Por Alexandre Jose Biem Neuber - 17/09/2015
Após pedido de vista do Ministro Teori Zavascki, o julgamento do RE 635659 foi suspenso. Até o momento três Ministros já proferiram seus votos, o Relator, Ministro Gilmar Mendes, Ministros Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Ambos acompanharam o relator, todavia, com algumas ponderações, o que fez surgir três votos distintos.
Antes de analisar os votos até aqui proferidos, convém lembrar que mesmo em sede de primeiro grau, já contamos com várias decisões no sentido de inaplicabilidade do art. 28 da Lei 11.343/06. Dentre as mais recentes, destacam-se duas. Ambas proferidas por juízes catarinenses.
Em decisão que rejeitou a denúncia, o magistrado Alexandre Morais da Rosa[1], declarou a nulidade parcial sem redução do texto do dispositivo legal. Em apertada síntese, destaca-se ponto central do julgado:
"(…) inexiste crime porque ao contrário do que se difunde, o bem jurídico tutelado pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06 é a “integridade física” e não a “incolumidade pública”, diante da ausência de transcendência da conduta. A Constituição da República (art. 3º, inciso I e art. 5º, inciso X), de cariz “Liberal”, declara, como Direito Fundamental, consoante a Teoria Garantista (Ferrajoli), a liberdade da vida privada, bem como a impossibilidade de penalização da autolesão sem efeitos a terceiros, sendo certa a necessidade da declaração da inconstitucionalidade parcial sem redução do texto do consumo de droga. Essa possibilidade hermenêutica – nulidade parcial sem redução do texto – aplica-se, ao meu juízo, nos casos de porte de pequenas quantidades para uso próprio, nos quais os usuários devem ser tratados e não punidos, dado que o simples aniquilamento da liberdade pouco contribui para o efetivo enfrentamento do problema, como já demonstrado em diversos momentos históricos (Salo de Carvalho e Rosa del Omo). A advertência somente batiza o acusado no sistema penal."
Na mesma linha entendeu o Juiz de Direito Mauricio Fabiano Mortari[2], consta da decisão a ausência de justa causa, com a consequente atipicidade da conduta de uso de drogas. Vejamos parte do julgado:
“o único verdadeiramente lesado pelo uso continuado das drogas – sejam elas lícitas ou ilícitas – é o próprio usuário, ideia que traz à tona outra vertente importante para sustentar a atipicidade da conduta. É a aplicação do princípio da alteridade, pois aqui a lei pune conduta absolutamente inofensiva a direito de terceiros – uma vez que se afaste a lesão abstrata à saúde pública – e, por via transversa, também atenta contra o direito inalienável da liberdade, ou seja, o direito que cada um tem de conduzir sua existência da forma que melhor lhe convir desde que não sejam atingidos direitos alheios."
Em ambos os casos a conclusão foi a mesma, ou seja, declarou-se a nulidade parcial sem redução do texto do art. 28 da Lei 11.343/06, sendo a denúncia rejeitada.
Dito isto, vamos a matéria de fundo, os três votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no RE 635659.
O Ministro Relator, Gilmar Mendes, fez consideração sobre os crimes de perigo abstrato e as políticas regulatórias no que toca a posse de drogas para consumo pessoal, e o fez “à luz do princípio da proporcionalidade, mediante exame de sua adequação e necessidade”. Procurou distinguir proibição (políticas de drogas essencialmente estruturadas por meio de normas penais), despenalização (retira a pena privativa de liberdade, todavia, mantém criminalização - modelo atual vigente) e a descriminalização (exclui medidas criminais mas não as de natureza administrativa). Trabalhou em seu voto o controle de evidência, afirmando:
“O art. 28 da Lei 11.343/2006 está inserido no Título III do referido diploma legal, sob o qual se encontram agrupadas as disposições atinentes às 'atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas'.
Por outro lado, as condutas descritas no art. 28 foram também definidas como crime no art. 33 da referida Lei, no rol das condutas relativas ao tráfico. O art. 33, por sua vez, está inserido no Título IV do texto legal, no conjunto das disposições alusivas à 'produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas'.
O traço distintivo entre os dois dispositivos, no que diz respeito aos elementos de tipificação das condutas incriminadas, reside na expressão 'para uso pessoal', contida na redação do art. 28, caput. Objetivou o legislador, como se percebe, conferir tratamento penal diferenciado a usuários e traficantes, abolindo, em relação àqueles, a pena privativa de liberdade prevista no diploma legal revogado (Lei 6.368/76, art. 16). Todavia, deflui da própria política de drogas adotada que a criminalização do porte para uso pessoal não condiz com a realização dos fins almejados no que diz respeito a usuários e dependentes, voltados à atenção à saúde e à reinserção social, circunstância a denotar clara incongruência em todo o sistema."
