Unidade de julgamento, igualdade de tratamento e o juiz natural: entre ponderações, acomodações e adequações constitucionais

26/12/2015

Por Eugênio Pacelli - 23/02/2015

O convite a essa publicação, mais que pessoalmente honroso ao articulista, assentava-se em premissa muito mais elevada: o exercício de cidadania. Trata-se de discutir um pequeno recorte dentre os diversos temas tratados no julgamento da Ação Penal 470/MG pelo Supremo Tribunal Federal. Nossa missão foi avançar sobre a parte da decisão que cuidou da manutenção do julgamento coletivo de todos os corréus em um mesmo processo, sob a mesma jurisdição. Unidade de processo e unidade de julgamento, enfim. Decisão essa proferida em Questão de Ordem levantada ao início do julgamento do mérito das acusações.

Exercício de cidadania sim, na medida em que se põe sob os holofotes de outra instância, que não o Poder Judiciário, uma decisão de grande repercussão em toda a sociedade brasileira, independentemente – e, um pouco, já com elas! – das objeções cabíveis quanto à espetacularização midiática que acompanhou o julgamento. Agora e aqui, portanto, já como dever de ofício.

Iniciamos com a seguinte questão: o juiz natural se põe a salvo de qualquer exceção na concretização dos processos judiciais penais? Constituiria ele um princípio constitucional soberano, superior a quaisquer outras incidências normativas?

A(s) resposta(s) ao dilema reclama o ingresso, no debate, de outras importantes questões próprias da dogmática processual penal, e tem como substrato de fundamentação argumentações de fundo constitucional.

Parece-nos curioso, à partida, que a doutrina brasileira não se ocupe e nem se preocupe muito com uma distinção aparentemente óbvia que deveria e deve ser feita em relação ao, a) significado/conceito, e, b) a justificação/explicação, que devem orientar a compreensão e a aplicação das regras processuais de conexão e de continência, sobretudo, no processo penal brasileiro, em que há diferentes critérios de distribuição da jurisdição.

Com efeito, e, na linha do (bem ou do mal) dito popular, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa! Parece irrecusável, por exemplo, que há unidade de conduta na continência (art. 77, I e II, CPP), e pluralidade delas na conexão (art. 76, I, II e III, CPP). Diferenças radicais, particularmente para os propósitos do texto que se segue.

Adiante-se que nossa conclusão é no sentido de que a nossa Egrégia Corte acertou na recusa à separação dos processos, no que diz respeito à identidade de ações imputadas a vários corréus e àqueles comportamentos que se entrelaçavam a outros na configuração dos delitos então imputados.

Não nos interessa, aqui, traçar quadro comparativo em relação a outros julgados daquela Corte, a fim de se comprovar, ou não, a coerência do Tribunal no trato da matéria. Até por que semelhante tarefa exigiria o avanço sobre detalhes tão minuciosos de diferentes imputações, no tempo e em processos diversos, que não conseguiríamos cumprir o calendário e a agenda que nos foi repassada.

Perde-se, com isso – reconhecemos – a possibilidade de ampliação do horizonte crítico a respeito das fundamentações utilizadas no citado julgamento, sobretudo no que toca ao plano de mérito.

Todavia, e, em outra ponta, como nos limitaremos à questão da unidade do julgamento em casos de continência, e, excepcionalmente, de algumas poucas situações de conexão, nossas conclusões de ordem teórica e dogmática não serão afetadas pela ausência de tal abordagem. Ou seja, a nosso aviso, e, em tese, se a Suprema Corte deu tratamento diferente à hipóteses iguais, como sustentam alguns, teria ela incorrido em erro! Erro somente constatável por aqueles que se detiveram em profundidade ao exame dos autos nos processos com decisões dissidentes.

Mas, em um ou em outro exemplo, qualquer que seja o paradigma da decisão a ser analisada, haverá erro na determinação da separação de processos nos casos de unidade de conduta, consoante os precisos termos do art. 77, I e II, CPP.

E que não se pense – senão como respeito ao subscritor do texto, pelo menos em homenagem à pouca complexidade do tema – que estamos a fazer prevalecer normas de legislação ordinária sobre conteúdos de origem constitucional, como é o caso do juiz natural. Em hipótese nenhuma e em nenhuma hipótese: nossos argumentos e o fundamento em torno do qual orbitam se originam também na Constituição da República. Evidentemente.

Síntese da decisão e das respectivas fundamentações

Vejamos, então, em que consistiu a aludida decisão acerca da manutenção da unidade de julgamento para os diversos corréus, a maioria dos quais sem prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal.

É da ementa (parte dela) que se extrai o seguinte:

Decisão: “O Tribunal, por maioria, rejeitou a questão de ordem suscitada da tribuna pelo advogado Márcio Thomaz Bastos, ratificada pelos advogados Marcelo Leonardo e Luiz Fernando Sá e Souza Pacheco, de desmembramento do processo, para assentar a competência da Corte quanto ao processo e julgamento dos denunciados que não são detentores de mandato parlamentar, vencidos os Senhores Ministros Ricardo Lewandowski (Revisor) e Marco Aurélio (...). Plenário, 02.08.2012”.

Ao que facilmente se conclui, tratava-se de argumentação acerca de suposta impossibilidade de julgamento de corréus não detentores de foro privativo no Supremo Tribunal Federal, ao fundamento de que, se assim se procedesse, ter-se-ia por violado o princípio do juiz natural. Argumentação a desoras, obviamente, ou, em bom português, em homenagem à preferência de estilo linguístico de um dos eminentes magistrados da Corte, argumentação de última hora, aos quarenta e seis minutos do último tempo.

O que, aliás, não significa nenhum demérito a quem a suscitou – uma das partes, por seu ilustre patrono – já que o defensor deve mesmo se esmerar na proteção dos interesses de seu constituinte.

