Por Atahualpa Fernandez - 12/02/2016
Leia também a Parte 2, a Parte 3, a Parte 4 e a Parte 5.
A linguagem não é o mesmo que pensamento, nem a única coisa que separa os humanos dos outros animais, a base de toda cultura, a morada do ser onde reside o homem, uma prisão inescapável, um acordo obrigatório, os limites de nosso mundo ou o determinante do que é imaginável. A ideia de que o pensamento é o mesmo que a linguagem constitui um bom exemplo da que poderia denominar-se uma estupidez convencional, ou seja, uma afirmação que se opõe ao mais elementar sentido comum e que, não obstante, todo mundo se crê porque recorda vagamente havê-la ouvido mencionar.
Não há dúvida de que a hermenêutica jurídica, com seus altos ideais e os mais elevados propósitos, não está imune do que se soe denominar “práticas questionáveis de interpretação”. Em primeiro lugar porque, ao ignorar deliberadamente a “regra de ferro” segundo a qual “o que interpreta o intérprete é o que interpreta seu cérebro”, manifesta uma carência insofrível de qualquer escrutínio empírico-científico minimamente sério, quero dizer, uma radical desconsideração respeito aos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana e, em particular, à utilidade de desenhar uma modelo de compreensão/interpretação compatível com as reais condições e as (invisíveis) «limitações psicobiológicas» humanas no ato de interpretar, eleger e decidir.
Segundo, porque tampouco a suposta excelência ou integridade epistemológica de suas rebuscadas teorias está isenta da preferência seletiva ou da tendência de seus autores de coletar opiniões e informações mais agradáveis para seus pontos de vista, de rechaçar os (ou fugir dos) fatos que contradizem suas crenças e de declarar que algo é certo sem proporcionar nenhuma evidência empírica que corrobore suas afirmações.
Claro que reclamar para a hermenêutica um debate científico baseado em evidências resulta muito difícil em um entorno cultural onde a ciência se considera um “modo de discurso” mais entre outros. Ademais, seja acertado ou não, parece quase impossível evitar cair em um abstracionismo extremo quando pensamos em interpretação jurídica. Mas, ocultar a atividade interpretativa em ensolaradas especulações sobre a “razão”, “pré-compreensão”, “prejuízo”, “causa primeira incausada”, “círculo hermenêutico”, “ponderação” ou outros fenômenos ocultos não somente é bastante feio e arrogante, também é ineficaz e ilusório. Um tipo de escapismo mental puro e duro, que trafica com a fantasia e engazopa a alma dos mais incautos.
Não há “máquinas racionais” de pensar, só cabeças humanas; não há juiz Hércules, nem Júpiter, nem Hermes..., apenas primatas (com ou sem toga) dotados de um cérebro construído deficientemente pela evolução e uma mente desenhada para interpretar, decidir ou justificar qualquer coisa. Dito de outro modo: é a atividade eletroquímica de redes neuronais no cérebro (dos circuitos físicos situados no córtex pré-frontal e em outras partes do cérebro) a que condiciona e determina o processo de interpretação e decisão jurídica. Mais além disso, tudo são opiniões, «chuva de opiniões».
Aqui vão as minhas.
Hermenêutica e suas complicadas facilidades: a ilusão linguagem
A hermenêutica contemporânea tem em Nietzsche e em Heidegger seus genuínos fundadores. Eles traçaram (também) os caminhos de seu discorrer e são, de fato, o ponto de referência das diferentes hermenêuticas: desde o caráter ontológico-universal da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer (cuja filiação e procedência heideggeriana é manifesta) até a “hermenêutica niilista de Gianni Vattimo (para quem só remitindo-se a Nietzsche e a Heidegger a hermenêutica adquirirá o peso e transcendência filosóficos que lhe são próprios), passando pela hermenêutica crítica de Paul Ricouer (que vê na ontologia hermenêutica nietzscheana o melhor adversário com quem seu pensamento tem que se medir, e em Heidegger o lugar de passagem iniludível).
De um modo geral, segundo a chamada corrente hermenêutica (continental, filosófica ou hermenêutica dialética), a interpretação não só deve entender-se como uma atividade específica ou técnica (um método de trabalho), senão também como uma atitude filosófica global, como uma modalidade constitutiva do ser humano, como o modo próprio pelo qual o homem entra em contato com o mundo. Desde este ponto de vista, o que faz possível a compreensão de um texto não é somente a tarefa de análise e recuperação do contexto da obra e do autor, senão a radical unidade originária e primogênita que funda toda compreensão.
Todo este novo movimento hermenêutico representou um rechaço radical às regras com as que opera naturalmente nossa mente e uma demonstração definitiva do abismo que separa o reino ideal das verdades e os princípios do ser-conhecer da mecânica empírica (do funcionamento) da mente humana. Um repelir que, estendido em todas as direções, pode ser perfeitamente rastreado, por exemplo, na resistência (e rechaço) às primeiras hermenêuticas de caráter existencialista e psicologista, como as elaboradas por Schleiermacher e Dilthey, e sua reelaboração em chaves ontológicas, desvinculadas da psicologia empírica, como as propostas por Heidegger ou Gadamer.
