O que proponho neste breve escrito é estimular o diálogo com epistemologias indígenas, invisibilizados pelo caráter etnocêntrico da colonização e da colonialidade presente epistemologias hegemônicas. Isto porque, em um primeiro momento, escrever a partir dos referenciais aprendidos em minha formação jurídica, soou análogo ao mesmo propósito de colonialidade: olhar para as comunidades indígenas como objeto de estudo, como o exótico, sem render reflexões que apontam para permanência da colonialidade no mundo ocidental hegemônico, que as teorias pós-coloniais propõem[1].
Como professora de Antropologia Jurídica e de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas, restou-me olhar para as teorias ‘decoloniais’, não como um aporte teórico para textos acadêmicos, mas como um suporte para desvelar as máscaras ocidentais modernas hegemônicas e imergir sobre esta realidade que me toca desde os inícios dos estudos sobre povos indígenas.
Por este motivo, estas palavras trazem não somente aquilo que minha formação (inegável) pode oferecer, mas também, aquilo que vivo no presente momento, em contato com indígenas, como João Paulo Lima Barreto. João Paulo é do povo Tukano (noroeste amazônico), filósofo e antropólogo, mestre e doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas.
Neste ensaio, devo me ater às palavras de João Paulo Lima Barreto, concedidas na breve entrevista, ocorrida no dia 19 de janeiro de 2019, a sua dissertação[2] de mestrado intitulada “Wai-Mahsã: Peixes e Humanos: Um ensaio de Antropologia Indígena”, defendida em 2013, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas, com o propósito de ressaltar a fala do entrevistado, demonstrando sua perspectiva sobre descolonizar a epistemologia que constrói os conceitos de conhecimento e ciência, para expor a perspectiva do entrevistado.
Início a entrevista explicando que a base do pensamento decolonial foi o que me motivou buscar essa conversa, João Paulo me responde: “Acredito que a temática da descolonização do pensamento é bastante, uma das questões que sempre busco trazer pras discussões, de como seria descolonizar esse pensamento, o que acredito ser um grande desafio. Nesse sentido, a minha própria história é uma forma de descolonizar esse pensamento. Onde esses mesmos autores citados, instigaram bastante minha reflexão.” E me contou um pouco de sua trajetória, também encontrada em sua dissertação de mestrado, na qual ele revela sua conexão profunda com seu avô “Ponciano Barreto, especialista, Yai, conhecido como Ponciano yai, considerado o último grande especialista tukano da região do Rio Tiquié [...]. Yai, Kumu e Baya são as especialidades essenciais no núcleo social dos povos indígenas do Rio Tiquié. Para se formar em tais espacialidades é necessário passar por um período de formação específica, mas os cuidados começam desde a concepção da criança que envolve a dieta, acompanhamento do kumu e sua inserção para a vida adulta, conhecido ritual de iniciação” (BARRETO, 2013, p. 20). No entanto, aos cinco anos de idade foi enviado para a formação convencional com os salesianos, seguindo para o internato no distrito de Pari-Cachoeira (Alto Rio Negro), mudou-se para Manaus para estudar o ensino médio técnico em mineração promovido por uma mineradora da região. Retornando a sua comunidade, foi convidado a ministrar aula no mesmo colégio onde havia estudado. Voltou à Manaus como seminarista, quando estudou Filosofia. Deixou o seminário e deu aulas na rede Municipal, ingressando no curso de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e mais tarde, no curso de Direito da Universidade do Estado do Amazonas, pelo sistema de cota indígena. “Durante essas experiências tive alguns desencontros marcantes, sobretudo no confronto entre conhecimentos científicos e indígenas”. (BARRETO, 2013, p. 20)
Seu pai, Ovídio Barreto, passou seis meses em Manaus, falando sobre os conhecimentos tukano. Em 2010, em contato com professores do Programa de Pós-Graduação da UFAM, passou a participar de seminários promovidos pelo Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena - NEAI, dando atenção aos estudos de antropologia simétrica e as concepções e epistemologias científicas. Apesar da iniciativa do PPGAS-UFAM implementar cotas para indígenas, não se sentiu motivado a ingressar no PPGAS, pois “o novo programa não trazia nenhuma novidade para os indígenas, que há séculos estão familiarizados com esta forma de estudo e de abordagem. Estava convencido, portanto, de que essa (mais uma) iniciativa do PPGAS/UFAM, a exemplo das outras, não contribuiria em nada para resolver minhas “angústias”. (BARRETO, 2013, p. 21)
