil. Junho/2024. Podcast. Disponível em:

https://open.spotify.com/episode/0v28su8qUSAiazq0JBkyOk?si=138116304fd44b7a Acesso em: 20/06/2024.

[1] A LGPD determina que os titulares de dados possuem uma série de direitos, como o de acessar, corrigir, e, em alguns casos, requerer a exclusão dos dados tratados. Direitos atrelados exemplificativamente à transparência, controle, responsabilidade, segurança, exatidão e prevenção de acessos não autorizados e incidentes, sempre visando que os dados pessoais sejam tratados de maneira ética e lícita. Sobre o direito de acesso, o art. 18 da referida legislação assegura que os titulares possuem direito a obter a confirmação da existência de tratamento e o acesso aos dados, no caso, com negativa sem razão que cita abstratamente a LGPD ("não posso por causa da LGPD"). A negação in casu foi baseada em uma interpretação distorcida da LGPD, que subverte seu funcionamento (estruturado em defesa do titular de dados, e não contra o titular). Nota-se que a lei foi invocada erroneamente para negar um direito que ela, na verdade, assegura. É crucial que todos que lidam com dados pessoais compreendam e apliquem corretamente os as disposições da LGPD; assim como é necessário um mínimo de conhecimento adequado acerca da legislação por parte dos cidadãos, justamente para efetivar a tutela de seus direitos, para evitar mal-entendidos e enganos, suscitando que a proteção de dados saia do papel, e deixe de ser usada convenientemente como negativa genérica, ou dificultador genérico excessivo. Por exemplo, a confirmação de identidade do titular é medida comum, mas deve ser simples, prática, célere, sempre lembrando que o funcionamento esperado não é prejudicar o titular, mas lhe ajudar a exercer os seus direitos, sempre que cabíveis, e no prazo legal.

[2] Inclusive porque a aplicação invertida foi comum mesmo no setor público, negando-se acesso a informações que os cidadãos deveriam conhecer, em falsos embates frequentes, como a complementaridade da LGPD e a Lei de Acesso à Informação (LAI), transformadas, muito convenientemente, em rasas oposições, onde a LGPD supostamente estaria impedindo o acesso à informação da sociedade, gerando mais desconfiança e incompreensões. Em grande escala, fomentadas pelos órgãos públicos, protagonistas dessa confusão (pior, por setores não adequados que não cumpriam mas citavam a lei para negar direitos). Lamentavelmente, isso ocorreu muito no âmbito público no ápice do período pandêmico, quando apresentou-se um falso embate com casos concretos entre Lei de Acesso à Informação e a LGPD, esta última, utilizada de modo invertido para, sem razão, negar direitos dos cidadãos. E assim, agentes públicos desvencilharam-se de qualquer tipo de prestação de contas e mesmo potencialmente esconderam informações. A LGPD, sabidamente por quem a conhece, foi (mal) utilizada como um coringa para se negar direitos, irritando quem conhecia pouco sobre a lei. Contudo, para qualquer não leigo no tema, torna-se clara a presença de uma flagrante ilicitude, onde a insuficiente, inconsistente e abstrata fundamentação usada, subvertia a LGPD, gerando confusão entre as pessoas que não dominavam o tema.

[3] Se na questão criminal, em muito podemos compreender essa distorção por meio dos efeitos de sentido dominantes, sedimentados historicamente, inclusive acerca do significado hegemônico de justiça como vingança verificado por Anitua (2010), na LGPD, as subversões e apagamentos parecem ainda mais rudimentares (o que não é algo fácil, dado que o território do poder punitivo, apesar de totalizante, é sobremaneira raso). Apesar de muitas repetições de práticas técnicas passarem-se no campo de uma inconsciência, na LGPD, especialmente no setor público, existe (ou ao menos existiu) uma razão deliberadamente voltada à prática do engano, que aproveitou dispositivos em defesa do titular de dados, contra o titular de dados. Uma obra de Kafka brasileira.

[4] No limite, as evidências de má-fé abarcam a manipulação deliberada de textos legais, com o intuito de induzir as pessoas a erro, desvencilhar-se de responsabilidades como prestação de contas e outros deveres legais. Para mitigar esses riscos, a conscientização constitucional em matéria de Privacidade e Proteção de Dados é fundamental no Brasil, identificando o funcionamento discursivo e ideológico da regularidade existente de práticas abusivas, e nesse cenário, uma vez descrito, combater e prevenir tais práticas. Além da importância de fazer uma correta descrição, importa na Análise de Discurso de Pêcheux (2014) o papel da transformação social, sem estacionar na mera descrição.

 

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