O que surpreendeu e surpreende até hoje foi o processamento da questão de ordem pela Presidência do Tribunal, como se, de fato, uma delas (questão) ali estivesse presente. Não bastasse a posição já dominante naquela Corte sobre ser possível o processo e o julgamento contra pessoas não detentoras de foro privativo naquela Casa, em casos de continência (e até de conexão!), a questão já havia sido enfrentada e repelida pelo Tribunal, muito tempo antes. Relembre-se que a Ação Penal 470/MG remonta ao ano de 2007! E, ao propósito, tal entendimento consta de Súmula da jurisprudência daquela Casa, a saber, a de n. 704, que tem a seguinte redação: Súmula 704: Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.

Mas, para afastar a força de tais objeções, o eminente Revisor, Ministro Ricardo Lewandovscki, buscou apoio na literalidade de algumas máximas processuais da tradição de nossa jurisprudência e doutrina, todas de longa data e, contudo, de pertinência duvidosa.

Com efeito, brandiu-se, então, que:

a) a questão ali levantada não estaria preclusa por se tratar de matéria de ordem pública, que pode ser conhecida a qualquer tempo;

b) a fundamentação constitucional então levantada não havia sido ainda enfrentada pelo Tribunal, o que, pelos dois motivos – natureza constitucional do argumento e não apreciação da questão no julgamento – justificava o conhecimento e o julgamento da questão de ordem.

E, mais, já agora no plano do mérito, chegou-se à conclusão da necessidade de separação dos processos, mantendo-se ali, na Corte, apenas as acusações processadas contra aqueles com foro privativo no Supremo Tribunal Federal.

Vamos por partes e em ordem, colhendo-se do voto do eminente Revisor:

c) a competência em razão da função, que é excepcional, não pode ser interpretada de forma ampliativa, mas, ao contrário, de forma restritiva; apenas aqueles que detêm determinadas funções terão prerrogativa de foro, a fim de evitar que decisões venham a comprometer a ordem democrática;

d) o Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, tem desmembrado os procedimentos penais, determinando a remessa ao juízo competente, quanto àqueles que não detêm prerrogativa, com fulcro no art. 80 do CPP; sempre que decidiu pelo não desmembramento, observa-se que assim o fez por argumentos de “natureza casuística”;

e) a prorrogação legal de competência, como a continência e a conexão, não podem ampliar as regras constitucionais de competência, devendo incidir apenas em sentido horizontal, nunca vertical;

f) a possibilidade de decisões conflitantes não é justificativa bastante para o não desmembramento, como vem decidindo o STF, porque essa possibilidade pode ocorrer em qualquer desmembramento e em qualquer instância, vale dizer, o risco de decisões contraditórias não faria da reunião dos processos uma mera faculdade (art. 80 do CPP);

g) o art. 78, III, do CPP não foi recepcionado pela Constituição ao preceituar que “no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação”, em especial nos casos em que a competência for estabelecida de forma taxativa pela própria Constituição;

h) como exemplo, observe-se a edição, pelo STF, da Súmula 721, com o seguinte teor: “A competência constitucional do tribunal do júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela constituição estadual”;

i) o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, de quem não detém de prerrogativa de função fere o princípio do duplo grau de jurisdição, com assento constitucional (segundo o Revisor, inserto no art. 5º, LIV e LV, da CF), contido no art. 8º, 2, “h”, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), internalizada no Brasil pelo Decreto nº 678/1992 (c/c art. 5º, § 2º, da CF); a exceção a esse princípio somente é aceitável aos casos em que a própria Constituição estabelece a prerrogativa, ou seja, por opção do próprio constituinte, que não pode ser chamada de arbitrária, pois fundamentada em razão da ocupação de cargos públicos específicos e de maior relevo

Mais adiante, e em reforço de sua argumentação, honrou-nos com citação de trabalho de nossa autoria, in verbis:

“Diante dessa realidade, segundo Eugênio Pacelli:

‘Optou-se, então, pela eleição de órgãos colegiados do Poder Judiciário mais afastados, em tese, do alcance das pressões externas que frequentemente ocorrem em tais situações, e em atenção também à formação profissional de seus integrantes, quase sempre portadores de mais alargada experiência judicante, adquirida ao longo do tempo de exercício na carreira’.” ...

Eugênio Pacelli de Oliveira, nessa linha de raciocínio, explica o seguinte:

‘(...) a subtração ao juiz cuja competência seja prevista na Constituição, é dizer, o seu afastamento por quaisquer critérios que não constituam exceção de natureza constitucional, configurará sempre violação à regra do juiz natural, seja como instituição do juiz ou tribunal de exceção, maculando-se a impessoalidade que devem imperar na distribuição de jurisdição, seja como inadequação do serviço estatal prestado’.

Como se sabe, a tese e respectivos fundamentos não foram acatados após longos e calorosos debates, exceção feita ao Ministro Marco Aurélio.

O Relator, Min. Joaquim Barbosa, repeliu a tentativa de separação dos processos, encarecendo que:

a) a questão já fora amplamente debatida pelo Plenário sendo decidido pelo não desmembramento do processo, por três vezes; O CPC diz que a mesma questão não será debatida 3, 4, 5 vezes;

b) Suscitou a vinculação da Corte à Súmula nº 704, cujo texto vimos de reproduzir, linhas antes.

Fizeram coro à Sua Excelência, a Ministra Rosa Weber, assentando que “essa questão já foi apreciada por três vezes, neste Plenário; o processo é uma marcha no tempo. Há um instituto que aqui se opera, o da preclusão. O Direito é ciência cultural, o que oportuniza sempre indagação e aprofundamento na matéria, mas não se pode, no mesmo processo, voltar atrás; a marcha é para frente”, e, também, o Ministro Luiz Fux, o Min. Toffoli, a Ministra Carmen Lúcia, o Min. Gilmar Mendes, o Min. César Peluso, o Min. Celso de Mello e o Min. Ayres Britto, então Presidente da Corte.