“Certo dia, perguntei ao professor Gilton – um pouco satirizando – se era possível “estudar os Brancos”, algum ritual, um fenômeno social ou os próprios antropólogos, da mesma maneira que estes estudam os grupos indígenas?!”. Após debates e estímulos dos professores, ingressou no mestrado, em 2011, com o projeto “um olhar indígena (tukano) sobre a ciência: uma etnografia no laboratório de pesquisa de ictiologia no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia”. “[...] senti um tipo de “reencantamento” com a Antropologia, na medida em que eu tinha oportunidade de desenvolver uma pesquisa a partir das “teorias Tukano”, isto é, de “estudar o Branco” da mesma maneira como os antropólogos fazem com os indígenas. (BARRETO, 2013, p. 22)
Ao longo do mestrado, João Paulo percebeu seu interesse pelos modelos de construção de conhecimentos. “O contato com as etnografias sobre os povos da Ásia, Melanésia, Nova Guiné e da África me fez perceber que o modo de vida destes povos era bastante idêntico ao povo Tukano, suas cosmologias, organização social e suas práticas cotidianas”. (BARRETO, 2013, p. 22)
João Paulo passou então a organizar mesas de debate no NEAI, convidando kumuãs, percebendo que as exposições perpassavam pelas narrativas míticas, contando as “origens das coisas e seus sentidos, envolvendo dramas sociais dos wai-mahsã e dos primeiros humanos”. A partir disso, percebeu a necessidade de promover “uma reflexividade acerca das narrativas para pensar além de dados mitológicos e de bahsesse[3] para inseri-los no debate antropológico”. (BARRETO, 2013, p. 22)
De suas experiências entre antropólogos e “conhecedores indígenas” retirou mais fundamento para sua pesquisa, a vantagem de ser tukano e entender a língua facilitava apreender com mais genuinidade os ensinamentos com seu pai, Ovídio Barreto, kumu, especialista nos conhecimentos tukano. E João Paulo pontua: “No entanto, exercitar a reflexividade desse conteúdo de modo inteligível, numa certa lógica, pensando num diálogo com a Antropologia, constitui um esforço que nós, indígenas, não estamos acostumados a fazer. Menos ainda, não somos estimulados – diferentemente do que se faz com a produção mitológica – a pensar sobre nossos conhecimentos, a tratá-los na forma de conceitos ou teorias”. (BARRETO, 2013, p. 22)
Notadamente, João Paulo busca essa produção de conhecimento indígena de dentro para fora, buscando nos conceitos e sentidos tukano, elaborar sua teoria indígena. Partindo desta apresentação, a entrevista que me foi concedida por João Paulo Lima Barreto demonstrou um profundo conhecimento dos conhecimento saber tukano, sobretudo nas concepções desta teoria indígena desenvolvida. João Paulo por vezes me corrigiu quanto a real sentido e conceito que estávamos conversando, como por exemplo: a ideia de equivocada de ‘dom’, atribuída às especialidades e técnicas do kumu na prática do bahsesse, pois não era uma prática mítica, era uma prática advinda da formação de especialistas tukano.
Partindo da contextualização inicial da conversa, uma frase me chamou muita atenção: “Nós indígenas estamos muito fascinados pela ciência”, e, partindo dela, inicio a descrição dos diálogos, buscando o máximo de integridade nas respostas de João Paulo, com algumas observações sobre minha experiência a partir desta entrevista.
Ao falar de sua trajetória de vida, afirma João Paulo Barreto Tukano :
“[...] já estava incomodado com essa ideia de colonização dentro de suas reflexões e já batalhava muito dentro da graduação [Filosofia] para discutir a epistemologia indígena a partir de uma espécie de “Filosofia Indígena”, algo que acreditava poder ter abertura para discutir dentro da academia e em um diálogo com uma Professora que pesquisava sobre mitologia egípcia não tive uma boa recepção pela mesma no sentido de abrir o debate para essa minha inquietude, recebendo portanto falas de que no conhecimento indígena não existia teoria, e que era somente mitologia, falas que me deixaram bastante chateado. [...] iniciei consecutivamente a graduação em Direito a Universidade do Estado do Amazonas/UEA, onde encontrei barreira semelhante no curso, de um conceito doutrinário, tentando desde então levantar o debate que conceito indígena, passa por outra lógica. Relembrou que certa vez, outro Professor, porém da disciplina de Introdução ao Direito discursou que conhecimento indígena não é objetivado, tomando essa como mais uma experiência frustrante que tive no campo acadêmico.”
