Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Um soco na parede sólida de pedra. É desta forma que este texto discorre suas palavras ao encontro de uma estrutura ‘acimentada’ e operacionalizada. Trata-se de uma inquietação que tem por objetivo tencionar à(o) leito(r)a uma reflexão sobre a (não) relação do Direito com sua própria memória na formação básica do pensamento jurídico, questionando, criticamente, a insistência da operacionalização técnica deste campo de saber como conteúdo neutro, burocrático e de costas para o passado. Desde já, partindo às notas introdutórias necessárias, cumpre referir que este texto não pretende se arriscar no campo da História, entretanto, quer provocar um debate com a(o) leito(r)a para a compreensão da ausência de memória no ensino jurídico. Pois, se não há sequer uma disputa de narrativa acerca da memória na construção do Direito, qual seria o espaço para a crítica da sua matriz e da sua legitimidade?
O Historiador Eric Hobsbawn diz que o passado é uma dimensão permanente na consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e padrões da sociedade[1]. Desta forma, sendo o Direito um fenômeno social, se faz emergente a seriedade para confrontar o fato de que o campo jurídico não é neutro, uma vez que possui memória que mantém uma tradição e um modo político-ideológico de operação. Assim, considerando que o ensino jurídico brasileiro contemporâneo, de modelo liberal-burguês-individualista[2], opera as disciplinas pelas vias dogmáticas, aparelhadas em regras que se fazem aparentemente isentas perante o passado, se faz necessário uma abordagem pedagógica que trabalhe criticamente a memória nas formas de racionalidades jurídicas, a fim de evidenciar as redes de contingência que lhes possibilitaram emergir.
Provavelmente, seja incômodo evocar este tema porque a estrutura jurídica acaba por ‘cimentada’ em uma larga parede da qual a(o) jurista vai contornando sem tocá-la. Talvez, esse ‘contornar’ seja decorrente de um conformismo reproduzido que a(o) estudante de Direito aprende como dado, imutável e culturalmente aceito. Neste sentido, é interessante ponderar que mesmo que a(o) educanda(o) porte uma marreta na mão, não ousa questionar quem levantou o muro, qual sua finalidade, tampouco desferir marretadas contra a estrutura que lhe foi concedida como pronta. É neste aspecto que a importância da memória no ensino jurídico se faz emergente para barrar perpetuações de injustiças que passam como normalidade na contemporaneidade. Afinal, não é em vão que educandas(os) em Direito não se levantem contra simbolismos carregados de dores históricas, como, por exemplo, o ‘camburão policial’ que porta o signo dos porões de navios que outrora carregaram corpos escravizados de um continente a outro, em nome do capital. Assim, nesta linha de pensamento, este conformismo pode ser atribuído à matriz estrutural do ensino jurídico, que estabelece o Direito como uma memória não refletida criticamente, inquestionável, porém muito viva e politicamente utilizada na reprodução de si mesma. Diante disso, coloca-se como pertinente que a(o) educanda(o) se aproprie do debate crítico, a partir da memória, para refletir os dogmas jurídicos e compreender as permanências de injustiças que se velam na operacionalidade burocrática do Direito estatal.
As fronteiras do tempo precisam ser ultrapassadas (sobretudo, resgatadas) para se pensar o Direito, pois, como será possível, por exemplo, que a(o) acadêmica(o) estabeleça um debate sobre direitos trabalhistas na contemporaneidade desconhecendo a memória acerca da construção das relações de trabalho em seu país e no mundo? Este é o ponto cerne da inquietação que este texto pretende tencionar! A relação da(o) educanda(o) com o Direito não pode ser construída dissociada da perspectiva do passado, porque a memória que mantém o campo jurídico-estatal vivo é reprodutora de sentido. Logo, por exemplo, pode-se sugerir que as aulas de direito trabalhista deveriam ter em seu plano de ensino um conteúdo para além da dogmática, como visitas ao museu do trabalho (no caso de Porto Alegre) com debate amplo sobre a memória analisada, bem como, visualização das fábricas e departamentos de logísticas. Assim, a formação da(o) jurista seria muito diferente e mais sensível ao encontrar em seu pensamento a memória viva das migrações de trabalhadores, do campo à cidade de outrora, até o cheiro do suor humano em um chão insalubre da indústria, na contemporaneidade. Tudo isso é memória que resta ausente no ensino jurídico!