Na ocasião, o ilustre Relator também nos honrou com transcrição de texto de nossa lavra:

“Leio, a propósito, as lições de Eugênio Pacelli, verbis:

‘em uma ação penal da competência originária dos tribunais de segunda instância, por exemplo, não se poderá alegar violação ao duplo grau de jurisdição, pela inexistência de recurso cabível. O referido órgão colegiado, nessas situações, estará atuando diretamente sobre as questões de fato e de direito, realizando, então, a instrução probatória e o julgamento. Estará garantido, portanto, o reexame da matéria por mais de um único juiz (a pluralidade de decisão, pois), sobretudo quando a competência para o julgamento for atribuída ao Plenário do Tribunal. De todo modo, o afastamento da exigência do duplo grau em tais casos decorreria da própria Constituição. (Curso de Processo Penal, 11ª edição, fls. 722)”

Constituição, direitos e garantias na pluralidade do Estado de Direito

Importa-nos nesse ponto ressaltar alguns dos principais aspectos de uma ordem constitucional que tenha pretensões democráticas, iniciando com o mais visível deles: o pluralismo político.

De fato, sabido que nas Constituições do Estado moderno, quando forjadas por um poder efetivamente constituinte, estará sempre presente a diversidade de pretensões individuais e coletivas, até por razões demasiado humanas, o acolhimento de tantos interesses distintos somente será e é possível no plano da abstração normativa.

Mai ainda: apenas em documentos de conteúdo eminentemente políticos e com efetivas preocupações sociais, como é o caso das Constituições de corte democrático e de perfil republicano, nas quais não há espaço para o dirigismo ou para o protagonismo estatal, a determinar, de cima para baixo, a concessão de direitos e as preferências de grupos ou classes que compõem o cenário constituinte. Deve-se acolher a diversidade, a variedade de interesses e, enfim, o pluralismo na formação do Estado e da sociedade então e assim organizada.

Ocorre que o acolhimento de ordens tão variadas de interesses sempre determinará um horizonte normativo de inevitáveis conflitos, quando da satisfação concreta de um ou de outro, ou, mais claramente, de um em face do outro. Liberdade de imprensa, por exemplo, constitui direito de todos, no proveito do interesse público. De outro lado, a honra e a imagem constituem patrimônio individual bem delimitado ou personalizado. Nada obstante, também os direitos individuais apresentam dimensão coletiva e difusa, na medida em que o respeito a eles produz resultados para além dos respectivos titulares, dado que o atendimento das necessidades de cada um haverá de resultar na satisfação geral de todos.

Nessa quadra do desenvolvimento do direito constitucional, e, antes dele, da teoria e da filosofia do direito, não há mais lugar para a afirmação apriorística da prevalência do interesse público sobre o privado e nem do coletivo sobre o individual. Há entre todos eles, por assim dizer, relação de reciprocidade e de complementariedade, que os conduz à convergência para o mesmo endereço: o direito à coexistência nos níveis mais elevados possíveis de atendimento aos interesses gerais.

No âmbito do Direito aplicado, isto é, naqueles casos em que os dissensos e os conflitos entre pessoas e/ou entre grupos são de tamanha envergadura que exigem a intervenção de um terceiro - em posição de objetivo desinteresse -, a jurisdição estatal é convocada a concretizar as soluções mais adequadas a cada um deles (dissensos). A divulgação de fatos e de nomes das pessoas envolvidas pode constituir, em tese, o livre e regular exercício da liberdade de imprensa. Do outro lado da prensa (no sentido de mídia, em geral), porém, haverá aquele que, citado na reportagem ou publicação, entenda-se em condições de impedir a exposição de sua imagem, à compreensão de que teria, também ele, direito constitucional a ser protegido.

O segundo aspecto a ser abordado, então, e ainda relativamente à Constituição e aos direitos subjetivos nela garantidos, diz respeito aos métodos ou às possibilidades jurídicas dessas soluções de conflitos ou de tensões entre normas (jurídicas) que, menos eventualmente que se pensa, podem se fazer presente em um mesmo contexto fático e em níveis semelhantes de subsunção ao caso concreto.

E quando isso ocorrer no plano das normas constitucionais, a questão que se porá, então, dirá respeito aos critérios de escolha da norma de preferência, isto é, daquela mais adequada a resolver o dissenso, sem prejuízo algum à validade e ao alcance da outra, cuja aplicação tenha sido afastada.

E o problema efetivamente existe, a partir da consideração de que:

Todas as normas envolvidas são válidas e vigentes, reclamando ambas a aplicação ao caso concreto, se admitido que as duas podem se subsumir nos fatos submetidos à jurisdição;

Os tradicionais critérios da cronologia, da hierarquia e da especialidade são insuficientes para a solução da questão, dado que as normas envolvidas tem a mesma origem (constitucional), são contemporâneas e não guardam relação de especialidade ou de generalidade.

Quais seriam, então, as normas constitucionais que teriam fundamentado a decisão da Suprema Corte na citada Ação Penal 470/MG? E, mais que isso, quais seriam aquelas outras que, por sua pertinência, deveriam ter sido também abordadas e/ou utilizadas naquele julgamento?

O juiz natural

Na certeza de que sequer se fazem necessárias quaisquer incursões na retrospectiva histórica do princípio do juiz natural, e, por isso, limitando-nos a definir os contornos mais evidentes de sua configuração na ordem jurídica nacional, pode-se afirmar que a proibição do juiz ou do tribunal de exceção (art. 5º, CF) constituiria o seu núcleo essencial.

De fato, e como ocorre em relação às demais funções da Administração Pública, também a jurisdição há de se orientar por critérios de absoluta impessoalidade. Nesse passo, a cegueira da Justiça seria a sua primeira virtude, se bem compreendida como distanciamento prévio em relação ao objeto de seu julgamento, o que incluiria, em consequência, a sua desvinculação com os interesses das partes.

Juiz ou tribunal de exceção será sempre aquele órgão da jurisdição constituído após a prática do crime e sem obediência aos limites gerais de fixação das funções jurisdicionais. De exceção será também o juiz ou o tribunal que vierem a ser compostos por órgãos não integrantes do Poder Judiciário, ou não investidos regularmente na respectiva função.

Tanto bastaria para se delimitar em cores mais vivas a importante função atribuída ao princípio do juiz natural, indispensável ao funcionamento da Justiça no Estado de Direito.