Concluiu o eminente Relator que o consumo pessoal de droga não pode ser tratado, à luz do princípio da proporcionalidade, como política de criminalização.
No controle de justificabilidade, destacou:
"Em relação à justificabilidade da medida adotada pelo legislador, cabe observar, inicialmente, que não existem estudos suficientes ou incontroversos que revelem ser a repressão ao consumo o instrumento mais eficiente para o combate ao tráfico de drogas. Pelo contrário, apesar da denominada 'guerra às drogas', é notório o aumento do tráfico nas últimas décadas.
Por outro lado, em levantamento realizado em 2012 em cerca de 20 países que adotaram, nas última diz respeito à posse de drogas para uso pessoal, por meio de despenalização ou de descriminalização, constatou-se que em nenhum deles houve grandes alterações na proporção da população que faz uso regular de drogas. A comparação entre países pesquisados demonstra que a criminalização do consumo tem muito pouco impacto na decisão de consumir drogas (ROSMARIN, A. & EASTWOOD, N, A quiet revolution: drug decriminalization polices in practice across the globe. Release Drugs: London, 2012).
No mesmo sentido, estudos publicados pelo Centro Europeu de Monitoramento de Drogas e Dependência (EMCDD), tem revelado que a prevalência do consumo de drogas decorre de um conjunto muito mais amplo de fatores entre os quais a criminalização tem pouca influência (EMCCDA, Anual Report on the state of the drugs prolem in Europe, 2011).
Ainda que se tratem de estudos relativamente recentes, não é difícil constatar que os dados disponíveis à época da edição da norma não indicavam, com razoável margem de segurança, a sustentabilidade da incriminação, conforme se observa das justificativas agregadas ao Projeto de Lei 7.134/02 (…)"
Entendeu, à luz do controle de justicabilidade, que a criminalização de que trata o art. 28 encontra-se em profundo descompasso com o princípio da proporcionalidade.
No que toca ao bem jurídico protegido, afastou a saúde pública, haja vista que entendeu, acertadamente, que a conduta causaria apenas danos a própria pessoa que faz uso do entorpecente. Nesse ponto, destacou ainda que não há que se falar em "expansibilidade do perigo abstrato à saúde". Seguiu o voto abordando a relação entre tráfico, consumo e outros delitos, tema utilizado por quem defende a criminalização. Destacou que haveria então de um lado, "o direito coletivo à saúde e à segurança públicas e, de outro lado, o direito à intimidade e à vida privada, que se qualificam, no caso da posse de drogas para consumo pessoal, em direito à autodeterminação". Entra aqui a situação de aparente conflito de direitos fundamentais, ou seja, "a intensidade da intervenção e os fundamentos que a justificaram (proporcionalidade em sentido estrito)". Feita a ponderação, enfatizou a importância da noção de âmbito ou núcleo de proteção dos direitos fundamentais. Lembrou que alguns autores chegam a afirmar, como é o caso de PIEROTH, Bodo e SCHLINK "que o âmbito de proteção é aquela parcela da realidade que o constituinte houve por bem definir como objeto de proteção especial, 'aquela fração da vida protegida por uma garantia fundamental'”
Concluiu que o conceito de saúde pública e a noção de segurança pública, apresentam-se despidos de suficiente valoração dos riscos a que sujeitos em decorrência de condutas circunscritas a posse de drogas para uso exclusivamente pessoal, apontando que a intervenção com a criminalização não se mostra necessária, mesmo porque, não se pode perder de vista o livre desenvolvimento da personalidade e autodeterminação.
Nota-se do voto que o Ministro afasta a criminalização da conduta descrita no art. 28 da Lei n. 11.343/06, evocando o artigo 5º da Constituição da República – "Art. 5º, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Ao final, decidiu da seguinte forma (no que toca a descriminalização):
"1 – Declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/2006, de forma a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal. Todavia, restam mantidas, no que couber, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas, com natureza administrativa;
2 – Conferir, por dependência lógica, interpretação conforme à Constituição ao art. 48, §§1o e 2o, da Lei 11.343/2006, no sentido de que, tratando-se de conduta prevista no art. 28 da referida Lei, o autor do fato será apenas notificado a comparecer em juízo;
3 – Conferir, por dependência lógica, interpretação conforme à Constituição ao art. 50, caput, da Lei 11.343/06, no sentido de que, na prisão em flagrante por tráfico de droga, o preso deve, como condição de validade da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, ser imediatamente apresentado ao juiz;
(…)."