É preciso, com isso, sinalizar que esta exposição inquieta nada tem a ver com a formação de u(m)a jurista-historiado(r)a, mas sim com a possibilidade de construção de uma educação jurídica (de modo geral) livre, competente e crítica para reconhecer as origens da matriz do Direito, fazendo a reflexão ao ponto de analisar as experiências contemporâneas na sua ‘crueza’. Não pode parecer trivial a ideia de que o desenvolvimento da sensibilidade da(o) educanda(o) em Direito deva passar pelo reconhecimento da memória, pois este é o ponto de identificação (e construção) da identidade de um saber jurídico que resgate um passado, cuja memória serve ao presente e ao futuro, para a libertação e não para manter a servidão humana, como menciona Jacques Le Goff[3] acerca da função da memória. Por isso, a relação entre Direito e memória deve ser constante, uma vez que não é pertinente seguir tratando o passado como conhecimento meramente ilustrativo no ensino jurídico, mas como ferramenta de análise do seu campo.
Segundo Reyes Mate[4], a crítica sobre a memória não consiste tanto em recordar o passado como passado, mas como reivindicação da realidade, uma vez que permite chegar a um núcleo oculto da realidade inacessível. Assim, considerando que o Direito no Brasil passa por um modelo de ensino liberal-burguês-individualista, que deixa em suspenso a crítica e o reconhecimento da memória, acaba-se colocando esta inicial reflexão sobre o necessário resgate de um pensamento metadogmático (ou melhor, antidogmático!) para a reivindicação do núcleo Real[5] do campo jurídico, possibilitando, inclusive, pensar criticamente outras formas de Direito: mais livre, plural, imaginativo, anticapitalista e ao encontro da sua própria memória para a reconstrução social.
Uma observação final: é imprescindível trazer à memória do ensino jurídico o recorte de classe, gênero, corpos e culturas racializadas. Certamente esse debate continuará em outra oportunidade. Por ora, fica a primeira provocação.
Notas e Referências
[1] HOBSBAWN, Eric. SOBRE HISTÓRIA. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 22.
[2] Segundo Antônio Carlos Wolkmer, “a moderna cultura libera-burguesa e a expansão do capitalismo produziram uma forma específica de racionalização do mundo. Essa racionalização, enquanto princípio organizativo, define-se como racionalidade instrumental positiva que não liberta, mas reprime, aliena e coisifica o homem”. Por isso, quando se diz, neste texto, que o ensino jurídico possui uma matriz liberal-burguesa-individualista, a referência é que não há uma educação jurídica libertadora, mas um modelo de ensino capitalista que não permite a reflexão crítica, sendo, ainda, no ponto provocativo, que esse modelo passa por projetos de esquecimento e ausência de memória. WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 9º ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 26.
[3] LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução: Bernardo Leitão. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
[4] MATE, Reyes. Memórias de Aschwitz. Tradução: Antônio Sidekum. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005.
[5] O termo Real é usado por Slavoj Zizek para descrever um núcleo duro que não pode ser simbolizado. Assim, para o autor a realidade é construída a partir de um ponto do Real, sendo uma estrutura fictícia/simbólica deste. A utilização do conceito no presente texto parte da provocação acerca do ‘desencantamento’ com as ilusões criadas pelo ensino jurídico. O Real no Direito é a vida acontecendo, do chão de fábrica à lágrima sobre o caixão do pobre atingido por bala perdida. Diferente da realidade constituída de ternos, belos sapatos e vida de glamour. Falta memória para se exercitar a crítica, pois.
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e outras datas. Tradução: Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.
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