Mas, o ordenamento brasileiro não se contentou com a vedação do juiz ou do tribunal de exceção, na medida em que, ao dispor sobre o Poder Judiciário, repartiu em várias especialidades a função jurisdicional, atribuindo a órgãos diversos a competência para a apreciação de determinadas causas. Daí falar-se em competência por matéria e em competência por prerrogativa de função no âmbito da jurisdição criminal. O critério territorial, isto é, a definição da competência segundo o lugar do crime não tem foro constitucional, prestando-se mais a resolver questões de conveniência da instrução criminal. Exatamente por isso, não integra o conceito e nem apresenta as mesmas consequências do princípio do juiz natural.

Dispõe a Constituição da República que o juiz natural para o processo e o julgamento de membros do Congresso Nacional nos crimes comuns é o Supremo Tribunal Federal, consoante o disposto no art. 102, I, b. Em princípio, portanto, o afastamento daquele foro para os citados congressistas implicaria violação do juiz natural, com afetação do grau de jurisdição assegurada a tais ocupantes de tão relevantes cargos.

De outro lado, e já agora, surgiria a necessidade de se enfrentar a questão atinente à possibilidade, ou não, de aquela Corte poder julgar também pessoas que não tem ali o seu juiz natural, por não exercerem quaisquer das funções e/ou cargos assinalados no citado art. 102 da Constituição da República.

É dizer, para tais pessoas a previsão constitucional da respectiva jurisdição não se consolidaria na prerrogativa de função, e, sim, por matéria, segundo a natureza do crime. Tratando-se de crime federal, ou seja, daqueles submetidos à respectiva jurisdição, por força do art. 109, CF, a competência seria do juiz federal de primeiro grau; se estadual, do juiz de direito, se eleitoral, do juiz eleitoral e, se militar, da Justiça Militar (da União ou dos Estados, a depender da infração e da atividade desenvolvida pela agente).

Surgiria, portanto, a dúvida acerca da possibilidade de, em relação a essas pessoas, haver violação ao princípio do duplo grau de jurisdição e ao do juiz natural.

A resposta é negativa, segundo nos parece, em especial no que toca ao juiz natural. É que, embora outro seja o juiz apontado na Constituição da República, o julgamento diretamente por um Tribunal, sobretudo quando Superior (STF e STJ), não constitui exceção alguma, no sentido específico do conceito de juiz ou tribunal de exceção. Pressupõe-se, ao contrário, que os Tribunais sejam integrados por magistrados com maior experiência judicante que os juízos singulares. Não bastasse, o julgamento nos tribunais é feito por órgãos colegiados, qualificando ainda mais as decisões (em tese, é claro).

De modo que, em princípio, o deslocamento do juiz natural instituído em razão da matéria para outro (juiz também natural), fixado por prerrogativa de função, não oferece desdobramentos relevantes no que toca ao devido processo legal constitucional, na medida em que se estaria alterando o julgamento do caso penal de um juiz singular para um tribunal, colegiado.

A exceção correria por conta do Tribunal do Júri, competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Nessa hipótese, ser julgado por um órgão orientado pela livre apreciação jurídica do fato, isto, por um órgão composto por pessoas sem formação jurídica, mas com legitimidade constitucional para decidir sobre o justo e sobre o injusto, é mesmo diferente de ser julgado por qualquer Tribunal integrado por juízes togados. E não há como estabelecer um critério decisivo para as eventuais preferências dos acusados em uma ou em outra instância: tanto o júri quanto os tribunais estão sujeitos a erros. O problema do Júri é a absoluta ausência de controle quanto às razões de sua decisão, já que eles não estão obrigados a fundamentá-las.

Precisamente por isso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal prefere determinar a separação obrigatória de processos quando um dos acusados tiver foro privativo em tribunais nos crimes dolosos contra a vida. Compreensível, mas, ainda assim, discutível, na medida em que se autoriza a possibilidade de decisões absolutamente distintas para um mesmo fato, como sói ocorrer nos casos de continência (e não de conexão!).

Já no que diz respeito à possível violação ao duplo grau de jurisdição, não parece haver dúvidas quanto ao fato da evidência de tal conclusão, dado que aquele que não tem foro privativo perderá a possibilidade de ser julgado duas vezes, por órgãos e em jurisdições distintas. A questão, porém, não acaba aqui. Nas ações penais originárias os tribunais apreciam inteiramente toda a matéria de fato e de direito, além de exercerem o poder de controle jurisdicional das decisões dos juízes de primeiro grau, competentes originariamente em razão da matéria. A exigência do duplo grau, portanto, se encontra ao nível da jurisdição ordinária, de modo a permitir o reexame de uma decisão de um juiz singular por um órgão colegiado.

Mais se dirá sobre tais questões, quanto ao tempo de nossas conclusões.

Unidade da função jurisdicional

Na vertente da proibição do juiz ou do tribunal de exceção, o princípio do juiz natural nada mais faz que consagrar a garantia da impessoalidade da Administração Pública, de modo a evitar possíveis manipulações arbitrárias da jurisdição e de preservar o distanciamento objetivo do juiz em relação aos fatos e às partes, para muito além das conhecidas causas de impedimento, de suspeição e de incompatibilidade do magistrado com e no processo (art. 112, art. 252, 253 e 254, CPP).

Já em relação aos fundamentos para a instituição de foros por prerrogativa do cargo exercido, o que se pretende assegurar é a simetria funcional entre o grau de jurisdição com competência originária para o processo e aquela (função) exercida pelo acusado, que devem situar-se em níveis assemelhados de posições hierárquicas no Poder Público.

Assim, os membros do Congresso Nacional, que representam o nível mais elevado do Poder Legislativo nacional, serão julgados pelo Tribunal que ocupa o mesmo grau de relevo no âmbito do Poder Judiciário (o Supremo Tribunal Federal).