Essa perspectiva limitadora da ciência e epistemologia ocidentais modernas hegemônicas promove, na mesma medida das tradições coloniais, a invisibilização dos conhecimentos indígenas. Aqui pontuo algumas características da tradição colonial excludente para com povos originários das Américas: negar a humanidade e negar a territorialidade. Negar subjetividade jurídica implica não reconhecimento de povos autodeterminados e territórios circunscritos e apropriados em dinâmicas epistêmicas diferentes das europeias ao longo do processo colonial[4]. Essa negação persiste hoje, quando se nega a possibilidade de estudar e desenvolver pesquisa sobre os conhecimentos indígenas, por exemplo.
João Paulo Barreto Tukano:
“Então essa proposta de descolonização do pensamento que tentamos é desafiadora e não é tão fácil. Nós indígenas estamos muito fascinados pela ciência, estamos entrando muito jovens em todas as áreas; e aprendemos conceitos ocidentais em todos os campos, Filosofia, Direito, Antropologia, qualquer área; e partir do momento que aprendemos esses conceitos, passamos a ver nosso conhecimento a partir desses aparelho conceitual, ou seja, como secundário.”
Então perguntei: “Você quer dizer, utilizando instrumentos ocidentais para olhar o conhecimento indígena?”
João Paulo Barreto Tukano respondeu:
“Sim. Isso trás um perigo muito grande, pois já existem muitos teóricos que já trabalharam esses conceitos, já os criaram – como o perspectivismo, hipotemismo - entretanto são palavras portuguesas, carregadas e criadas a partir de outros conceitos. E nós indígenas, aprendemos esses conceitos, e vamos olhar nossa cultura, achando que isso é verdade – ou acabamos sendo mais uma mão de obra para fundamentar a teoria. Destaco essa como minha crítica quando penso na teoria de descolonizar o pensamento. Nesse sentido, proponho que nós indígenas possamos trazer uma epistemologia a partir dos nossos próprios conceitos. Pois o que está acontecendo é que aprendemos conceitos de fora e levamos para dentro, e a minha proposta é aprender nossos conceitos de dentro para levar para fora, utilizando-se todo o conjunto de mecanismos que já temos. Claro que nós estamos diante de uma outra estrutura com mecanismos, não podemos fugir disso, mas também não podemos nos render à essas.”
Nessa perspectiva, João Paulo aponta seus intentos à construção de espaços na academia que proporcionem abertura para a discussão das teorias indígenas:
João Paulo Barreto Tukano:
“Para isso, tenho feito um esforço de trazer conceitos indígenas Yepamahsã (Tukano) para o debate. Minha dissertação é fruto desse esforço, desse começo onde descobri, através dela que uma palavra, o termo Wai-mahsã, traduzindo ao pé da letra Wai – peixe, mahsã – gente, ou seja, peixe-gente, possui equívoco de interpretação, em achar que Wai-mahsã , são animais. Muitos Antropólogos caíram nessa armadilha da tradução literal, onde se diz que o peixe tem qualidades antropocêntricas, ele é sociável, ele tem sua intencionalidade, sociabilidade e no final foi dito que o peixe é ancestral dos Tukano. O que em primeiro momento parece algo tão simples e direito, porém quando fui estudar, esmiuçar, adentrar na lógica dos nossos especialistas, com meu pai, não fazia sentido pra nós.”
Eu pergunto: “Então tudo o que tinha sido traduzido na Antropologia sobre os Wai-mahsã estava errado?”
João Paulo Barreto Tukano responde:
“Equivocados, totalmente equivocados. Então nessas traduções, no que eu descobri, é que transportava-se a existência do Wai-mahsã no espaço aéreo, no domínio terra, floresta, no domínio aquático e que Wai-mahsã é todo aquele ser humano que não está em contato com você. Sabe-se que ele existe, mas não tem contato com ele, então como ele é estranho, e você não o conhece, é denominado de Wai-mahsã. Desse modo, no tempo que não tínhamos contato com vocês, não indígenas, eram também chamados de Wai-mahsã.