De fato, foi grande o esforço das hermenêuticas de corte ontológico de Heidegger e Gadamer por descontaminar ou purgar a hermenêutica, a compreensão e/ou a interpretação de qualquer consideração psicológica empírica. Gadamer, por exemplo, em polêmica com a hermenêutica romântica e contra toda forma de hermenêutica psicológica, afirma que "un texto no quiere ser entendido como una expresión de la vida, sino sólo en aquello que se dice". Já a análise existencialista levada a cabo por Heidegger é um perfeito exemplo deste desejo de reinterpretar qualquer traço existencial nos novos termos de uma ontologia do da-sein.
Por outra parte, as hermenêuticas pós-estruturalistas, definitivamente instaladas na deriva onipresente e “significamentosa” da linguagem, decidiram cortar as amarras com qualquer forma de realismo ou naturalismo, decretando que o único real é a deriva do significado, uma viagem sem retorno na qual não podem ser precisados nem a origem nem o fim das cadeias significantes, donde não existe nenhum vínculo, enlace ou atadura nem ontológica nem antropológica, senão a exclusiva esfera autorreferente da linguagem.
O problema é que a centralidade da linguagem, como ocorre com tantas ideias filosóficas e teorias sociais (como por exemplo, no desconstrucionismo, no pós-modernismo e em outras doutrinas relativistas e analíticas)[1], é levada a extremos inverossímeis e irrealistas: desde os sofistas, passando por Hobbes e Nietzsche, até desembocar nos textos de oráculos como Derrida, crivados de aforismos como “Não é possível escapar da linguagem”, “O texto é autoreferente”, “Linguagem é poder” e “Não existe nada fora do texto”, ou na afirmação mais extrema de Roland Barthes de que “O homem não existe anteriormente à linguagem, seja como espécie, seja como indivíduo”. Pura “opinologia”, onanismos intelectuais e suas complicadas facilidades.
Notas e Referências:
[1] É difícil caracterizar ao pós-modernismo, pois cada autor pós-moderno difere dos outros e, ainda que tratem o mesmo tema, podem chegar a dizer coisas totalmente diferentes, e inclusive contrárias, ao punto que não se entendem entre eles – e às vezes, nem sequer se entendem a si mesmos: “las principales características del pensamiento posmoderno son el relativismo, la irracionalidad y la crítica a los valores de la Ilustración -y al cientificismo -, los abusos del lenguaje, la falta de fundamento y el mal uso de terminología científica – cuyo significado, a menudo, ignoran - y, a veces, un cierto disfraz de izquierda política” (M. Lirussi). Neste particular, a citação de Jerry Fodor, um psicolinguista com ideias muito claras sobre a arquitetura da mente, é tão rica que vale a pena considerá-la em sua totalidade: “Poderíamos perguntar: “mas, dí-me-lo, por que te interessam tanto os módulos (cerebrais)?; por que não vais à praia e te dedicas a navegar?”. Trata-se de uma pergunta perfeitamente razoável e que eu mesmo me faço algumas vezes. Mas, a ideia de que a cognição satura a percepção pertence e está historicamente vinculada) à teoria da filosofia da ciência segundo a qual as próprias observações estão determinadas pelas próprias teorias; à teoria da antropologia segundo a qual os próprios valores estão determinados pela própria cultura; à ideia da sociologia de que os compromissos epistêmicos próprios, incluída sobretudo a ciência, estão determinados pela própria filiação de classe; e à ideia da lingüística de que a mesma metafísica está determinada pela própria sintaxe. Todas estas ideias implicam uma concepção holística relativista: porque se a percepção está saturada de cognição, a observação de teoria, os valores de cultura, a ciência de classe e a metafísica de linguagem, então a crítica racional das teorias científicas, os valores éticos, a cosmovisão metafísica ou o que seja, só podem ter lugar dentro do marco de suposições compartidas pelos interlocutores, como se de um acidente geográfico, histórico ou sociológico se tratara. Assim resulta impossível formular uma crítica racional do marco. A verdade é que odeio o relativismo. Odeio o relativismo mais que qualquer outra coisa salvo, quiçá, as lanchas de fibra de vidro. Creio que o relativismo é seguramente falso. Se olvida, para dizê-lo breve e sem rebuço, da estrutura fixa da natureza humana.[...] Bom, de acordo com a psicologia cognitiva, a hipótese de que existe uma estrutura fixa da natureza humana adota tradicionalmente a forma de uma insistência na heterogeneidade dos mecanismos cognitivos e na rigidez da arquitetura cognitiva que afeta a sua encapsulação. Se existem faculdades e módulos, então nem tudo afeta a todo o demais; nem tudo é de plástico. Seja o que for o TODO, ao menos há mais de UM nele”.
Imagem Ilustrativa do Post: Brains // Foto de: Neil Conway // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/neilconway/3792906411
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