Se a competência por matéria cuida de diferentes níveis de especialização da jurisdição, aquela fixada em razão da função exercida pelo acusado tem outra fundamentação, qual seja a de equivalência de escalonamento na estrutura do respectivo Poder. Do ponto de vista abstrato, não há qualquer dúvida quanto à especialização intrínseca dos tribunais – de todos eles – para a apreciação de qualquer matéria criminal.

Essa conclusão fica muito mais clara quando se pensa na competência criminal originária dos Tribunais Superiores. A competência do Supremo Tribunal Federal para julgar deputados federais e senadores não decorre da matéria criminal sob exame. A natureza do crime a eles imputados é indiferente para a fixação daquele foro. Tanto poderá ser eleitoral, quanto estadual, federal ou até militar o crime a ser ali apreciado. Do mesmo modo, a competência do Superior Tribunal de Justiça para o julgamento dos governadores dos Estados não depende da espécie de delitos a eles atribuídos.

Note-se também que a Constituição da República assegura o foro dos Tribunais de Justiça dos Estados para o julgamento dos juízes de direitos até mesmo quando se tratar de crimes de natureza federal (art. 96, III). Se não nos parece uma boa politica criminal (na perspectiva processual), por que, na prática, tais Tribunais tendem a se especializar por matéria (nos crimes estaduais), a fonte da escolha vem da Constituição da República. O que faz com que tenhamos que aceitar a ideia no sentido de que todos os tribunais deveriam se especializar nas mais diferentes matérias criminais. Do contrário, como aceitar que um juiz de direito ou outro que tenha foro ali, nos Tribunais de Justiça, sejam ali jugados em matéria federal??? E o mesmo valeria para a competência dos Tribunais Regionais Federais nos julgamentos de crimes estaduais cometidos por juízes federais ou por outras pessoas que ali tem seu foro privativo.

Teríamos, então, e, inevitavelmente, que rejeitar a opção constitucional, dando-a por inválida em face da própria Constituição, em seu contexto mais geral sobre o exercício da jurisdição, o que, convenhamos não parece tarefa fácil, além de contrariar rigorosamente toda a jurisprudência de todos os nossos tribunais.

Tudo isso vem a propósito do seguinte: a função jurisdicional é uma só, enquanto manifestação do Poder Judiciário na solução dos conflitos. Pode-se dizer, assim, que a jurisdição é una, ainda quando repartida a competência de seus órgãos entre diferentes juízes e tribunais. A divisão de tarefas por matérias (trabalhista, militar, eleitoral, comum – federal e estadual) tem o único objetivo de otimizar o exercício do aludido Poder, por meio da especialização dos juízos, sempre com o objetivo de enriquecer e qualificar a distribuição de Justiça.

A garantia do juiz natural por matéria penal traduz a preocupação com o grau de especialidade de determinados delitos, assegurando ao jurisdicionado o julgamento por magistrado que lida cotidianamente com tais questões. O juiz federal não é superior ao juiz de direito – e nem o contrário -, mas a garantia de um e de outro como o juiz natural para a apreciação do crime federal e do estadual decorre exatamente do fato da especialização por matéria determinada pela repartição constitucional da competência jurisdicional.

E quanto aos foros privativos por prerrogativa de função, o fundamento, repita-se, não é o da especialidade, mas da relevância do cargo ocupado pelo acusado, a exigir uma instância do Judiciário de mesma equivalência funcional. Deferência bastante discutível, mas feita por quem podia fazê-lo: o constituinte. No entanto, semelhante critério somente pode ser explicado a partir de um pressuposto lógico: o de que todos os Tribunais devem ser também especializados em toda a matéria criminal, sem o que os foros privativos seriam um grande risco para aqueles que gozam de tais prerrogativas. Riscos esses que não alcançariam aqueles que tem como foro em razão da função o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, cuja competência recursal já inclui a especialização em todo tipo de delitos (federal, estadual, eleitoral, militar e dolosos contra a vida).

Mas, fato é que, enquanto manifestação definitiva do Direito a ser aplicado (a jurisdição), deve-se evitar ao máximo a possibilidade de decisões diferentes para a mesma situação de fato no âmbito da mesma jurisdição criminal. Divergências na responsabilização civil e penal podem ocorrer mesmo, diante das peculiaridades das respectivas regras de imputação. Porém, e para reduzir tais inconvenientes, há previsão legal de condicionamentos entre as instâncias cíveis e criminais, conforme o disposto no art. 935, do Código Civil, e art. 65, 66 e 67, do CPP.

Daí, a importância de se distinguir os conceitos e as consequências entre a conexão e a continência, ambas reguladas no CPP (art. 76 e art. 77), na medida em que tratam de questões evidentemente diferentes.

Das regras de alteração de competência no CPP

Em princípio, uma vez distribuído o processo, não haveria razão alguma para se afastar aquele juízo previamente fixado segundo as determinações legais pertinentes. É dizer: determinada a competência pela distribuição, que razões poderiam justificar a sua alteração?

De se ver, de início, que a matéria atinente à modificação de competência jurisdicional não tem foro na Constituição.

A rigor, parece justificadamente deduzível do conjunto de regras processuais que cuidam das alterações de competência no velho Código de Processo Penal, que o que se tinha ali em mira, prioritariamente, era a competência territorial, e, secundariamente, a competência em razão da matéria ou por exercício de função. De todo modo, e à vista da ausência de poderes onipotentes ou videntes do legislador responsável pelo CPP de 1941, não se pensava então no atual modelo de distribuição de competência realizada na Constituição da República de 1988.

Ensinam os doutos que mesmo a regra contida no art. 78, III, CPP, que trata da prevalência da jurisdição mais graduada, nada tinha que ver com a competência originária dos tribunais.[1]

E, mais importante que isso, a legislação ordinária da época não estava atrelada às eventuais determinações constitucionais que pudessem impedir a modificação de jurisdições pela diferença hierárquica entre as diferentes normas (Lei e Constituição). É certo, por exemplo, que as Constituições brasileiras de 1934 e de 1937 – anteriores ao Código de 1941 – já contemplavam os foros privativos por prerrogativa de função (em número muito mais reduzido que agora, é certo!).