[...] são seres humanos tal qual como nós, com riquezas materiais e não materiais, mas que estão em outro domínio, e nós somos frutos deles.
[...] domínio aquático, e nesse domínio o lago é considerado uma casa pra esse seres Wai-mahsã , a gente lança a mão de nomes de peixes.Por exemplo, um lago, existe um termo chamado buhumahsã , que significa piranha, intitulado peixe-piranha, que na nossa região do Alto Rio Negro é muito comum em lagos, então lançamos a mão do nome da piranha pra dizer que alí existe Wai-mahsã, pessoas, gente, consideradas seres tanto quanto nós, que detêm de tecnologias, conhecimentos, muito sofisticado, com os quais nós Yepamahsã aprendermos.
Então descolonizar é trazer nossos conceitos indígenas para o debate, e não aprender conceitos para entender os nossos conhecimentos. Nesse sentido que faço esforço de pensar e promover essa crítica, onde nós indígenas estamos entrando nas universidades, e pegando esses termos, essas palavras que parecem tão inofensivas, quando aprendemos. Por exemplo "pajé", "maloca", vários outros termos que vamos absorvendo, inserido no nosso vocabulário, sem questionar os conceitos que estão por trás disso. Então a minha colocação é que descolonizar desses termos, parece tão óbvio, mas não é tão simples.”
Pergunto: “Eu ousaria te questionar, já que você estudou dois anos a graduação em Direito; de como você vê, na perspectiva do Direito, em que aspecto seria possível fazer esse diálogo, que possa permitir essa construção dentro das universidades?”
João Paulo Barreto Tukano responde:
“Uma das questões no campo do direito que eu sempre coloco em discussão é o Direito Coletivo, que muitas vezes é compreendido de forma equivocada também. Existe direitos muito bem definidos com relação a esse ponto, a exemplo do território que é nosso direito coletivo, enquanto território, não dissociado ao meu jeito ser, pensar e viver no território. Porque pra nós indígenas isso é importante, todos os espaço são habitados, os quais aprendemos nossos conhecimentos, e na medida que isso é destruído, estamos destruindo o conhecimento e expulsando esses seres, perdendo conhecimento. Portanto no campo de direito isso é fundamental, não é só no campo da física, mas no campo intelectual. Meu avô era reconhecido como grande especialista e muito solicitado, e certa vez ele me contou que tudo que ele sabia, foi nesse domínio de Wai-mahsã , tendo elementos que ele usava para conectar com esses seres como o inihó - rapé, intermediado por um especialista indígena que acessava e aplicava esse conhecimento, e que no período que ficava isolado da comunidade, em dieta por cerca de um ano, era ensinado por esses seres, conjuntos de técnicas de conhecimento e quando se faz uso do inihó - rapé, abrisse uma porta, onde cachoeira é uma casa, a floresta é uma casa, o lago é uma casa. Então quando falamos para o direito que o nosso território é importante, estamos falando nesse campo, nesse sentido. Não conseguimos demonstrar de forma clara paro direito, que isso é importante, o direito coletivo no sentido interpessoal de refletir.
Outro ponto que para nós é importante, que eu também discuto bastante é o direito consuetudinário. Por, exemplo, eu, sou neto de um especialista, na medida que meu avô é uma referência de conhecimento indígena, ele me dá autoridade pra dizer quem sou eu, autoridade pra falar; ninguém vai me contrapor, por isso na prática, não criamos o Centro de Medicina Indígena da Amazônia - Bahserikowi à toa, criamos porque sabemos e somos reconhecidos, através de meu avô, pais e tios, como referência de detentores desses conhecimentos, o que me dá autoridade para isso.
[...] se eu levar pra linha de formação indígena, eu posso desenvolver esses conhecimentos, então esse é meu direito e ninguém vai me questionar. Então quando pensamos o direito, poderíamos aprofundar muitos temáticas interessantes, o que sinto falta quando meus colegas indígenas, que vão para a área do Direito, pois não desenvolvem essa pegada, não debruçam-se sobre essa reflexão.”