Percebe-se que a solução estabelecida pelo Ministro Relator, Gilmar Mendes, é a mesma observada nas decisões dos Juízes de Direito Alexandre Moraias da Rosa e Mauricio Fabiano Mortari, todas elas convergem para uma importante conclusão, o art. 28 da Lei 11.343/06 é inconstitucional na parte que criminaliza a conduta, pois incompatível com a Constituição. Até aqui tudo bem, a crítica que reputo importante nasce com os votos dos Ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin que, apesar de acompanharem o relator, divergiram num ponto que reputo da maior importância, ou seja, a inconstitucionalidade da criminalização de que trata o art. 28 da Lei n. 11.343/06 só deve ser reconhecida, segundo os Ministros, nos casos de quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, MACONHA. Isto quer dizer que a criminalização continua em relação a todos as outras drogas consideradas ilícitas. Cabe aqui destacar, sutil diferença entre os votos dos Ministros Luiz Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. O Ministro Luiz Edson Fachin assentou que todas as drogas hoje consideradas ilícitas, exceto a “maconha”, continuam com o uso sendo reprimido por meio de criminalização. Já o Ministro Luiz Roberto Barroso, preferiu não se manifestar em relação as outras drogas, todavia, na prática é a mesma coisa.
Com todas as vênias aos eminentes Ministros, é um grande equivoco e uma decisão perigosa. Além disso, o Ministro Luís Roberto Barroso votou no sentido de estabelecer um critério quantitativo para averiguar se a conduta é de tráfico ou de usuário. (25 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas). Nesse ponto, o Ministro Luiz Edson Fachin, por seu turno, decidiu que tal matéria (quantidade) é de competência do Poder Legislativo.
Outro aspecto importante que constou do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, foi ter declarado inconstitucional o parágrafo primeiro do art. 28, o que nos perece, concessa máxima vênia, outro equivoco. Isto porque, a interpretação que se faz do voto do Relator, Ministro Gilmar Mendes, é que a inconstitucionalidade apontada abrange todo o artigo, não apenas o caput, o que inclui todos os parágrafos. Com o voto do Ministro Luís Roberto Barroso, exceto o parágrafo primeiro, todos os continuam em vigor no que toca a criminalização.
Guardadas pontuais, mas não menos importantes, divergências entre os votos, a mais significativa e a mais preocupante, nesse momento, parece-nos orbitar em torno da opção dos Ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin em não enfrentarem a questão das drogas por completo. Eleger apenas o uso da maconha como conduta descriminalizada é fechar os olhos para o problema "global" da criminalização. Ora, aqueles usuários que mais sofrem, como os dependentes de crack, continuarão a ser considerados "infratores penais”. O mesmo pode-se dizer de quem faz uso de cocaína, êxtase e todas as drogas hoje consideradas ilícitas. A alternativa achada pelos Ministros só contribui para prolongar o impasse e a continuidade da velha e desacreditada política de guerra contra as drogas.
Por que fazer essa distinção? Na realidade se faz aqui uma discriminação, ou seja, puni-se apenas aqueles que optarem por usar qualquer das drogas consideras ilícitas, exceto o usuário de maconha. A decisão, com todo respeito, não tem lógica.
Extrai-se dos três votos proferidos, fundamentos profundos de reconhecimento do fracasso da “guerra contra as drogas”. Uma afirmação contundente da impossibilidade de mitigação de princípios fundamentais. De outro lado, apresenta-se uma conclusão (leia-se: votos dos Ministros Luiz Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin) pouco convincente e, por certo aspecto, nada otimista.
Nessa esteira, não há sentido em descriminalizar apenas o uso de uma espécie de droga (maconha). Essa escolha, vênia concessa, não reproduz toda a grandeza dos fundamentos invocados nos respectivos votos, ao contrário, estariam a naufragar em meio a um oceano de hipocrisia e irracionalidade. Até porque, os mais atingidos com essa "seletiva" decisão, seriam os mais vulneráveis, aliás, os preferidos pelo sistema penal repressor.
Por fim, não se desconhece o importante avanço até aqui diagnosticado, todavia, com a retomada do julgamento, espera-se que o voto do Relator, Ministro Gilmar Mendes, tenha prevalência.
Notas e Referências:
[1] TJSC – Ação Penal n. 00000-03.2015.8.24.0090 – Juizado Especial Criminal da Comarca da Capital-SC – Juiz Alexandre Morais da Rosa.
[2] TJSC - Ação Penal n. 0003070-29.2015.8.24.0075 - Comarca de Tubarão/SC – Juiz Mauricio Fabiano Mortari.

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Alexandre Jose Biem Neuber é Bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL, Pós-graduado em Ciências Penais pela LFG/UNISUL, Advogado, Conselheiro da Associação dos Advogados Criminalistas de Santa Catarina. Email: alexandreneuber@hotmail.com - www.neuberadvocacia.com.br
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