O quadro geral das regras de alterações de competência permanece até hoje o mesmo, consoante o disposto no art. 76 e seguintes do CPP. E com uma agravante que incidirá sobre suas disposições: a Constituição da República regulou diversas questões atinentes à competência por matéria e por prerrogativa de função, normas estas que, em princípio, não poderão ser afastadas pelos critérios ordinários do CPP. Mas que, excepcionalmente, poderão ter aplicação também nesse campo, desde que adequadas e justificadas por outras considerações igualmente de índole constitucional.

Vejamos as hipóteses de conexão e de continência, a chave para a solução das questões levantadas nesse trabalho.

A conexão

Como já salientado, o que caracteriza a conexão, por primeiro, é a pluralidade de ações, que podem ou não ter sido praticadas pelo mesmo agente. Quando realizadas pelo mesmo autor, o ponto de ligação entre as condutas será exatamente essa circunstância, acrescida do fato de haver uma interdependência entre elas, como se vê do disposto no art. 76, II, CPP, em que se afirma que haverá conexão quando, diante da apontada pluralidade de ações, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas.

Em tais hipóteses, bem se vê, não haveria a necessidade de reunião dos respectivos processos (em que se apura cada uma das infrações), no que diz respeito à questão probatória. No entanto, estando eles reunidos, bem e melhor poderá o magistrado aferir do grau de responsabilidade penal do agente, ao exame das circunstâncias subjetivas presentes nas ações subsequentes.

De outro lado, as demais situações de conexão reguladas no CPP estão conectadas – passe a redundância! – com a facilitação da instrução criminal, em proveito do procedimento, portanto, e com a qualidade da prova obtida pela reunião dos processos. A unidade do processo, assim, favorecerá a unidade do julgamento. É ver o quanto se contém nas hipóteses do art. 76, I e III, CPP:

Art. 76.  A competência será determinada pela conexão:

I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;

II - ...

III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Resulta de tudo isso a conclusão, bastante visível, de que as regras de conexão buscam unicamente a otimização da persecução penal, primeiro ao nível do procedimento, facilitando a colheita da prova e evitando a reiteração de atos de instrução (prova testemunhal, por exemplo), e, depois, permitindo ao juiz uma visão mais ampla das responsabilidades penais eventualmente presentes. E precisamente por isso é que se deve afastar a reunião de processos em razão de conexão quando estiver em jogo a possível violação ao princípio do juiz natural. O proveito da instrução (do processo) não vale o risco da jurisdição (da Constituição). Como regra!

Todavia, exceções estão presentes em todo o Direito e sempre se justificarão quando as peculiaridades e singularidades do caso concreto indicarem a necessidade de superação ou de afastamento do critério geral. Seria o caso, por exemplo, de hipóteses envolvendo o foro privativo por prerrogativa de função, em que alguns dos réus não ostentassem o mesmo status processual ou que o tivessem em menor grau de hierarquia jurisdicional, como pode ocorrer entre membros do Congresso Nacional e Governadores de Estados, cuja competência para o processo e julgamento seria do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente. Nesse exemplo, aquele que tem foro privativo no STJ teria diminuído em algum nível as suas garantias judiciais acaso viesse a ser julgado diretamente no Supremo Tribunal Federal?

Para logo, note-se que nas ações penais originárias não se aplica a exigência do duplo grau de jurisdição. Eventuais impugnações somente terão lugar, quando cabíveis, pela via extraordinária, casos do recurso especial, na competência recursal do Superior Tribunal de Justiça, e do recurso extraordinário, para o Supremo Tribunal Federal. Ao propósito, reputamos absolutamente inválidos, por incompatibilidade com a Constituição e com a Lei 8.038/90, os embargos infringentes previstos no art. 333, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Esta Corte, entretanto, vem de afirmar a recepção do citado recurso em embargos opostos na mesma AP 470/MG, por apertada maioria (6 x 5). Toda a fundamentação com a qual julgamos ter demonstrado o equívoco da Suprema Corte em relação a essa questão se encontram em nosso Curso de Processo Penal, 18ª. Edição, Editora Atlas, no prelo, para 2014, no Capítulo referente aos embargos infringentes previstos no art. 609 do CPP. Não nos parece adequado voltar ao tema nesse pequeno espaço.

Por outro lado, de todo criticável a Súmula 122, do Superior Tribunal de Justiça, ao dispor que no concurso entre a competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual prevaleceria a da primeira. Aqui não se cuida de prerrogativa de função, mas de conexão entre fatos da competência da jurisdição dos Estados e da jurisdição federal. Não vemos razão alguma que justifique o afastamento do juiz natural, em razão da matéria, para o fim unicamente de facilitação da instrução e proveito do procedimento. As regras da conexão não deveriam se sobrepor às funções do juiz natural, de índole constitucional.

A continência

A mais importante regra de modificação de competência que se tem notícia no processo penal é a da continência, cuja configuração não parece muito ajustada àquela já conhecida do processo civil, em que tem lugar uma relação de continente a conteúdo, via da qual o objeto de um processo, por ser mais amplo que o do outro, justificaria a sua reunião.

No processo penal, o que caracteriza a continência é a unidade de condutas, que ocorre tanto em relação ao concurso de pessoas na prática de um ou de mais crimes, quanto nas hipóteses de concurso formal de crimes, na aberractio ictus e no resultado diverso do pretendido (art. 70, 73 e 74, todos do Código Penal). É o que se deduz do texto do art. 77, do CPP, a dizer que:

Art. 77.  A competência será determinada pela continência quando:

I - duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração;

II - no caso de infração cometida nas condições previstas nos arts. 51, § 1o, 53, segunda parte, e 54 do Código Penal (atuais arts. 70, 73 e 74, CP)

Ocorre que a reunião de processos, ou, melhor dizendo, a unidade de processo para que se realize a unidade de julgamento em tais situações não busca fundamentação em mero proveito procedimental ou na facilidade da instrução criminal.