Eu pergunto se isto se daria pelo fato de aprenderem nas faculdades o direito dos povos indígenas perante o Estado brasileiro, mas não o direito construído pelos povos indígenas em suas relações sociais e com o meio ambiente.
João Paulo Barreto Tukano responde:
“Sim, levando hierarquia, grupo social, território, conhecimentos, são campos de direito que poderiam ser muito bem trabalhados como descolonização , e não vejo trabalhos feitos nesse campo, vejo que meus colegas fazem seus trabalhos de conclusão de curso, pegando conceitos ocidentais do Estado, e não problematizam dentro da nossa lógica. Exemplo ainda é como nós indígenas, no pensamento de descolonização , nos transformamos na lógica do Estado, exemplo: o termo "etno" - começa a se inventar etnomatemática, etnobiologia, etnohistória, etnobotânica, tudo se transformou em etno; numa tentativa desesperada de dizer que nós indígenas, também temos conhecimento, mas não é ciência, é etno, com isso, nós indígenas, estamos indo nessa lógica, achando que nosso conhecimento é dessa maneira, etno.”
Eu retomo o diálogo sobre o Centro de Medicina Indígena (CMI) e João Paulo Barreto Tukano responde:
“O CMI começou a ser pensado a partir do fato ocorrido com minha sobrinha[5]. O ocidental, tem médico, índio tem pajé, ocidental tem ciência, índios mitos, lendas. Essa disparidade de chapar, dissociar os conhecimentos indígenas, muito mais ainda quando se fala do Kumu (pajé), que foi posto na lógica de um bruxo, onde tudo que um bruxo faz no ocidente é magia, logo um especialista indígena, que possui algumas características semelhantes do mesmo, é visto de forma demonizada. Esse, por sua vez é o primeiro ponto que o CMI vem problematizar, o ser imaginário a partir da ideia folclórica que foi criada, de forma que essa imagem é vista, desse mesmo modo por religiões que hoje estão nas aldeias. Criamos o CMI, para contrapor essa problemática conceitual, em vez de promover reuniões, grandes assembleias, decidimos agir de forma prática, para que desmistificar essa imagem de um pajé, com um cocar, colar, marcá, desmistificar termo ritual, não existe ritual de cura, e sim técnicas terapêuticas de tratamento. Segundo ponto político do CMI é em problematizar essa medicalização que indígenas vem sofrendo pelos Distrito Sanitário Especiais Indígenas, quem medicalizando e transformando nós indígenas em dependentes químicos. E nossas lideranças, têm perdido a capacidade de pensar alternativas a partir da nossa própria lógica indígena, estão muito mais preocupados com a falta de medicamentos químicos. Esqueceram de pensar que estamos sendo drogados, e nos tornando cada vez mais doentes, dependentes, surgindo demais outras doenças.
O que busca-se discutir não são favores, e sim políticas públicas, em não tão somente incentivar o tratamento com especialistas indígenas, mas absorver esses profissionais como integrantes dos programas de saúde indígena. Terceiro ponto que o CMI tem conseguido atingir é inserir o debate nas universidades, na formação de medicina como em outras áreas. Como palestras que realizei para comunidade médica da cidade, bem como também as visitas periódicas de acadêmicos das áreas de saúde das universidades, públicas e privadas na sede do CMI. Entretanto ainda esse profissionais não conseguiram absorver a reflexão ou a ideia do CMI, dado ser muito diferente do que tem vivenciado nos ensinamentos ocidentais. Pensando nesse alcance a ideia de criar o CMI, na cidade, para mobilizar políticas públicas, como por exemplo a criação da Sala do Kumu na DSEI/CASAI-Manaus, também conhecida como a sala do pajé, que é uma das primeiras iniciativas do país, onde o atendimento em conjunto de duas formas de conhecimento fica a disposição dos indígenas atendidos na casa de apoio ao indígena na cidade de Manaus.
Destaco que o CMI não é algo inédito, apenas colocaram como outro nível, a exemplos de projetos dos Sataré Mawé, dos Kokamas, os mesmos tem colocando em práticas seus conhecimentos. Entretanto ao que muito me parece, são vistas como “atividades clandestinas, não sendo legítimas”, e na medida que passam a usar esses termos como o de “medicina”, vai se chamando atenção para o que estamos fazendo. Lembro ainda, que vários colegas, vieram até mim, aconselhando que tivesse cuidado, por usar esse termo medicina, pois "conhecimento indígena é tradicional, conhecimento indígena é alternativo", e poderia ser sofrer medidas por órgãos de vigilância sanitária e judiciais. Diante disso, no CMI, o que está trás daquela fumaça, daquelas formas de tratamento, estão conceitos de saúde, doença, vida, morte, a partir desses conceitos é que eles articulam e lançam mão das técnicas terapêuticas, como a feita a partir do bahsesse e através de plantas medicinais.
[...] temos três categorias de especialistas principais, o Yaí, Kumu, Bayá , e em cada categoria tem vários tipos de especialidades diferentes, com mesma base de formação, porém na parte final dela com especialidade diferenciada entre eles. E é diante disso, todo o nosso esforço no CMI, para fundamentar esse diálogo sobre o conhecimento indígena, mostrando pra sociedade que existe um pensamento, existe toda uma lógica por trás disso. Por isso que eu particularmente detesto esse forma de qualificar nosso conhecimento como "etno”, soa pra mim, como brincar com nossos conhecimentos.
A entrevista se encerra diante dessas explicações sobre o Centro de Medicina Indígena. Não me proponho a conclusões, senão a considerar que este e outros trabalhos que visibilizem as articulações de povos originários são um esforço necessário, tanto na reflexão acadêmica, quanto na atuação institucional e jurídica, ressaltando a trajetória e pesquisas[6] de indivíduos das diversas etnias brasileiras para construção das teorias indígenas, efetivando a perspectiva plural e diversa das epistemologias do sul[7].
Notas e Referências
[1] Não me cabe resgatar as teorias pós-coloniais neste texto, portanto, para compreensão dos termos ver: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autônoma de Buenos Aires, Argentina, 2005; GONZÁLEZ-CASANOVA, Pablo. Colonialismo interno (uma redefinição). Buenos Aires: CLACSO, 2007; BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, nº11. Brasília, maio - agosto de 2013, pp. 89-117; entre outros.
[2] BARRETO, João Paulo Lima. Wai-Mahsã: Peixes e Humanos: Um ensaio de Antropologia Indígena. Dissertação de Mestrado. PPGAS/UFAM. Manaus, 2013.
[3] A palavra bahsesse foi traduzida como “benzimento”, mas que para os mesmos é uma espécie de conjunto de formas para intervir sob o corpo, no desconforto do corpo.
[4] NOGUEIRA, Caroline Barbosa Contente. A Autodeterminação dos Povos Indígenas frente ao Estado. Tese de Doutorado. PPGD/PUCPR, 2016.
[5] O caso aconteceu em meados do ano de 2009 na cidade de Manaus/AM, quando uma adolescente indígena Tukana, sobrinha de João Paulo Lima Barreto, sofreu com uma picada de cobra jararaca no município em que morava, São Gabriel da Cachoeira/AM, como seu caso agravou precisou ser transferida para a cidade de Manaus, para tratamentos médicos de alta complexidade dentro do Sistema Único de Saúde – SUS. No hospital, foi dado diagnóstico de amputação do membro afetado, contrariando o diagnóstico médico a familia da menor, solicitou que fosse permitido o tratammento e atuação da medicina indígena, conjuntamente com a medicina ocidental que estava lhe sendo aplicada. A demanda foi negada pelo corpo médico que a atendia em cunho discriminatório, motivo pelo qual a familia buscou a intervenção do Ministério Público Federal, na garantia de tal solicitação, tendo a demanda atendida a partir dessa interveção. A indigena então, na época com 12 (doze) anos, teve seu tratamento de saúde realizado com as duas medicinas, e teve a saúde restabelecida não sendo necessário, a partir de então, a amputação do membro afetado. Diante desse ato discriminatório fora proposta ação judicial de n° 0012928- 69.2010.4.01.3200 na Justiça Federal, contra a União, visando indenização por danos morais e materiais. A sentença foi prolatada favorável a parte em 2013, condedando a União ao pagamento de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), entretando atualmente o processo encontra-se em recurso no Superior Tribunal de Justiça.
[6] Ressalta-se que o Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena, dentre outros feitos, garante o espaço para indígenas pesquisadores, estudantes e professores desenvolverem suas teorias.
[7] Ver: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010.
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