Para muito além, trata-se de imposição decorrente de princípio geral do Direito, verdadeiro postulado político da democracia: a igualdade de tratamento a todos pela Administração Pública, em todos os seus níveis. Tratando-se da possibilidade de imposição de graves consequências jurídicas em razão da prática de um mesmo e único fato, considerado aqui na sua singularidade subjetiva (pluralidade de agentes), deve o Direito oferecer a mesma resposta, na medida, é claro, das respectivas culpabilidades.

Parece-nos mesmo inaceitável que o Estado apresente soluções diferentes para responsáveis pelos mesmos fatos. E, mais, que tais soluções decorram da mera existência de instâncias privativas para o julgamento de determinados ocupantes de cargos públicos. Se os Tribunais ocupam posição hierarquicamente superior aos juízos singulares, não há como sustentar a necessidade de separação de processos com base em tal fundamento. A pessoa sem foro privativo que é originariamente julgado nos Tribunais de segundo grau teria também ali o órgão competente para apreciar o seu recurso se processado na primeira instância. O problema, em si, na verdade, é a existência das ações penais originárias nos tribunais e não a reunião dos processos naqueles foros. Culpe-se o constituinte e não a unidade da jurisdição!

É claro que o risco de decisões contraditórias sobre o mesmo fato também estará presente na previsão atual de duplicidade de apreciação da matéria por instâncias diferentes da jurisdição. Um fato ilícito poderá produzir a responsabilização de seu autor tanto no âmbito civil quanto no penal. E, eventualmente, também no administrativo, permanecendo, em todo o caso, o mesmo e único fato. Culpe-se, então, a Legislação nacional que até hoje não entendeu pela necessidade da apreciação conjunta da responsabilidade civil e da criminal no mesmo Juízo! Diversos países contemplam a unidade de jurisdição, cível e criminal, exatamente para evitar soluções diferentes para o mesmo fato. E a competência deverá ser do juízo criminal por razões evidentes, ligadas ao modelo de afirmação da certeza judicial, no que já se convencionou chamar de verdade real ou material, que nada mais traduz senão a amplitude do campo probatório no processo penal.

De outro lado, é verdade também que nosso CPP prevê hipóteses em que a separação dos processos se apresente como alternativa ao magistrado, mesmo em se tratando de continência, conforme se vê do disposto no art. 80, e, especificamente, quando se tratar de grande número de acusados e para não lhes prolongar a prisão provisória. A norma está a se referir às situações em que a demora na tramitação do processo, em razão do elevado número de réus, possa permitir a indevida prorrogação da prisão de alguns deles ou de todos.

Cabe assinalar, contudo, que o dispositivo é de 1941 e já perdeu sua eficácia no tempo, sobretudo porque, desde a Constituição de 1988, e, particularmente, desde a Lei 12.403/11, toda prisão dependerá de ordem judicial escrita e fundamentada, além do fato, de todo relevante, que, embora não haja prazo certo para o término da instrução criminal, ressalvadas algumas disposições esparsas sobre a instrução criminal (art. 400, e art. 412, CPP, este último específico do Tribunal do Júri) e os prazos para a prática de determinados atos processuais (encerramento de inquérito e oferecimento de denúncia), já se consolidou o entendimento no sentido de limitar a duração máxima da prisão até a fase final da instrução (aproximadamente 85 dias, em regra, dependendo do procedimento). Também a Lei 12.850/13 prevê o prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias para o encerramento da instrução, nos procedimentos relativos às organizações criminosas, e prorrogáveis por igual período, no caso de demora não imputável ao Estado (art. 22, parágrafo único).

Assim, a quantidade de acusados no processo não determinará o prolongamento da prisão provisória, impondo-se o seu relaxamento quando estiverem superados os prazos legais e aqueles construídos pela jurisprudência. Por isso, pensamos que não se deve aplicar a regra do art. 80 nas hipóteses de continência, ao menos como regra, deixando às exceções a justificativa para o risco de decisões distintas para acusados de um mesmo fato.

Como é o caso, por exemplo, daquelas (exceções) contidas no art. 79, I e II, CPP, a cuidar de hipótese de superveniência de incapacidade de um dos réus e de incidentes no Tribunal do Júri. Também poderá haver o julgamento posterior de corréu que não tenha sido incluído na peça acusatória e cuja autoria e/ou participação fosse desconhecida àquele tempo. São situações em que a separação dos processos é perfeitamente justificável, sob pena de paralisação completa da jurisdição. Relembre-se, ainda, e ao propósito, que nos casos de revelia de um dos acusados, incidirá a suspensão do processo e do prazo prescricional, nos termos do art. 366, CPP, ressalvados unicamente os processos relativos aos crimes de lavagem de bens e valores (Lei 9.613/98, com redação dada pela Lei 12.683/12).

Fora dessas situações, portanto, em que a separação dos processos nas hipóteses de continência encontra amparo na preservação do devido processo legal e na regularidade do exercício da função jurisdicional, não se deve proceder ao desmembramento de processos continentes. O afastamento da unidade de processos e, sobretudo, do julgamento, deve ser sempre excepcional, a fim de se evitar que a mesma jurisdição criminal produza decisões divergentes sobre o mesmo fato. Em sentido contrário, veja-se a posição de Maria Lúcia KARAM[2], na qual, contudo, não se aprecia a distinção de tratamento entre conexão e continência.

Alguns pontos de chegada

Em tempo de conclusões, não vemos como negar o acerto da decisão da Suprema Corte em manter ali a unidade de processo e de julgamento na AP 470/MG, para o que se arrolam algumas sínteses de todas as questões que foram aqui abordadas.

a) Inúmeros eram os fatos, como inúmeros também eram os imputados, de tudo se extraindo a conclusão da existência de uma pluralidade de condutas alegadamente interligadas, seja pela imputação do concurso de pessoas, seja pela vinculação de motivações e finalidades desejadas, conforme alegado na acusação. Nada diríamos, por óbvio, acerca da pertinência ou da procedência das alegações ali contidas, já que o exame detido e pormenorizado dos autos constituiu prerrogativa daqueles que nele atuaram;

b) Estavam presentes, portanto, nas imputações e nos votos vencedores, tanto a ocorrência de conexão entre os mais variados fatos, quanto a continência em relação a tantos outros;

c) Questões e incidentes de fundo constitucional, de fato, podem e devem ser alegados a qualquer tempo. Mas não a todo tempo! Uma vez decidida pelo Tribunal a questão suscitada, não há razão alguma para a ela se voltar, sobretudo porque, tratando-se da jurisdição originária do Supremo Tribunal Federal, qualquer decisão acerca da separação ou da manutenção da unidade do processo e do julgamento terá enfrentado e repelido a fundamentação constitucional pertinente (ainda que não alegado um ou outro fundamento ou um ou outro argumento). E isso na medida em que se trata da determinação do alcance do princípio do juiz natural e da exigência, ou não (Súmula 704 – STF) do duplo grau de jurisdição para aqueles que não tem ali o seu foro privativo. Tem-se, portanto, preclusão pro judicato da matéria, a impedir a sua rediscussão;

d) A interpretação constitucional no Estado Democrático de Direito, orientada pelo pluralismo e pela realização dos direitos fundamentais, é refratária à absolutização dos princípios, nada autorizando a articulação de uma hierarquia ou de uma escala axiológica entre eles, sobretudo, no que tange aos princípios que orbitam em torno do devido processo legal;

e) O julgamento de quem não tem foro privativo, quando realizado diretamente pelo Tribunal com hierarquia jurisdicional e competência recursal sobre a primeira instância, nem passa perto de atingir a ordem democrática; pelo contrário, permite que os Tribunais Superiores apreciem também a matéria de fato, normalmente reservada às instâncias ordinárias;

f) A separação de processos prevista no art. 80, CPP, como regra, se refere aos casos de conexão e não àqueles de continência. As demais hipóteses do art. 79, CPP, poderão se aplicar também à continência, justificando-se por necessidade de preservação do devido processo legal e de regularidade do exercício da jurisdição, princípio e postulado indeclináveis do Estado de Direito;

g) A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, segundo o disposto na Súmula 704, é no sentido da ausência de violação ao devido processo legal quando reunidos os processos daqueles que tem foro privativo nos tribunais e daqueles que não o tem. Se não se tem aqui um fundamento de Direito, quando nada demonstra a coerência da decisão de manutenção dos processos naquela Corte, na AP 470/MG. A garantia do duplo grau de jurisdição diz respeito à exigência de revisão do julgado de primeiro grau por órgão colegiado dos Tribunais, o que justifica a validade intrínseca das ações penais originárias, ainda que não se mostrem a melhor alternativa para o julgamento de autoridades do Poder Público.

Dentre tantas curiosidades no citado julgamento, uma delas, e especificamente em relação ao tema aqui abordado, chama a atenção: em alguns cantos da vida política e mesmo no ambiente jurídico, os foros privativos por prerrogativa de função vinham sendo entendido, modernamente, como privilégio daqueles ocupantes de determinados cargos públicos. Sustentava-se, e com alguma insistência, a desigualdade de tratamento em relação aos demais jurisdicionados, que se veriam em situação desfavorável aos titulares do citado foro.

Agora, quando algumas condenações começam a surgir no âmbito dos Tribunais Superiores, surpreende a mudança de posição: agora, quem se vê em situação desfavorável seriam as autoridades com foro privativo e não mais os cidadãos comuns. E, por isso, levá-los (os cidadãos) aos tribunais nas ações originárias seria estender a mesma desvantagem a eles, não possuidores do ex-privilégio do foro.

Talvez surja daí o óbvio: o fim das ações originárias nos tribunais para os crimes comuns. E que se aproveite também para fazer renascer a competência do júri para todas as autoridades públicas. E, por fim, que os juízes, em todas as instâncias, sejam apenas Juízes e não Desembargadores e Ministros, afinal, privilégios e prerrogativas sempre se confundem aos olhos da cidadania.


Referências e Notas: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª. edição, 2ª. tiragem, São Paulo: Malheiros, 2005.

BUENO, Pimenta. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro. Edição anotada, atualizada e complementada por José Frederico BUENO MARQUES. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1959.

CARNELUTTI, Francesco. Princípios del proceso penal. Trad. Santiago Sentis MELENDO, Buenos Aires: Ediciones jurídicas Europa-America, 1971.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Entre faticidade e validade. Vol. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. KARAM, Maria Lúcia. Competência no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

MARQUES, José Frederico, Elementos de direito processual penal. Vol. IV, Campinas: Bookseller, 1997.

MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. Brasilia/São Paulo: Saraiva/IDP, 2007.

PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 17ª. edição. São Paulo: Atlas, 2013.

PACELLI, Eugênio. FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 5ª. Edição. São Paulo: Atlas, 2013.

PACELLI, Eugênio. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais. 3ª. edição. São Paulo: Atlas, 2012.

PIERANGELLI, José Henrique. Processo penal. Evolução histórica e fontes legislativas. Bauru: Editora Jalovi Ltda, 1983.  

[1] BUENO, Pimenta. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro. Edição anotada, atualizada e complementada por José Frederico BUENO MARQUES. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1959, p. 152/153. [2] KARAM, Maria Lúcia. Competência no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 67.

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Eugenio-Pacelli2

Eugenio Pacelli é Mestre e Doutor em Direito. Advogado. Ex-Procurador Regional da República no DF. Relator-geral do anteprojeto de novo CPP – PLS 156, do Senado Federal, atualmente em lenta tramitação na Câmara dos Deputados.

  __________________________________________________________________________________________________________________ Texto anteriormente publicado no IBCCRIM e encaminhado ao Empório do Direito pelo autor. Confira os seguintes endereços http://eugeniopacelli.com.br/ e http://www.pacelliporciuncula.adv.br/ __________________________________________________________________________________________________________________ Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice (...) // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações Disponível em: http://www.flickr.com/photos/89165847@N00/8035396680 Licença de uso disponível em: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
 

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